Se, na primeira metade desta mais recente produção do polêmico cineasta dinamarquês Lars Von Trier, o que mais decepcionava era o reducionismo quase infantil de suas inovações lingüísticas a uma narrativa tautológica (para não dizer pleonástica), na segunda metade, infelizmente, a decepção se reinstala, de forma literalmente mais violenta, por causa da inverossimilhança psicanalítica.
Nos cinco primeiro capítulos do filme (correspondentes às estocadas anais da desvirginização da protagonista), acompanhamos as diatribes eróticas da adolescente Joe (Stacy Martin, linda e desenxabida), antes de reencontrar o homem que acrescentava um ingrediente secreto – o amor – à sua lubricidade aparentemente insaciável.
No início deste segundo volume, o ponto de ruptura é justamente o instante em que, ao lado do amado Jerôme (Shia LaBeouf), Joe deixa de sentir prazer através de sua vagina. Sente-se afligida por algo que interpreta como uma frigidez punitiva e, a fim de explicar a pujança de tal privação ao audiente Seligman (Stellan Skarsgard), descreve um instante epifânico quando, numa viagem rural, aos 12 anos de idade, sente-se flutuar enquanto gozava, deparando-se com visões religiosas que ela associava à Virgem Maria. O teólogo espontâneo (e ateu) Seligman logo se antecipa em relacionar os espectros femininos que a criança (vivida por Ananya Berg) visualizara enquanto se masturbava às figuras profanas de Messalina e da Grande Prostituta da Babilônia. Apesar de rejeitar veementemente as declarações autodifamatórias de Joe acerca de sua podridão moral, com esta associação ele retira a possibilidade de redenção religiosa que, conforme era esperado numa legítima obra trieriana, seria depositada sobre a protagonista, por mais inevitavelmente condenada ao sofrimento que ela fosse...
O longo primeiro capítulo deste segundo volume, “As Igrejas Ocidental e Oriental (O Pato Silencioso)”, é primoroso em sua confirmação da autoralidade de Lars Von Trier no cotejo com suas ótimas obras anteriores: tal qual acontecera em “Ondas do Destino” (1996), o marido de Joe, percebendo-se incapaz de atender às suas necessidades sexuais, permite que ela estabeleça contatos carnais com outros homens, por mais que as conseqüências malévolas do ciúme (relacionado muito mais ao “medo de perder” que à “falta de vontade de compartilhar”, conforme explica, noutro contexto, a narradora) estraçalhem ainda mais uma relação amorosa fadada ao rompimento.
O ponto de partida para este capítulo é uma explicação de Seligman acerca da cisão que houve na Igreja Católica, em que a Igreja Apostólica Romana (ocidental) privilegiava os elementos sacrificiais da religião (a crucifixão de Jesus Cristo, por exemplo), enquanto a Igreja Ortodoxa destacava os aspectos de regozijo (o amor materno de Maria de Nazaré, representado na imitação de um ícone rubleviano existente no quarto de Seligman). O plácido judeu explica que, se realizássemos uma viagem imaginária do Ocidente para o Oriente, sairíamos do sofrimento cristão em direção ao sentimento de júbilo instituído pela vinda do Messias à Terra. Joe retruca que a narrativa de sua vida segue o rumo inverso deste percurso imaginário, o que permite a entrada em cena do personagem K (Jamie Bell, ótimo e imponente), um sádico metódico, que, deixando bastante claro que não fará sexo com a protagonista (repentinamente interpretada por Charlotte Gainsbourg), a submete a rituais orquestrados de humilhação e dor.
Patologicamente dependente que se encontrava em relação a tais rituais, Joe deixa seu filho pequeno sozinho em casa, o que causa indignação em Jerôme quando encontra o bebê prestes a cair da sacada de seu apartamento, numa surpreendente rima audiovisual com uma cena similar de “Anticristo” (2009), que só não foi bem-sucedida porque, ao contrário do que acontece no filme anterior, o garoto não morre. Surge, então, a primeira piada de mau gosto nesta comédia involuntária e canhestra de um diretor consagrado por sua criatividade autodeclarada.
Os dois seguintes capítulos desta metade do filme vinculada às estocadas vaginais da primeira foda da protagonista envergonha-nos pelo primarismo de sua pretensa discursividade [“é um filme-tese!”, gritam os admiradores incontestes do cineasta]: “O Espelho”, nomeado de forma risoriamente previsível quando Joe se depara com um espelho no quarto de Seligman, foca o período de tempo em que a protagonista, depois de se perceber fisicamente dilacerada pela subsunção masoquista orquestrada por K, tenta adequar-se às práticas auto-repressivas de um grupo de auto-ajuda para “viciados em sexo” (e não para ninfomaníacos, conforme a protagonista se declara).
Depois de passar mais de três semanas sem transar, obedecendo a um procedimento de bloquear tudo em sua casa que lhe pudesse fazer pensar em coito (mas, ridiculamente, não a cama na qual ela se deitava com seus amantes), Joe explode de fúria quando é convidada a expor coletivamente os avanços de seus procedimentos obliteradores de gozo, o que redunda numa patética cena (no pior sentido do adjetivo) em que ela ateia fogo ao carro de uma pequeno-burguesa ao som de “Burning Down the House”, do grupo Talking Heads; em “A Arma”, por sua vez, nomeado de maneira ainda mais vergonhosa, graças a uma mancha de chá na parede que assemelha-se a um revólver [correção da protagonista, após citar um enredo de Ian Fleming, autor que o erudito Seligman desconhecia completamente: assemelha-se a uma pistola] Joe rememora o seu trabalho como cobradora de dívidas da máfia britânica, onde faz uso dos requintes de tortura que aprendera com K.
Por mais pavorosa que seja a presença em cena de Willem Dafoe como o contratador da personagem, esta atividade criminal de Joe permite que uma das melhores cenas do filme venha à tona: quando o devedor interpretado Jean-Marc Barr percebe-se um pedófilo enrustido depois que sua encarnação fêmea de algoz consegue que ele tenha uma ereção ao ouvir uma historieta sensual envolvendo um garotinho de olhos azuis e calções curtos. Ao constatar que o homem ficara envergonhado, Joe faz-lhe sexo oral, pois se identifica empaticamente com este tipo de “sexualidade proibida desde o surgimento”, num pronunciamento audacioso do roteiro, equiparado em veemência ao instante prévio em que, ao defender-se por utilizar um substantivo pernicioso para negro, a protagonista reclama que as atitudes politicamente corretas perigam incorrer em censura, visto que “cada vez que uma palavra é proibida, é retirado um tijolo no alicerce das paredes democráticas”. É a oportunidade ideal para que o diretor, através de sua alter-ego personalística, critique precipitadamente as reações hipócritas que costumam se instaurar frente a narrações entulhadas de sexualidade como a que ela estava compartilhando conosco, através da audição complacente do assexual Seligman, que se confessa virgem antes do primeiro capítulo deste segundo volume...
Não obstante serem variegados os elementos de brilhantismo deste filme (a cena de levitação orgástica de uma criança, o chiste auto-referencial com uma produção anterior, o frenesi de montagem que permite que sejam reconhecidos os cacoetes directivos trierianos, o magistral trabalho fotográfico de Manuel Alberto Claro, na cena em que Joe descobre a “sua” árvore, etc.), o roteiro é atravessado por firulas e contradições psicanalíticas, que não se resolvem nem mesmo quando Seligman apela oportunamente para auxílios teoreticamente paradoxais: a ausência de qualquer menção de incesto na relação de Joe com seu pai, a languidez relacional do envolvimento de Joe com a adolescente P (Mia Goth, estereotipada) graças a uma deformação auricular, a banalidade do reencontro de Joe com Jerôme (interpretado na maturidade por Michael Pas) e o desfecho inconsistente (no qual Joe atira em Seligman quando ele obviamente tenta fazer sexo com ela) são apenas algumas das situações mal-resolvidas enredisticamente que fazem com que este filme assemelhe-se a uma espécie de versão ‘cult’ de obras perniciosas seriadas como “American Pie – A Primeira Vez é Inesquecível” (de Chris Weitz & Paul Weitz).
A constituição da protagonista é muito ruim (o que atrapalha sobremaneira a interpretação de Charlotte Gainsbourg, apesar de sua impressionante entrega visceral), a definição de ninfomania adotada no filme é errônea (já que a protagonista age voluntariamente na maior parte de seus atos de malevolência sexual), a contextualização das cenas de tensão é pueril (vide o preconceituoso sub-segmento “Os Homens Perigosos”, em que homens africanos são assim julgados por não chegarem a um consenso antes de penetrarem Joe, e o momento em que ela simula uma falha automobilística para se aproximar de inúmeros amantes potenciais ao mesmo tempo), o pendor feminista que Seligman tenta imputar sobre o relato pessoal de Joe é absurdamente inconvincente e o enfado que se instala após o primeiro destes três capítulos adicionais é infame, uma demonstração quase inacreditável da regressão do talento de Lars von Trier, tanto quanto o é a inclusão dos gemidos comerciais de Charlotte Gainsbourg em “Hey Joe” (composta na década de 1960 por Billy Roberts), canção que é executada durante os créditos finais.
Aliás, a regressão é tão escancarada (vide a não causal quantidade de vezes que o prefixo ‘auto’ aparece nesse texto) que resta-nos crer que o outrora arrojado diretor fez este péssimo filme de propósito: conforme se depreende de seus caprichosos blagues de ‘persona non grata’ em sessões internacionais de imprensa, neste projeto, a ironia rasteira (e sumamente mercadológica) tornou-se mais importante que a invenção cinematográfica. Uma pena!
[Ouve-se agora o som estridente de uma broxada cinefílica...]
Wesley Pereira de Castro.
Pelo que vi não há comentários e o porquê é bem compreensível.
ResponderExcluirTenho guardada toda a fala da Joe, no final do filme, sobre a que dedicará sua vida a partir daquele momento.
É uma das mais bonitas e emocionantes que já vi.
Poderia colar e trazer pra cá, mas o autor da crítica, se não a percebeu não será agora que conseguirá captar algo que torna o final do filme espetacular.
Ao ler do senhor: "e o desfecho inconsistente (no qual Joe atira em Seligman quando ele obviamente tenta fazer sexo com ela) são apenas algumas das situações mal-resolvidas", senti pena, muita pena de não ter alcançado toda a beleza de um momento de transformação total depois de uma vida atormentada.
Sinto muito pelo senhor. Mesmo.
Não tinha visto este comentário a tempo e peço desculpas pelo atraso na resposta.
ResponderExcluirA despeito de minha omissão (quis dizer respeito ao que senti, de fato), acho bastante valioso este acréscimo opinativo.
Ainda não revi o filme, mas o farei nalgum momento, prestando mais atenção ao discurso mencionado. Obrigado pelo adendo, e sigamos em diálogo!