quarta-feira, 9 de junho de 2021

Netflix: FAZ DE CONTA QUE NY É UMA CIDADE (2021, de Martin Scorsese)

Apesar de ser um produto audiovisual coeso e coerente e de possuir as marcas registradas de um dos mais importantes cineastas vivos, este filme não foi dividido em episódios - e lançado como minissérie - por acaso: há algo de sobrecarregado e repetitivo no modo como a escritora Fran Lebowitz reage ao mundo ao seu redor. Aliás, não em relação ao mundo, mas precisamente em relação à cidade de Nova York, visto que, dentre os inúmeros problemas discursivos deste documentário, destaca-se o modo jocoso como a entrevistada refere-se às outras pessoas. Servindo-se das estratégias humorísticas do "politicamente incorreto", a escritora age de maneira xenofóbica, classista e ostensivamente misantrópica. Seu amigo, o próprio diretor, gargalha de maneira exagerada, ao longo de toda a produção, o que aumenta o inconveniente espectatorial: num primeiro contato, Fran Lebowitz demonstra-se intimidadora e até mesmo desagradável, de modo que as pausas entre um e outro episódio permitem a reflexão acerca do que é despejado de maneira tão célere pelo cineasta, que, nesta empreitada, não conta com a colaboração de sua parceira habitual Thelma Schoonmaker como montadora... 



Depois de uma apresentação ambígua, em que a escritora assume que desgosta da maioria das pessoas e diverte-se com isso, o segundo episódio permite que conheçamos um aspecto muito elogiável de sua persona pública: a sua extrema erudição. Ao tergiversar sobre Música, Literatura e Cinema, a entrevistada faz jus à responsabilidade de ser biografada ainda em vida. E, ao desfecho, prova que é sumamente fascinante. Porém, o filme funciona melhor quando expõe as suas benesses críticas, ao invés de suas piadas com duplo sentido, que brincam até mesmo com a especulação financeira envolvendo as obras de Andy Warhol (com quem a escritora assume nunca ter se dado bem), após a sua morte. Fica demonstrado, portanto, que Fran Lebowitz leva muito a sério a segunda metade de sua citação mais famosa: "pense antes de falar. Leia antes de pensar"!



O derradeiro capítulo desta minissérie, que expõe a rica biblioteca da escritora, é valioso, bem como o episódio sobre o seu desprezo pelo dinheiro (apesar de "gostar muito de ter coisas") e aquele sobre os apanágios geracionais. Por vangloriar-se de não possuir telefone celular ou computador, a biografada chama a atenção pela aplicação pragmática de suas idiossincrasias literárias, também condizentes com a maneira lúcida como ela posiciona-se em relação ao movimento "#MeToo", declarando sempre acreditar nas mulheres que denunciam assédios, mesmo sabendo que algumas delas eventualmente mentem. A rememoração das experiências da escritora como faxineira ou taxista, numa fase anterior de sua vida, permite que observações contundentes sobre as mazelas advindas do machismo estrutural sejam compartilhadas, mas isso não impede que ela demonstre-se um tanto preconceituosa quanto a alguns vícios da classe proletária. Fran Lebowitz não apregoa a perfeição. Muitíssimo pelo contrário, aliás: gaba-se de ter sido laureada por seus dotes espirituosos desde a infância, mas não insiste numa superioridade irrevogável em relação a outrem. É uma pessoa claramente paradoxal, como também é o filme que protagoniza. Merece ser melhor conhecida, portanto! 



Wesley Pereira de Castro. 
 

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