terça-feira, 8 de abril de 2014

NOÉ ('Noah') EUA, 2014. Direção: Darren Aronofsky.

Apesar de a premissa enredística de “Noé” ser, de fato, baseada em quatro capítulos (6, 7, 8 e 9) do Gênesis, tachá-lo de filme bíblico é uma precipitação sub-genérica que ofende sobremaneira os clássicos da era de ouro hollywoodiana, como a obra-prima “Os Dez Mandamentos” (1956, de Cecil B. DeMille): as liberdades prosaicas dos roteiristas Darren Aronofsky e Ari Handel em relação à biografia do patriarca que teria vivido novecentos e cinqüenta anos de idade são vergonhosamente coadunadas às exigências beligerantes de sagas hodiernas baseadas em livros de J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, para ficar em apenas dois exemplos célebres.

Do mesmo modo que acontece nestas sagas, as motivações do protagonista são apenas pretextos para cenas de ação combativa, jorros de efeitos visuais e soluções maniqueístas que escamoteiam perigosos discursos ideológicos. No caso específico de “Noé”, chega a parecer, em diversos momentos, que o pretensioso diretor Darren Aronofsky está propositalmente emulando alguns clichês de ‘blockbusters’ contemporâneos, como: os combates violentos que abundam em “Tróia” (2004, de Wolfgang Petersen), que são similares às tentativas dos descendentes de Caim quando insistem em invadir a Arca; os robôs impressionantes de “Transformers” (2007, de Michael Bay), com os quais se assemelham os gigantes de pedra que auxiliam a família de Noé; e o tsunami de “O Impossível” (2012, de Juan Antonio Bayona), cujo impacto é deveras aparentado ao momento em que o dilúvio se inicia no filme mais recente.

Um vasto número de títulos poderia ser trazido à tona, de tão esquemático que é o filme em sua condução narrativa, principalmente no que diz respeito às conseqüências da modificação da morte de Lamec, pai de Noé: na Bíblia Sagrada, é dito apenas que ele faleceu aos setecentos e setenta e sete anos de idade; no filme aronofskiano, ele é degolado inclementemente por Tubal-cain (posteriormente interpretado por Ray Winstone), o que faz com que Noé tenha motivos para assassinar diversos agressores, infringindo (ou justificando?) o versículo que apregoa que “quem derrama o sangue do homem, terá o seu próprio sangue derramado por outro homem” (Gênesis, 9: 6).

Já que, no filme, Noé aparentemente morre de velhice, após ter se reconciliado com a maior parte de sua família (segundo as Escrituras, seu filho Cam foi condenado a ser escravo dos irmãos), os seus atos vingativos tornam-se legitimados pela moral suspeitosa do roteiro, associado a uma tendência eclesiástica dificilmente identificável.

Russell Crowe tem um bom desempenho como o protagonista, mas as incongruências do roteiro tornam a sua interpretação prejudicada por fragilidades internas do filme, sendo a determinação de seu personagem contrabalançada por atitudes que soam tão involuntariamente cômicas [vide o modo ridículo como seu avô Matusalém (Anthony Hopkins, constrangedor) se entrega à morte depois que consegue saciar o desejo por comer uma frutinha silvestre] quanto indignantes [vide a fragilidade composicional do anseio do filho Cam (Logan Lerman) pela obtenção de uma esposa], desembocando no clímax quase telenovelesco em que ele desiste de assassinar duas netas recém-nascidas ao ser “preenchido pelo amor”, conforme relatam sua nora Ila (Emma Watson) e sua esposa melindrosa Naameh (Jennifer Connely).

Num sentido geral, as atuações são competentes, mas os personagens são estereotipados em suas demonstrações volitivas, exceção resguardada ao abnegado Noé, que, numa situação interessantíssima, constata que seus filhos são ambiciosos e condescendentes, o que torna a sua família tão tendente ao mal quanto qualquer outra. Esta mesma constatação é o que melhor configura a personalidade de Noé, inclusive em seus aspectos negativos, visto que a sua fé incondicional nos indícios que ele considera provenientes de Deus transcende as limitações normativas (no sentido consuetudinário do termo) e as filiações afetivas do contexto em que ele vivia.

 Se, filmicamente, não é nenhum problema que Darren Aronofsky tenha modificado tanto o substrato bíblico no qual se baseou – pois, conforme ele alega de forma acertada, a estória de Noé é muito curta – algumas alterações soam pouco compreensíveis enquanto motivação autoral, atrevendo-se aqui a detectar algo parecido na filmografia aronofskiana: além de ter muitas semelhanças formais com o malogrado “Fonte da Vida” (2006, cujo argumento é justamente do roteirista Ari Handel), “Noé” praticamente se vincula a um projeto de legalização de drogas [o que o faz distanciar-se imediatamente do hiperestimado “Réquiem para um Sonho” (2000)], tamanha a importância conferida a substâncias entorpecentes e/ou alucinógenas ao longo da trama. Se, na Bíblia, o próprio Javé conversa diretamente com Noé, neste filme, suas decisões são formuladas a partir de sonhos ou de alucinações engendradas por Matusalém a partir de um chá psicotrópico, que, em dose reduzida, faz adormecer um garotinho.

 Mais tarde, quando a Arca já está construída, as dificuldades de acondicionamento dos animais – que eram determinantes em “A Bíblia” (1966, de John Huston), por exemplo – são resolvidas a partir de um defumador soporífero preparado por Naameh, que mantém as feras hibernando até que sejam despertadas por alguém, conforme ocorre quando ela pede que uma pomba seja libertada para verificar se as águas já baixaram nalgum lugar. Ou seja, são variegados os instantes em que substâncias alteradoras de consciência surgem no filme, culminando no instante em que Noé se embriaga com vinho quando desembarca numa praia, algo que é atribuído à necessidade do patriarca de suprimir os desentendimentos que tivera com a sua família enquanto vagavam à deriva pelos mares do dilúvio.


 Não há religiosidade no sentido lato do termo [conforme também inexistia no pitoresco e desperdiçado “π” (1998)], mas sim obstinação paternalista [tal qual ocorrera em “O Lutador” (2008)], contrastada imoderadamente pelos pantins de Cam, que apaixona-se mui convenientemente por uma rapariga (Madison Davenport) que é pisoteada por uma multidão de arruaceiros depois que cai numa armadilha. Nada que se equipare à inteligência compositiva do ótimo “Cisne Negro” (2010), portanto!

Ignorando-se o equivocado laivo de “filme bíblico” que é propagandeado sobre este filme, “Noé” beneficia-se de uma portentosa fotografia (a cargo de Matthew Libatique, parceiro habitual do diretor), que, apesar de valorizar adequadamente os cenários naturais – vide o céu à contraluz, simultaneamente alaranjado e azulado, que é mostrado numa cena em que Noé e Naameh conversam depois que ele desperta de seu sonho profético, e a beleza da floresta que surge repentinamente [para logo ser desmatada!] quando Noé precisa de madeira para construir a Arca –, soçobra diante dos efeitos especiais insatisfatórios.

Os diálogos melodramáticos envolvendo a “impossível” gravidez de Ila [num contexto em que fenômenos sobrenaturais acontecem o tempo inteiro!] tornam o terço final do filme particularmente desagradável, o que só piora com as insistentes ameaças de Tubal-cain, que devora alguns dos animais adormecidos da Arca, é exitoso ao atiçar a rebeldia de Cam contra o seu pai, e quiçá seja um alter-ego propositalmente dissensual em relação ao despotismo de Noé. Durante os créditos finais, Patti Smith aparece cantarolando a sofrível “Mercy is”, encerrando de forma projetadamente espetacular um filme que falha tanto enquanto entretenimento seriado quanto no que diz respeito à reformulação discursiva das lacunas bíblicas.

 Mais do que desagradar tramaticamente [pensemos na estapafúrdia explicação para a origem dos gigantes de pedra (um deles dublado por Nick Nolte), que seriam anjos luminosos chafurdados na lama] e tecnicamente (vide as desenxabidas reconstituições da origem criacionista do mundo), “Noé” é uma demonstração pungente de que o ovacionado Darren Aronofsky ainda não sabe o que fazer com os seus alegados talentos criativos, da mesma forma que não ousa tomar partido em pendengas autoritárias que podem influenciar as posturas obedientes de alguns espectadores.

Noutras palavras: este diretor tenta agradar simultaneamente público e crítica com as cavidades fingidamente autorais de enredos centrados nos desafios enfrentados por seres humanos em conflito com as determinações comportamentais que os circundam. Talvez esta fórmula aronofskiana até tenha obtido sucesso num ou noutro filme, mas, aqui, com o perdão do trocadilho temático, ela é inundada por sua própria arrogância. Resta crer que ficam as boas intenções...

Wesley Pereira de Castro.

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