quinta-feira, 27 de junho de 2024

O RANCHO DA GOIABADA, OU POIS É MEU CAMARADA, FÁCIL, FÁCIL NÃO É A VIDA (2024, de Guilherme Martins)


Caso não se tenha conseguido captar o significado da primeira parte do título deste filme - já que ele não é pronunciado explicitamente -, a canção homônima "O Rancho da Goiabada" atravessa toda a obra, seja através de intertítulos com trechos da letra, seja no reaproveitamento dos acordes na ótima trilha musical de José Calixto. E não é por acaso que esta composição de João Bosco e Aldir Blanc foi escolhida como ponto de partida, pois, além de continuar bastante atual, ela tem muito a ver com os depoimentos advindos dos trabalhadores que interagem com o protagonista Alex (interpretado por Alex Rocha): "os bóias-frias, quando tomam umas biritas/ Espantando a tristeza/ Sonham com bife a cavalo/ Batata-frita e sobremesa"..


Se, por um lado, é ótima a opção pelo dispositivo relacionado à participação do ator, que, ao imiscuir-se entre os trabalhadores, recolhe valiosas estórias de vida, por outro, as frases de efeito utilizadas por este personagem resvalam numa concepção meramente substitutiva da luta de classes. Vide os instantes em que Alex pergunta ao funcionário de um restaurante se, "caso ele lavasse os pratos com zelo, poderia atingir a sua posição"; quando ele cogita ganhar na loteria e reclama que "o cara, quando é pobre e enrica, nem pode se mostrar"; ou nas várias situações em que ele incita queixumes, em diálogos fortuitos, que soam como reiterações inativas da frustração dos desfavorecidos. A cena em que ele é mostrado fumando à luz de velas, visto que a energia elétrica de sua residência fôra interrompida por falta de pagamento, é também um desses casos. 


Num instante esplêndido, Alex oferta aos passageiros de um trem DVDs de filmes brasileiros que "não estão disponíveis na Netflix nem são exibidos na Globo", mas a pujança protestante desta seqüência é prejudicada por um aspecto sustentacular: infelizmente, o DVD é uma mídia em avançado processo de obsolescência - programada pelo Capitalismo -, de modo que, mesmo que algum dos passageiros tivesse dinheiro para comprar e/ou se interessasse por algum daqueles filmes, talvez não tivesse onde reproduzir o disco adquirido. É o que pode ter ocorrido à moça que compra "Morte e Vida Severina" (1977, de Zelito Viana), cujas imagens aparecem em momentos-chave do filme, tanto quanto acontece em relação ao devastador "Aopção, ou As Rosas da Estrada" (1981, de Ozualdo Candeias). 


A montagem de abertura, que apresenta uma publicidade televisiva sobre as vantagens da utilização do álcool enquanto combustível automobilístico é excelente, pois demarca uma das várias rimas laborais do roteiro, conforme imediatamente comentado por Alex: "sabem quantos pés de cana é preciso cortar para gerar um pouco de pinga?". Ninguém responde, mas vê-se na prática a rudeza daquele trabalho, e as condições (melhoradas, mas ainda sobremaneira dificultosas) de sua execução. Enquanto conversa com um dos interlocutores, já embriagado, Alex é praticamente desvendado enquanto ator, já que sua mão não é tão calejada quanto a dos companheiros dietéticos de labuta. Alegando possuir "cara de pobre", ele dispara benfazejas reflexões sobre a campanha presidencial de 2018, em cujas primícias o filme foi rodado. Imerso no personagem, Alex comenta: "é muito difícil cortar e cana e pensar em política". Na derradeira cena, pós-créditos finais, um transeunte segurando um panfleto do Partidos dos Trabalhadores (PT) demonstra que, sim, é difícil, mas também deveras necessário. A sua fala serve como testemunho de legitimidade quanto ao que ocorre neste filme. "Fácil, fácil não é a vida", de fato! 



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 24 de junho de 2024

CONTO DE FADAS (2022, de Aleksandr Sokurov)


No letreiro inicial, o diretor Aleksandr Sokurov afirma não ter utilizado recursos de Inteligência Artificial na feitura deste filme, de modo que, segundo ele, os diálogos seriam provenientes de materiais de arquivo. Trata-se de uma informação falseada persistentemente, no sentido de que os personagens reais são dublados por atores, cada qual em seu respectivo idioma pátrio. A constatação de que um destes personagens é ninguém menos que Jesus Cristo - de quem não se possui registros audiovisuais, por motivos óbvios - faz com que os propósitos discursivos do realizador mergulhem o espectador numa tempestade imediata de idéias, a fim de compreender o que aquelas pessoas que vagam pelo Purgatório possuem em comum... 


Em alguns dos casos, a associação é óbvia: o próprio Aleksandr Sokurov já havia biografado o ditador alemão em "Moloch - Eva Braun e Adolf Hitler na Intimidade" (1999), de modo que a troca de acusações entre este déspota, Benito Mussolini (dublado por Fabio Mastrangelo) e Josef Stalin (Vakhtang Kuchava) é compreensível, dentro dos propósitos iconoclastas em relação ao Mal. Ao invés de denunciar a malevolência de alguns líderes políticos mediante narração, o que poderia promover o fascínio, o diretor faz com que isso seja evidenciado através das frágeis alianças entre eles, registradas historicamente: por vezes, Hitler parece elogiar Stalin, que reclama sentir fome o tempo inteiro; noutras, o tacha de judeu e questiona as bases de seu comunismo (afinal, destroçadas em sua própria ambição personalista). Em relação a Mussolini, os chistes são ainda mais numerosos, dadas as posturas amplamente caricatas do político italiano. Os próprios ditadores odeiam e se destróem mutuamente! 


Na cena de abertura, quando Stalin desperta, sentindo cheiro de vinho e alegando que "ainda está vivo e assim permanecerá", ele nota a presença de um dormente Jesus Cristo ao seu lado e, ao encontrar o chanceler britânico Winston Churchill (dublado por mais de um ator, ao longo da trama, tal qual acontece com Hitler), diz-lhe que "ele é jovem e gentil, podendo ser útil nalgum momento". Daí por diante, são variegados os diálogos sobre cristandade e supremacia religiosa, confirmando o flerte entre esta suposta devoção e o genocídio. O quarteto vaga por entre as ilustrações (a cargo do pintor Gustave Doré) de "A Divina Comédia", de Dante Alighieri. Uma efígie representando o imperador francês Napoleão Bonaparte aparece rapidamente, reiterando a perspectiva evanescente dos encontros, naquele cenário amedrontador. Soldados falecidos e judeus surgem convenientemente, a fim de receberem comentários dos ditadores, que perdoam a si mesmos e, por extensão, perdoam - ou fingem perdoar - aqueles com quem se deparam no caminho. "Para que estragar um fuzil tão novo?!".


Enquanto esforçamo-nos para compreender as falas dos personagens, quase como solilóquios, multidões de apoiadores são amalgamadas num oceano de feições expressionistas, disparando uma algaravia de celebrações nazifascistas, que é misturada aos acordes da trilha musical original de Murat Kabardokov, ao acordeão de Mirko Mariani (em sua "Primavera Nottura") e a breves relances do tema para o "Funeral de Siegfried", de Richard Wagner. Para os conhecedores de detalhes biográficos dos personagens retratados, as pistas são abundantes, mas o diretor as confunde, via justaposição e multiplicação, de modo que, numa determinada seqüência, Adolf Hitler pode ser visto discursando para as massas e conversando com os outros ditadores, enquanto ele próprio defeca, à frente de um precipício. No desfecho, Josef Stalin é flagrado solitário, subitamente, depois de uma longa caminhada que parece um círculo em torno de si mesmo, como foi o despejo de vaidades e bravatas orquestrado pelos interlocutores infames, que chegam a mencionar o próprio Aleksandr Sokurov, cientes de que são observados por ele. Numa citação misteriosa (associada à sigla "M22 K, 4-4"), lemos que Satanás, "portador de paixão", foi estrangulado "com a corda divina de teu tormento". Os convites à interpretação são infindos - e, não por acaso, o filme foi rigorosamente proibido na Rússia!



Wesley Pereira de Castro. 



sexta-feira, 14 de junho de 2024

A ESTAÇÃO (2024, de Cristina Maure)


Na primeira metade deste filme, a atriz (e co-roteirista) uruguaia Jimena Castiglioni vagueia sozinha por um lugar tão idílico quanto ermo: após caminhar por cerca de sete horas, conforme alega a sua personagem Sofia, ela adentra a estação de Vila Clemência, onde sabe que um trem está programado para passar às dezessete horas. Ao confrontar o vigilante dessa estação, Abelardo (Rodolfo Vaz), acerca das informações que recebera, este lhe diz que não há garantia de que o trem chegue: ""pode ser que ele passe hoje, pode ser que somente daqui a dez anos". Sofia hesitará em instalar-se na pousada sugerida por Abelardo, mas sucumbirá perante uma espera que, em seu prolongamento, provocar-lhe-á exaustão e uma inaudita liberdade: depois de conversar com alguém que reconhece o casal mostrado numa fotografia que ela esconde em seu aposento, Sofia reencontrará, enterrada, a pessoa por quem procurou por tanto tempo e, ao fazer isso, consegue também encontrar a si mesma, sentindo-se apta a viver a própria vida, não mais relacionada a uma busca que soava abstrata, de tão estendida...


Numa metáfora evidente, que conjuga o purgatório cristão (ou o umbral espírita, em versão campestre) com uma trama cara ao Teatro do Absurdo, este filme faz com que alguns personagens constatem que existiam em função de desejos não saciados e, por conta disso, redefinem os seus interesses vitais, descobrindo novos anseios, tão íntimos quanto coletivos, a partir da convivência fortuita com outrem. Numa região fictícia (adaptada de cenários do interior mineiro) e numa época indefinida, os personagens confessam situações de busca ou espera que se converteram, sem que eles tenham percebido, em obsessões duradouras. Neste sentido, o enredo funciona como uma exortação ao desprendimento emocional: o hotel próximo à estação - não obstante ser um local de confinamento, em que remédios e comida começam a rarear - é apresentado como um ambiente de cura, onde aquelas pessoas renovam as motivações para interagir e seguir em frente... Mesmo que jamais saiam daquele lugar!


Transcorrida uma hora de projeção, há uma mudança de perspectiva: ao tentar fugir, Sofia nota que as distâncias entre os lugares são alteradas mediante a sua movimentação. Aparece um túnel que não existia antes, e ela adoece após caminhar por horas a fio. A diretora, então, dispõe-se a registrar as experiências de outros personagens, cujos segredos são desvendados pelo garotinho Teófilo (Katu Silva Sanglard), que observa a maior parte deles pelas fechaduras de seus respectivos quartos. Divulgando que o seu presente ideal de aniversário seria uma festa, Teófilo possibilita que seus convivas dancem ao som da música executada pelo acordeonista Damião (Rafael Martini), que acredita que ela possui propriedades mágicas. Se, para o homem sábio a quem todos chamam de Professor (Eid Ribeiro), "a única certeza é a morte", para o espectador, as incertezas revelam-se como extraordinárias descobertas, tal qual a luz misteriosa verificada por Sofia, no anúncio compartilhado pelo desfecho em aberto.



Ainda no início, quando tentava estabelecer contato com Teófilo, que corria indiferente pelos prados que circundam a estação, Sofia observa que há um cemitério no local. Isso delimita o caráter sobrenatural da narrativa, associando aquele local de espera perpétua aos conceitos religiosos supracitados. O filme perde um tanto de seu impacto quando o foco narrativo sai da então adoecida Sofia para as vivências de outros hóspedes, como a relação platônica entre Líber (Pedro Lanna) e a mãe solteira Helena (Bruna Chiaradia), que preenche o seu tempo entre a criação de poesia e os ímpetos suicidas. Ao final, um clímax festivo ratifica a comunhão entre os trunfos técnicos do filme: a ótima trilha musical (que, além dos temas diegéticos de Rafael Martini, conta com a participação de Hugo Fattoruso); a  encantatória fotografia em preto-e-branco de Luciana Baseggio; e, claro, a entrega actancial de um elenco afinado às provocações existenciais de cariz beckettiano. Um filme de ritmo monocórdio, mas fascinante! 



Wesley Pereira de Castro.