sexta-feira, 8 de setembro de 2023

RETRATOS FANTASMAS (2023, de Kleber Mendonça Filho)

Obedecendo a uma recorrente estrutura tripartite, o renomado crítico e cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho utiliza como ponto de partida ensaístico as filmagens, em vídeo ou Super-8, que realizou desde a sua juventude, a fim de traçar um paralelismo entre o seu cotidiano doméstico, a nostalgia das sessões cinematográficas de outrora e as brutais transformações (para pior) do espaço urbano, na contemporaneidade. Repetindo o apotegma de que os filmes de ficção (inclusive, os futuristas) são também documentários, ele ficcionaliza a própria vida, ao documentá-la. E o resultado é sobremaneira emocionante! 


Na primeira seção, "o Apartamento de Setúbal", a narração do cineasta explica como a sua mãe - que era historiadora e faleceu antes de completar sessenta anos de idade - adquiriu o lugar no qual ele vive e que se tornou um cenário utilizado em várias de suas produções cinematográficas. É quando a relevância que ele concede às contaminações vicinais ressurge enquanto temática transversal de toda a sua obra, cujo apogeu é o longa-metragem "O Som ao Redor" (2012); na seção seguinte, "Os Cinemas do Centro de Recife", o cineasta edita valiosos materiais de arquivo, que registram desde as festas de inauguração de antigas salas de cinema até a relevância semiótica contida nos textos que estampavam as marquises das mesmas, passando pela valorização das atividades de profissionais-chave, como uma bilheteira e um projecionista; e, por fim, em "Igrejas e Espíritos Santos", a tônica analítica destaca a reação aos novos rumos da especulação imobiliária, culminando na constatação de que os templos do entretimento foram convertidos em fortalezas pentecostais (o que impactou no direcionamento ultraconservador da política brasileira) e, hoje, desembocaram nos grandes empreendimentos farmacêuticos. Ao invés de proporcionar alguma cura, isso adoece ainda mais...


Orquestrando de maneira hábil quais aspectos de sua vida pessoal/familiar são discursivamente enfatizados (sendo presumido que o espectador já sabe quem é o realizador, a ponto de ele mencionar a esposa de maneira breve, citando apenas o seu prenome), Kleber Mendonça Filho ignora os anos em que vivera fora do Brasil, por exemplo. O modo recitado como ele urde vocalmente as próprias memórias tem por interesse uma empatia genérica, que substitui a assunção de seus privilégios de classe pela constatação de que os processos de gentrificação descritos ocorrem na maioria dos cidades ocidentais. Servindo-se de elaborados efeitos sonoros e de uma montagem primorosa, as imagens de tempos passados são costuradas subjetivamente, às vezes forçando interpretações, como quando o diretor encontra manifestações fantasmáticas no catálogo audiovisual que ele desvela. Lidando com "coincidências" que, em verdade, são apanágios do capitalismo especulativo, o diretor converte a cinefilia em estratégia de sobrevivência, coadunada à aceitação carnavalesca do entorno e às reconstruções afetivas da arquitetura recifense. Foi erigido, assim, um clássico imediato!



Wesley Pereira de Castro. 
 

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