segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: A TAÇA QUEBRADA (2021, de Esteban Cabezas)


Os melhores momentos deste filme descrevem os elementos súbitos de percepção cotidiana em que o que é fortuito converte-se nalgo aterrorizante: fazendo uso de uma trilha musical repleta de guitarras distorcidas e servindo-se de um punhado de enquadramentos internos, em que a moldura retangular foca num rosto prestes a cometer uma estultice ou numa masturbação que ocorre debaixo de lençóis alheios, a hábil direção de Esteban Cabezas confia bastante na perícia actancial de seu elenco, construindo seqüências demoradas e repletas de tensão. Infelizmente, o terço final cede à tentação dos cortes curtos, aos 'travellings' circulares e a um desfecho preguiçoso, que desperdiça a safa utilização do que está fora de campo: é aflitivo imaginar o que pode acontecer enquanto a personagem feminina troca de roupa num quarto ou após o diálogo em que um açougueiro gaba-se de assassinar ele mesmo as vacas, com uma enorme faca, que empunha com orgulho em seu balcão... 


O título do filme possui uma dubiedade benfazeja: remete, intradiegeticamente, à xícara favorita de Carla (María Jesús Gonzaléz), que bebe café nela, mesmo podendo cortar-se na aba quebrada. Metaforicamente, o que está irremediavelmente quebrado é o seu casamento, de modo que a constante presença de seu ex-marido nas cercanias de sua residência instaura um clima opressivo de quem insiste em consertar o que não tem mais jeito. Neste sentido, a corajosa entrega de Juan Pablo Miranda ao seu inconveniente personagem, o teimoso Rodrigo, é mui aplaudível: chegamos a odiá-lo e temê-lo, mas eventualmente identificamo-nos com o seu desamparo carente, com a sua persistente esperança de que pode fazer com que Carla apaixone-se novamente por ele, com a mesma facilidade que ele consegue colar a xícara supracitada...


Trata-se, portanto, de um filme claustrofílico porém centrífugo, que extrai energia do confinamento desejoso, malgrado haver uma seqüência externa (justamente, a do açougue). As três primeiras situações em que a direção de fotografia adere ao enfoque quadricular - quando Carla atende ao telefonema do obstinado protagonista, quando ele interroga o filho acerca do novo namorado da mãe e quando Rodrigo esforça-se para ejacular na cama de sua ex-esposa, depois de não conseguir manter a ereção debaixo do chuveiro - são primorosos, dotando o filme de toda a pujança concernente ao que convencionou-se chamar de "relacionamento tóxico". Pena que, depois da briga previsível que eclode quando Máxi (Moisés Angulo) volta para casa, a direção renda-se a um desenvolvimento quase televisivo da narrativa. Mas é um filme que instiga e perturba - e talvez desencadeie alguns traumas espectatoriais! 



Wesley Pereira de Castro. 

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