sexta-feira, 25 de abril de 2014

LANÇAMENTO DO SEGUNDO LOTE DE CURTAS-METRAGENS PREMIADOS PELA SECRETARIA DO ESTADO DA CULTURA DE SERGIPE: “UMA GRANDE NOITE PARA O AUDIOVISUAL SERGIPANO”?

Quando se tem acesso aos bons projetos que originam produtos audiovisuais qualitativamente imprecisos, a responsabilidade pela avaliação crítica dos mesmos é intensificada. Saber-se (in)diretamente vinculado à aprovação e posterior financiamento destes curtas-metragens é algo que torna a dificuldade em julgá-los ainda mais delicada: o que deve ser priorizado numa análise? Os problemas formais? As limitações conteudísticas? As divergências entre projetos e produtos? As contribuições para o contexto local de visibilidade cinematográfica? A comparação entre os diferentes resultados a partir de um esquema idêntico de investimento? As frustrações pessoais das expectativas críticas? As contaminações ideológicas do “evento” de lançamento?

De uma forma ou de outra, todas essas questões interferem na apreciação dos cinco filmes sergipanos lançados na noite do dia 24 de abril de 2014, numa cerimônia prestigiada por centenas de pessoas, a maior parte delas ruidosamente entusiasmada com o que era exibido na tela improvisada do Teatro Atheneu. Os cinco filmes apresentados na ocasião foram:

 • “Conflitos e Abismos: A Expressão da Condição Humana” (2014, de Everlane Moraes): malgrado o talento inequívoco da diretora e a qualidade gráfica das obras de seu pai, o pintor José Everton Santos, além de novamente abordar questões que tem a ver com a existência pessoal da realizadora, o documentário não possui o mesmo vigor do inventivo “Caixa D’Água: Qui-Lombo É Esse?” (2012), deveras autoral em suas propostas estéticas muito particulares. No filme mais recente, o problema mais evidente é a narração ininterrupta e monocórdia do artista biografado, que soa discursivamente desengonçada [vide o momento em que ele explica o quanto os animais são oprimidos pela “(ir)racionalidade” do homem e, logo em seguida, atesta a suposta inevitabilidade do comportamento carnívoro do ser humano], o que não configura um problema em si (pois o biografado tem o direito de afirmar o que quiser, por mais contraditórias que suas declarações sejam), mas que incomoda pelas translações imagéticas quase omissas da diretora, que comenta estes descompassos por meio de animações óbvias de telas famosas do pintor. Nalguns momentos, máscaras animadas são sobrepostas aos rostos de transeuntes, o que configura ótimos momentos de expressão cinematográfica, mas, noutros, a contribuição actancial de Yuri Alves (por mais esforçada que tenha sido) não acrescenta muito ao que as imagens originais dos quadros já tinham de exorbitantes. Ou seja, até mesmo as benfazejas inserções de contrações faciais de desamparo ou nudez são desperdiçadas na condução pleonástica da narrativa documental, que se encerra abruptamente, como se a montagem definitiva do curta-metragem fosse balizada muito mais pelo prazo de entrega do trabalho que pelas necessidades expressivas da diretora;

 • “Morena dos Olhos Pretos” (2014, de Isaac Dourado): a informação posteriormente divulgada de que este título é apenas um preâmbulo para um bem-vindo e aguardado longa-metragem sobre a cantora Clemilda explica (mas não justifica) a precariedade informativa do curta-metragem. Numa primeira abordagem, o que salta aos olhos, negativamente, é a ausência de depoimentos recentes ou inéditos da própria biografada. Diversos cantores de forró (Genival Lacerda, Erivaldo de Carira, Alcymar Monteiro) prestam suas homenagens locucionais à artista alagoana radicada em Sergipe que lançou, em 1972, o álbum que intitula esta obra. Nas composições, é evidente a sua parceria com Gerson Filho, que participou intensamente da carreira da artista, além de ter se casado com ela, instituindo uma colaboração adicional de “cama e mesa”, como explica a própria cantora. O problema é que esses dados são mal-explicados pela tessitura narrativa do curta-metragem, cuja montagem é ruim, aparentemente fortuita em sua seleção de planos e/ou ordem de depoentes. Num sentido geral, o filme pode ser definido como uma “ode à ausência”, apelido poético que, infelizmente, soa pejorativo, visto que o diretor, apesar de sua proximidade com a extraordinária artista biografada, limita-se a mostrá-la em imagens de arquivo numa entrevista televisiva e nas imagens pessoais do último espetáculo da cantora, no Forró Caju de 2012. Um contra-exemplo documental, portanto;

 • Madona e a Cidade Paraíso (2014, de André Aragão): bastante aplaudido pelo público, este curta-metragem é largamente equivocado em suas opções estéticas. Alguns posicionamentos de câmera (vide o instante em que um diálogo entre as personagens é mostrado por detrás de uma pista de ‘skate’) deixam evidente a pretensão do diretor em se distanciar de uma fotografia tradicional, mas soçobram por causa de sua inorganicidade. Uma exceção deve ser destacada: o gracioso momento em que Madona (caracterização interessante de Ivo Adnil, mas que se desperdiça nas seqüências faladas) e Folosa (Zelda Leite) conversam carinhosamente nas proximidades da Ponte do bairro Santo Antônio, com algumas pedras da beira-mar sendo mostradas em primeiro plano. O contexto permite que a prostituta cantarole a canção de ninar que repete quando encontra o homossexual assassinado na seqüência final, numa rima dramática que só não é melhor por causa da dublagem um tanto canhestra do filme. Outro momento interessante é a participação ‘in loco’ da banda Asas Morenas, no interior de uma casa de meretrício, em que a canção “Eu Sou Virgem”, versão de “Like a Virgin”, de Madonna (o que rende outra valiosa rima formal, desta vez acústica) é executada enquanto o protagonista afetado se requebra e esfrega num palco. Pena que a montagem desta seqüência dissipe o potencial expressivo da mesma, ao esfacelar-se em excesso, tanto quanto acontece no momento em que Madona e Folosa caminham pelo Centro Comercial da cidade de Aracaju. O frenesi de pessoas ébrias no Pré-Caju (constantes de um acervo de imagens previamente filmadas pelo diretor, já indicando a sua intenção de levar a cabo este projeto) impressiona pelo seu realismo elementar, mas parece desconexo em relação ao restante da narrativa, que tenta incomodar duplamente o espectador em seu quartel final (tanto pela inegável violência do modo como Madona é espancada quanto pelos estampidos altissonantes na banda sonora), mas soa artificial, subaproveitada. Ao final da exibição, eram freqüentes os comentários sobre um melhor aproveitamento do filme caso ele fosse intencionalmente ‘trash’ – e não involuntariamente cômico, apesar de suas evidentes (e não de todo rejeitáveis) intenções denuncistas – o que vai de encontro aos arroubos aplaudíveis da platéia. Um dos participantes do filme declarou que haverá uma remontagem posterior do mesmo, com cenas adicionais, que talvez resolva melhor alguns dos conflitos narrativos, mas que ultrapassa o escopo avaliativo do que foi cobrado pelo Edital que o premiou e sob os auspícios do qual está sendo aqui avaliado;

 • “Para Leopoldina” (2014, de Diane Veloso & Moema Pascoini – vide foto): sem dúvidas, o melhor da noite, o mais elaborado em termos de linguagem cinematográfica, que respeita devidamente a duração dos planos e a importância constitutiva das seqüências, não obstante preocupar-se demoradamente com a contratação empregatícia de um personagem deveras irrelevante, por mais que exerça uma função pretensamente interruptiva numa dada seqüência. Salvo por um ou outro deslize de câmera ou enredo (vide o momento em que ambos os problemas confluem, no instante em que a personagem-título interroga uma interlocutora acerca do que ela faz com a própria vida), “Para Leopoldina” é primoroso em sua construção dos planos, chegando a emular uma obra neo-realista de Vittorio De Sica. A interpretação da ótima atriz Diane Veloso é contida e valiosamente taciturna, sobressaindo-se principalmente nas seqüências em que ela é mostrada durante a sua jornada tediosa de trabalho, numa loja de roupas. A melhor cena do filme, inclusive, acontece neste cenário, quando a personagem é focalizada em ‘close-up’, em visível demonstração de infelicidade, diante um pano vermelho, que logo se assume como a proteção têxtil de uma cabine onde as clientes da loja experimentam as roupas que pretendem comprar, num estratagema de reaproveitamento ambiental que tem a ver com consagradas produções orientais recentes. A coadjuvação de Walmir Sandes é também muito boa, visto que a atriz mostra-se muito mais introvertida que de costume, assumindo as dificuldades de sua idade de forma muitíssimo proveitosa para os intentos melodramáticos da trama, que se encerra com um momento de forte impacto (quando sabemos que as cartas que a personagem Lúcia lê para os idosos são desrespeitadas em sua integridade conteudística, a fim de não entristecerem ainda mais os macambúzios internos do asilo) e com um plano de pungente beleza, quando Lúcia caminha demoradamente ao longo de uma alameda e elegantemente abre um guarda-chuva, ao som da trilha sonora original de Leo Airplane e Alex Sant’Anna. Muito bom!;

 • “Operação Cajueiro – Um Carnaval de Torturas” (2014, de Fábio Rogério, Vaneide Dias & Werden Tavares): apesar de ter sido o mais cuidadoso e elaborado dos projetos apresentados para os jurados convocados pela Secult/SE, este curta-metragem foi convertido num documentário esquemático, em que as entrevistas quadriculares são simplesmente justapostas, exceto por uma abertura e por um epílogo jornalísticos. O tema é urgente, o conteúdo das entrevistas é valioso e o título do filme é genial, mas, infelizmente, o documentário falha em sua informatividade. Ou seja, para quem teve acesso ao projeto original ou conheça previamente os episódios concernentes às prisões políticas do Carnaval de 1976, no Estado de Sergipe, os depoimentos de Jackson Barreto, Goisinho, Milton Coelho e Wellington Mangueira  são perfeitamente compreensíveis. Para quem não atende a essas condições espectatoriais, é difícil concatenar as informações, eventos, chagas históricas, detalhes epocais, conformações político-contestatórias e configurações discursivo-sobrevivenciais dos torturados. Ainda assim, o depoimento inicial da mulher que confessa ter “a mania de sorrir até mesmo quando comenta sobre coisas tristes”, antes de cantar a marchinha sobre pó-de-mico que fora lançada nas festividades do ano em que fora presa, emociona e instaura o elogioso contexto de cumplicidade mnemônica com os depoentes, importantes personalidades da política partidária sergipana. Tangencialmente defeituoso no trajeto entre projeto e conformação audiovisual, mas importantíssimo em seu viés documental!

 Após a exibição dos filmes, houve um breve concerto com a Coutto Orchestra de Cabeça, a fim de assegurar que quem estivesse predominantemente interessado em espetáculo não seria agraciado apenas com a audiência aos produtos fílmicos. Entretanto, nem todos se dispuseram a conferir as benesses desta consagrada banda: a maratona de curtas-metragens os exauriu, em sua irregularidade de propostas e feituras. Apesar da intensa inclinação para o âmbito afirmativo do que foi perguntado no título desta publicação, a questão permanecerá astuciosamente em aberto. O desenvolvimento do cinema sergipano exige que as perguntas sejam ainda mais disseminadas que os arremedos entusiásticos (ou gritantes, como aconteceu nos intervalos entre um e outro curta-metragem) de respostas. Que venha o terceiro Edital de incentivo à produção audiovisual!

 Wesley Pereira de Castro.

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