segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: ÁLBUM EM FAMÍLIA (2021, de Daniel Belmonte)


Analisar uma obra de arte, para além dos aspectos (des)apreciativos mais imediatos, implica em compreender as condições em que a mesma foi desenvolvida e tentar imaginar o que ela pode oferecer de (des)construtivo para as gerações futuras. Sendo assim, por mais que tenhamos desgostado de um produto artístico, é essencial adotar uma parcela mínima de condescendência, na esperança de que este trabalho talvez esteja apresentando algo para o qual ainda não fomos devidamente preparados. É assim que as revoluções surgem, essa é a pretensão das vanguardas. O filme ora resenhado faz cair por terra toda esta introdução: é abominável sob todo e qualquer aspecto! 


Dedicando-se a um esforço hercúleo, no afã por encontrar algo que valha a pena ser mencionado neste filme, podemos deter-nos em sua possibilidades inaproveitadas: se o filme optasse por uma adaptação linear - ainda que maculada pelos problemas de distanciamento físico entre os atores e pelos apanágios da quarentena - talvez ele obtivesse alguns resultados dignos de infinitésima exaltação. Afinal, transmutar uma obra literária é algo sobremaneira válido, e as reclamações que alguns membros do elenco fazem sobre o caráter reacionário do autor Nelson Rodrigues [1912-1980] são prenhes de sentido. E até mesmo eles admitem que, a despeito de toda a misoginia, racismo, homofobia e outros deméritos imperdoáveis, o dramaturgo merece a alcunha de gênio. Custava obedecer a um projeto específico, ao invés de trair a própria lógica improvisada deste pseudo-'making-of' a todo instante?!


Se dispuséssemo-nos a enumerar as variegadas contradições (ou pior: oximoros discursivos) deste filme, a lista seria infinda, com destaque para o momento em que Kelson Succi confessa que rejeitou a validade da peça em que atua antes mesmo que tivesse encerrado a leitura do texto ou quando o diretor-protagonista Daniel Belmonte converte um catálogo de hipocrisias familiares em uma oportunidade para celebrar o mais onipresente dos Aparelhos Ideológicos de Estado, ao som de "Pai e Mãe", de Gilberto Gil. Trata-se de uma das situações mais constrangedoras e ignóbeis do cinema brasileiro, muito mais graves que a mais vilanaz das piadas (neo)pornochanchadescas! O mesmo poderia ser dito sobre as simulações de estresse actancial de Cris Larin, sobre o desejo de Dhara Lopes (a única do elenco "nascida no século XXI") em obter um 'close-up' hollywoodiano, sobre a vergonha fingida de Eduardo Speroni após cheirar uma calcinha de sua mãe ou sobre a seqüência quase criminosa em que Otávio Müller contempla as suas filhas no mar, num contexto literário de intensa descrição incestuosa. Tudo no filme é absolutamente equivocado, sem graça e lastimosamente narcisista...


Como se não fosse suficiente, o diretor tenta justificar o seu catálogo de improbidades dedicando o projeto às pessoas que sofreram perdas familiares por causa da epidemia provocada pela COVID-19. Quiçá as suas intenções humanitárias sejam sinceras - e que ele seja louvado por isso - mas a obra como um todo depõe contra qualquer gesto positivo de debruçamento artístico: o roteiro zomba da discussão necessária sobre o "cancelamento" contemporâneo de Nelson Rodrigues; a montagem é ainda mais canhestra que a de um 'vlog' pré-adolescente; as interpretações evidenciam o constrangimento da falta de perspectiva do projeto; e Renata Sorrah e Lázaro Ramos esforçam-se (em vão) para legarem alguma seriedade satírica a um engodo incontornável. Que haja a possibilidade de este filme - se é que se pode chamar isso de filme - contribuir de alguma maneira para o esclarecimento das gerações vindouras, mas, nas atuais condições avaliativas, é uma demonstração efetiva - e deprimentemente involuntária - do fracasso político absoluto em que encontramo-nos na contemporaneidade, precisamente no Brasil de 2021. Horror extremo! 



Wesley Pereira de Castro. 

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