segunda-feira, 19 de outubro de 2020

* Mostra SP 2020: APENAS MORTAIS (2020, de Liu Ze)


     Num primeiro momento, este filme parece o decalque chinês de um tradicional melodrama familiar produzido em escala industrial: quantas e quantas vezes não foram realizados filmes sobre mãe e filha sofrendo com o envelhecimento de um ente querido? A diferença valorativa está no modo como a abordagem do Mal de Alzheimer desvela aspectos sustentaculares de uma sociedade em transição: a despeito do mote corriqueiro porém trágico, o que se destaca são as nuanças sub-reptícias... 


    A constatação de que o diretor estreante conduz-nos a uma percepção nas entrelinhas está na súbita mudança de perspectiva que ocorre no surgimento do namorado da protagonista, antes que saibamos quem ele seja: numa primeira aparição, ele conversa com a mãe, que reclama de sua solteirice. No casamento de uma amiga, ele reencontra a personagem principal, Xian Tian, de quem fôra colega de escola. Um 'flashback' abrupto mostra-os em sala de aula e, de repente, eles encetam um relacionamento. Na seqüência seguinte, já passou algum tempo desde o casamento da amiga em comum. A adoção da famosa "montagem invisível" aparece num viés chamativo, como se gritasse: "notem que houve uma passagem brusca de tempo"!


    Ao mesmo tempo em que enternecemo-nos diante do drama familiar advindo da progressão degenerativa da memória do pai de Xian Tian, notamos que há outra memória em desvelamento, esta de ordem coletiva: os comentários sobre a regra do filho único, o modo repetitivo com que os ensinamentos escolares são transmitidos, a frustração da cantora que sufocou seus sonhos artísticos numa fábrica de locomotivas e o inusitado desfecho fantasioso (típico do modo como os orientais lidam com a morte) são apenas alguns dos aspectos que demonstram o quão inteligente é o roteiro na sua inoculação sutil de críticas políticas, sem que isso obnubile a dramaticidade das relações afetivas em pauta. Muito pelo contrário: política tem a ver, sobretudo, com o que fazemos na intimidade!


    Muitíssimo bem-interpretado, as cenas de choro e langor deste filme também impressionam: afinal, é dolorosa a percepção de que os relacionamentos amorosos são inevitavelmente atravessados pela fisiologia, o que é metonimizado nos vários momentos em que o pai da protagonista aparece chorando após defecar nas roupas. O instante em que sua filha e o namorado iniciam um enlace sexual, ao lado de sua maca, também é sintomático neste sentido. Por isso, o filme é ainda mais efetivo depois que a sessão acaba: ele penetra em nossas lembranças pessoais, obrigando-nos a ressignificar aquilo que tentamos esquecer, por parecer traumático. Para os chineses, lembrar é uma tentativa que requer muito ensaio, após anos de censura. Portanto, este é um filme que melhora nas revisões sem expectativas e no cotejo com nossos problemas familiares...


Wesley Pereira de Castro. 

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