terça-feira, 15 de abril de 2014

HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO (Brasil, 2014). Direção: Daniel Ribeiro.

Por mais perceptivelmente defeituoso que seja este filme em suas arestas narrativas (principalmente no que diz respeito à amostragem da rebeldia púbere do protagonista), a condução directiva de Daniel Ribeiro é tão aprazível e seus temas são tratados com tamanha sutileza que a recepção positiva nalguns festivais internacionais de cinema torna-se deveras justificada. Afinal de contas, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” apresenta desde o início uma característica fundamental: ele consegue se comunicar muito bem com seu público, principalmente o juvenil, sem subestimá-lo.

Pode-se reclamar que o desenvolvimento enredístico da superproteção dos pais de Leonardo (Eucir de Souza e Lúcia Romano) seja ruim e que algumas situações levem o protagonista a fazer jus à pecha de garoto mimado, mas o roteiro do próprio diretor é incrivelmente verossímil. Na seqüência inicial, Leonardo (Ghilherme Lobo, esforçado mas nem sempre convincente) e Giovana (Tess Amorim, extraordinária) estão deitados na beirada de uma piscina, avaliando o nível de preguiça que sentem em relação às férias. A garota, então, comenta que deseja ser exposta a alguma situação dramática ou emotiva que institua novos desafios em seu cotidiano, o que toma a forma de Gabriel (Fábio Audi), um gracioso moço do interior que se interporá involuntariamente nesta amizade, tal qual a metáfora do eclipse que será explicada pelo próprio recém-chegado, e posteriormente recontada por Leonardo, numa das várias rimas roteirísticas costuradas por Daniel Ribeiro. Um enquadramento muito similar a este inicial, no qual Gabriel é acrescentado, também deitado à beira da piscina, demonstra o quanto a direção é competente, cosendo a trama de maneira elogiosamente orgânica!

Tendo realizado anteriormente os ótimos curtas-metragens “Café com Leite” (2007) e “Eu Não Quero Voltar Sozinho” (2010), Daniel Ribeiro se destaca pela coerência temática de sua obra, na qual o homossexualismo aparece de forma decisiva e, ao mesmo tempo, circunstancial, visto que o que interessa realmente para o diretor são as relações familiares ou vicinais que se estabelecem ao redor de casais homossexuais confrontados com dificuldades tão plausíveis quanto corriqueiras (a morte dos pais e a guarda de uma criança, no primeiro caso; a eclosão de paixões platônicas e a deficiência visual do protagonista, no segundo).


Malgrado reutilizar o mesmo elenco, personagens e situações-chave do curta-metragem mais recente, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” apresenta uma espécie de “realidade paralela” em relação ao filme similar, ampliando o escopo de coadjuvantes que circundam o protagonista. Dentre estes, a sapiente avó interpretada pela veterana Selma Egrei, a espevitada adolescente Karina (Isabela Guasco) e o malicioso colega de classe Fábio (Pedro Carvalho) se destacam por suas atuações e intervenções personalísticas absolutamente desenvoltas. Não obstante ser equivocada no que tange à exibição do cotidiano doméstico de Leonardo, a direção de atores no filme é aplaudível: o elenco juvenil é ótimo, tanto na interação matreira da roda de beijos numa festa quanto em momentos sustentaculares, como aqueles em que Giovana consegue doses de vodca com um colega, em seu “QG alcoólico" [risos].

 Eficientemente coadunada à valorosa chefia de Daniel Ribeiro, a direção fotográfica de Pierre de Kervoche demonstra-se superlativamente eficiente em ocasiões delicadas e/ou arriscadas como: o longo plano móvel que exibe os diferentes comportamentos dos personagens na festa de Karina; o instante em que Leonardo, vestindo apenas uma cueca branca, masturba-se ao sentir o cheiro do suéter que Gabriel esqueceu em seu quarto; a conversa entre Giovana e Gabriel num banheiro estilizado; e a incrível cena de banho num vestiário vazio, em que Gabriel excita-se sexualmente ao observar a nudez de Leonardo, cujos detalhes glúteos são mostrados em ‘close-up’. Esta última seqüência, inclusive, é bem-aventurada na instauração de uma dúvida elementar acerca da homossexualidade prévia de Gabriel, já que ele corroborava uma desenvoltura normalizada em relação à nudez coletiva e, ainda assim, não conseguiu conter sua ereção.

 No caso de Leonardo, tal direcionamento sexualista surge de maneira impressionantemente arguta, ao contrário dos embates forçados com seus pais no que tange à vontade de fazer um intercâmbio escolar nos EUA ou do vexatório momento em que ele pede a seu pai que o auxilie a se barbear. Nada que atrapalhe duradouramente os beneplácitos dialogísticos, assaz divertidos tanto em situações prosaicas (como quando Giovana imagina o constrangimento que a atingiria caso ela fosse Plutão e recebesse a notícia de que não é mais um planeta, ou quando uma professora de História diz ao aluno que lhe pergunta se pode fazer um trabalho numa “dupla de três” que ele deve redirecionar esta questão à professora de Matemática) quanto intensamente emocionais (a reconciliação de Giovana e Leonardo, por exemplo).

 “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, conforme dito no início, é um filme defeituoso, mas esquiva-se mui competentemente das dificuldades inerentes à feitura de uma comédia romântica brasileira, principalmente quando atravessada por tantos temas instauradores de cautela, como a cegueira e a homossexualidade adolescente, geralmente abordados de forma ostensivamente unilateral.

Apesar de algumas das insatisfações habituais de Leonardo contribuírem para a sua rotulação como um rapazola melindroso, isso é vinculado tanto ao excesso de zelo de seus pais quando às suas favoráveis condições aquisitivas, sendo esta conotação classista algo que pode distanciar determinados espectadores de uma identificação generalizada.

A trilha sonora ‘indie’ – que mescla as composições clássicas de Johann Sebastian Bach e Piotr Tchaikovsky que Leonardo utiliza como toques personalizados de seu telefone celular a canções de Cícero, Belle and Sebastian, David Bowie e The National que Gabriel e Giovana apreciam – ganha pontos adicionais pelo esforço emocionalmente percussivo, fazendo com, que este filme seja, sobretudo, um inspiradíssimo retrato geracional. Por este motivo, merece ser analisado de forma tão complacente!

 Wesley Pereira de Castro.

Um comentário: