Para além de suas inúmeras similaridades com sagas cinematográficas recentes oriundas de séries literárias comercialmente bem-sucedidas, esta adaptação do ‘best seller’ homônimo de Veronica Roth (que também é co-produtora do filme) é assaz prejudicada pela insipidez de seus personagens. Não obstante o pressuposto distópico do filme ser deveras interessante (uma Chicago futurista, em que a população se divide num quinteto de facções diferenciadas entre si), este é erigido sobre contradições elementares, que, se desafiadas em seus limites mitômanos, solapam previamente o entrecho. Afinal de contas, se a imposição do sistema de facções tem por finalidade dirimir os conflitos entre os habitantes, por que perduram as rixas entre os seus membros?
Mais: se cada habitante, ao completar dezesseis anos de idade, precisa ser submetido a uma espécie de teste vocacional, a fim de verificar com qual facção tem mais afinidade (a despeito de sua educação familiar até então, pois “a facção vem antes do sangue”), por que é-lhe conferido o direito de escolha numa etapa posterior?
Ainda mais: por que os chamados “divergentes” (indivíduos que demonstram, no teste, características simultâneas de mais de uma facção) são tão perigosos para a mantença deste sistema se o enquadramento intra-faccional é derivado muito mais de uma vontade de adaptação (vide a submissão voluntária à dureza do treinamento atribuído aos novatos nas facções) que a uma distinção entre os caracteres elementares de cada grupo? Ou se acredita realmente que Audácia, Erudição, Amizade, Franqueza e Abnegação são virtudes independentes?
Sendo todos estes questionamentos efetuados pelo espectador ainda no início do filme, quando ele está sedimentando as bases mitológicas do roteiro escrito por Evan Daugherty e Vanessa Taylor, fica difícil contaminar-se pela pretensa seriedade sociológica da trama, que é um amontoado divertido de clichês inicialmente segregacionistas que remetem muito mais aos ‘tokusatsu’ que aos livros/filmes seriais com que se assemelha externamente.
Não obstante o enredo geral da trilogia de Veronica Roth servir-se de uma premissa bastante semelhante à série “Jogos Vorazes”, escrita por Suzanne Collins e que redundou num péssimo longa-metragem inicial dirigido por Gary Ross em 2012, a questão da vocação grupal pré-direcionada já era basilar nas aventuras vivenciadas por Harry Potter e seus amigos na série literária escrita por J. K. Rowling, em que um Chapéu Seletor indicava se os personagens infantis pertenciam a escolas como Grifinória, Sonserina, Lufa-Lufa ou Corvinal. O que se destaca em “Divergente” é a quantidade de etapas em que essa escolha/indução vocacional se dá, bem como as suas conseqüências, sendo a pior delas a sina de tornar-se um “sem-facção”, espécie de categoria mendicante que, no filme, é assistida pelos abnegados.
Apesar de falaciosas, as diferenças entre os membros das diferentes facções são pertinentemente realçadas por comportamentos exagerados, como: a aparência presunçosa dos eruditos (que assumem as funções científicas); a indumentária ‘hippie’ dos amigos (que são lavradores); a ausência de vaidade dos abnegados (que são assistentes sociais); o compromisso com a verdade dos francos (que são advogados); e a coragem baderneira dos audaciosos (que, pela coragem demonstrada, são policiais, protetores do Sistema). Por possuir todas estas qualidades ao mesmo tempo, a protagonista Beatrice Prior, mais tarde auto-rebatizada Tris, poderia ser uma personagem bastante complexa, mas sua composição soçobra na rotina árdua da emulação espartana em Audácia. Ou seja, por mais que a interpretação de Shailene Woodley seja eficiente, a condução da personagem é unilateral e emocionalmente insossa, atravessada por momentos súbitos ou inverossímeis, como quando a sua mãe (Ashley Judd, patética) revela, na prática, ter sido criada em Audácia, antes de tornar-se uma abnegada.
Prosseguindo com a enumeração dos defeitos contextuais de “Divergente”, sobressai-se o mau delineamento da oposição política entre os líderes eruditos e abnegados, visto que a retroalimentação da beligerância entre eles extermina a funcionalidade institucional da divisão entre facções, que deveriam ser cooperativas e não competitivas entre si. Kate Winslet dota a malévola Jeanine de muito charme, mas a sua constituição personalística é reles, como acontece em relação a todos os demais vilões [ou arremedos de vilões, como o impiedoso Eric (Jai Courtney)] do filme.
Os avatares de benevolência são também inócuos, conforme verificamos na apática participação de Tony Goldwyn como o pai de Beatrice, ou nas aparições de Christina (Zoë Kravitz), franca convertida em audaz que se torna a melhor amiga de Tris. Ansel Elgort goza de alguns bons momentos como Caleb, visto que o seu personagem é dúbio (indubitavelmente abnegado, mas rapidamente cooptado pelos eruditos), enquanto Theo James chama a atenção como o misterioso Quatro, um dissidente da facção Abnegação, que desertara após ser espancado pelo pai (Ray Stevenson), quando abandonou o seu nome de batismo, Tobias Eaton, e se consolidou como um dos treinadores de Audácia. Sua beleza física e seu carisma indisfarçável somam-se num dos melhores atributos humanos do filme, malgrado a extrema assexualidade do enredo desperdiçar lancinantemente os seus méritos eróticos, visto que a ameaça da perda da virgindade configura-se num dos medos supremos de Tris, ao lado do perigo de atolar o pé num pântano enquanto é atacada por corvos durante um incêndio.
Em outras palavras: a configuração psicológica do roteiro é esdrúxula, sendo as situações de enfrentamento alucinógeno experimentadas por Tris absolutamente canhestras em sua obviedade adolescente, principalmente no que diz respeito ao aproveitamento de seus benefícios enquanto divergente, praticamente irrelevantes durante o seu treinamento. A cena em que Tris escala uma roda-gigante ao lado de Quatro – quando se descobre que este último, também divergente, tem medo de altura – é vergonhosa em seu romantismo simplista, principalmente no instante em que Quatro, impressionado com a desenvoltura com que a rapariga se movimenta nas ferragens, pergunta-lhe se ela não é humana. Tem como levar a sério uma necedade destas?
Apesar de não ser necessariamente mal-dirigido (Neil Burger conduz com destreza as exigências de ação do filme), “Divergente” possui uma trilha sonora exclusivamente vendável (Hans Zimmer aparece como consultor, mas a música original é de Junkie XL, enquanto Snow Patrol interpreta “I Won’t Let You Go” durante os créditos finais) e um ritmo titubeante (ágil demais nalguns momentos; langoroso noutros), o que talvez agrade a um público-alvo juvenil.
Preocupado muito mais em ser o capítulo inicial de uma trilogia que um filme em si (os direitos autorais de “Insurgente” e “Convergente”, livros posteriores da escritora, já foram vendidos para o cinema, e devem ser lançados em 2015 e 2016), “Divergente” não incomoda tanto quando julgado com proposital distanciamento: seu roteiro deixa extremamente evidente a pretensão de apenas entreter a platéia com clímaxes persecutórios ou belicosos, secundarizando ou tornando irrelevante a premissa distópica que parecia tão interessante na sinopse.
As possibilidades de abordagem sociológica à la Émile Durkheim (por causa da solidariedade mecânica no interior das facções) e a exortação das potencialidades individuais frente à consolidação programada dos “fatos sociais” (que, segundo este sociólogo, são gerais, exteriores e coercitivos) são transformadas numa sucessão de melindres actanciais, que deságuam na assepsia formal (por mais que os efeitos especiais sejam muito bons e a direção fotográfica de Alwin H. Küchler seja merecedora de discretos elogios). Uma pena que este filme, obedecendo à tendência dominante no lançamento hodierno deste tipo de produto seriado, vincule-se ao que de mais nocivo podemos identificar enquanto vigência hollywoodiana: o tolhimento da inteligência espectatorial. Não deve ser por acaso que os eruditos são os principais vilões...
Wesley Pereira de Castro.
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