terça-feira, 12 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: LIDANDO COM A MORTE (2020, de Paul Sin Nam Rigter)


Este documentário inicia-se, termina e é atravessado por imagens de rituais mortuários ganenses - cultura que acredita que "um morto sem um funeral é pior que um natimorto" - mas o verbo contido no título diz menos sobre o enfrentamento necessário em qualquer cerimônia de despedida que à capitalização progressiva do luto. Em dado momento, um executivo comemora que a construção da sede de um centro funerário esteja próxima a um banco, pois isto facilitaria as transações monetárias que liberariam os enterros... 


Em seu projeto analítico, o percurso documental acompanha as transações comerciais levadas a cabo pela empresária Anita van Loon, tão carismática quanto pragmática, no modo quase maquiavélico com que organiza reuniões multiculturais, em que o interesse dominante é a vendabilidade dos ritos fúnebres. Mui cautelosa, ela supervisiona o cardápio oferecido nestas reuniões, a fim de assegurar que as comidas sejam "autenticamente holandesas", estando as inserções étnicas destinadas apenas aos pagantes que, futuramente, contratarão os seus préstimos oficiais. No afã por assegurar a excelência na execução de seus serviços, ela pesquisa as tradições de vários países: aprende sobre a lógica multipartite da teologia hinduísta, participa de uma cerimônia muçulmana e interage com muitos imigrantes advindos de Gana, abundantes na região suburbana de Bijlmermeer, no sudeste de Amsterdã. Sempre sorridente, Anita não titubeia ao chamar de "louco" o proprietário de uma agência funerária com quem ela conversava afetuosamente minutos antes. Na profissão dela, o que interessa é a efetividade das transações lucrativas!


Ainda que o filme surpreenda ao explicitar situações mui desdenhosas de xenofobia incontida (vide o modo como os sócios de Anita zombam da reivindicação de uma mulher ganesa, que alega precisar de um banheiro muito espaçoso por causa de suas vestimentas volumosas), a empresária é gradualmente humanizada: por motivos compreensíveis, ela declara-se absolutamente favorável à eutanásia, no sentido de que não gostaria, na velhice, de ficar dependente de outrem. Entretanto, ela percebe que a empresa com a qual estava envolvida, Yarden, não mais atendia aos seus objetivos no que tange à assimilação da diversidade cultural como requisito administrativo. Tanto que, nos minutos finais, outro empresário repete frases anteriormente pronunciadas por Anita, como se fosse algo que ele decidiu...


Curiosamente, ela própria carece lidar com a morte de um parente durante o período em que o filme foi rodado (bem antes da pandemia da COVID-19, conforme facilmente se percebe): seu pai estava internado num asilo e, quando o visita, ela escolhe junto com ele a canção que será tocada em seu funeral, o que efetivamente acontece. Apesar de não ser imune à emoção, ela é flagrada mui descontraída e divertindo-se durante o enterro de seu pai, o que não soa desrespeitoso, mas condizente com a sua maneira particular de organizar uma rotina permanentemente ocupada. No discurso de despedida que ouvimos em paralelismo às exéquias do pai de Anita van Loon, comenta-se que o magnata Steve Jobs [1955-2011], em seu leito de morte, alegou que a fortuna é inútil quando impede que a vida humana seja devidamente aproveitada: eis o legítimo (porém intersticial) tema deste filme!


Wesley Pereira de Castro. 



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