quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Festival de Brasília 2021: ALICE DOS ANJOS (2021, de Daniel Leite Almeida)


Se, ao mesmo tempo, a inspiração explícita em "Alice no País das Maravilhas", romance infanto-juvenil de Lewis Carroll, foi muito bem adaptada para o contexto nordestino, o excesso de decalques tramáticos (no que tange ao modo surrealista como os personagens aparecem) limita um pouco a criatividade do roteiro, que apropria-se espertamente de elementos do cangaço, devidamente trasladados para a linguagem simplificada das crianças. Ainda que eventualmente empostada, a interpretação da garotinha Tiffanie Costa é muito boa - sobretudo porque o diretor evita o excesso de cortes que caracteriza parte da filmografia brasileira contemporânea. Ao invés disso, ele prefere uma marcação teatral, de modo que o filme lembra bastante os autos tipicamente encenados nas cidades do Nordeste.


A personagem-título não persegue um coelho branco, mas um Bode Preto (Fernando Alves Pinto); ela não encontra um gato sorridente, mas um líder indígena espirituoso (Pajé Aripuanã), num umbuzeiro; em lugar de uma Rainha de Copas sanguinária, deparamo-nos com a inveja da esposa de um coronel suíno, em relação à Rainha do Cangaço, Bonita (Vicka Matos). Passeando pelo País das Macaúbas, Alice tem a oportunidade de demonstrar empatia em relação a um calango e a um dos vários severinos que existem naquela região. Em comum, o fato de eles terem aprendido a ler com a professora Indira (Cris Magalhães), que, nos delírios provocados por uma doença terminal, acha que ainda está numa escola de Angicos, em 1963. Enquanto personagem assumidamente freireana, ela acredita que "educar é amar". O filme põe isso em prática de maneira lúdica!


Não obstante as quebras de ritmo e os clichês associados às convenções de gênero, freqüentes nos filmes infantis, esta obra consegue abordar questões como coronelismo, devastação ambiental e genocídio dos povos originários do Brasil de maneira inspirada. O fato de ser um musical é positivamente surpreendente: as letras escritas pelo próprio diretor são bem acompanhadas pela trilha musical de João Omar. Nas divertidas interações com os personagens, diálogos que reiteram a sabedoria de Indira e o modo arrojado como ela enfrenta a vida (e, por extensão, também a morte): "quando o Sol se põe, ele vira poesia. Quando alguém vai embora, é que nem o Sol". No desfecho, uma semente é plantada, uma árvore cresce. A narrativa equivoca-se um pouco ao forçar novamente a aproximação com outra obra carrolliana, a fim de que a protagonista possa declamar, olhando para a câmera, que "o cinema é um espelho". É um truísmo breve: as boas lembranças seguem vívidas após a sessão. A lição foi transmitida com esmero!


Wesley Pereira de Castro. 

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