domingo, 4 de agosto de 2024

AINDA TEMOS O AMANHÃ (2023, de Paola Cortellesi)

A primeira imagem do filme dá o tom: a protagonista Delia (interpretada pela própria diretora, Paola Cortellesi), ainda na cama, deseja “bom dia” ao seu marido Ivano (Valerio Mastrandea) e, em resposta, recebe um tapa inesperado. Perplexa e sentindo dor, mas aparentemente acostumada a esse tipo de violência, ela levanta para executar as suas tarefas habituais. Na banda sonora, o clássico italiano “Aprite le Finestre”, na voz de Fiorella Bini, começa a ser executada. Inusitadamente, o otimismo da canção é contraposto à rudeza do cotidiano de Delia: a letra fala “abra as janelas para o novo sol”; ela obedece, mas, como mora num piso abaixo do nível da rua, alguém joga poeira dos sapatos dentro do seu lar e, além disso, um cachorro urina. A cada verso feliz da letra, uma imagem triste. Quem chegou a este filme através do anúncio de que se trata de uma “comédia feminista”, tomará um grande susto!



Não que o rótulo seja inadequado: há alguns toques efetivamente cômicos (quando Delia pisa num rato, ao descer da cama, logo no início) e um inequívoco pendor feminista (o desfecho, por exemplo), mas estes são abafados pelos maus tratos recorrentes a que a personagem principal é submetida. Proveniente de uma carreira enquanto atriz – de filmes medíocres mas bem-sucedidos comercialmente, em sua maioria –, Paola Cortellesi parece ter se inspirado em “Wanda” (1970, de Barbara Loden) e “Feios, Sujos e Malvados” (1976, de Ettore Scola) para conceber o roteiro (escrito em parceria com mais dois colaboradores): no segundo caso, por conta de uma acepção tipicamente italiana da miséria enquanto algo capaz de fazer rir; no primeiro, pela constatação de um pujante discurso fílmico, que independe do sobejo de passividade da protagonista.



Diferentemente da dona-de-casa estadunidense setentista, que era ostensivamente desnorteada e, por isso mesmo, mais sujeita às descobertas imediatas e releituras posteriores, a personagem central de “Ainda Temos o Amanhã” (2023) possui planos e esperanças. Só desperdiça as oportunidades para executá-los, exceto por algo que adia até o instante final, e que é corroborado por filmagens da época, em que acompanhamos a primeira eleição ocorrida na Itália, desde a derrota do fascismo, em que as mulheres tiveram participação definitiva. Mas voltemos ao começo…



A trama deste filme passa-se em meados da década de 1940, imediatamente após o término da II Guerra Mundial. A fotografia de Davide Leone serve-se de um belíssimo preto-e-branco como estratagema para a reconstituição de época: as ruas italianas estão repletas de soldados norte-americanos, que assediam as mulheres com presentes (chocolates e cigarros, sobretudo) e ajudam a população a resolver problemas relacionados à interesseira reconstrução nacional. Delia possui três filhos, sendo uma delas Marcella (Romana Maggiora Vergano), impedida de estudar pelo pai, que considera a escola muito cara. Ela está apaixonada pelo filho do dono de uma sorveteria, e é nela que Delia projeta as suas esperanças de redenção: esconde dinheiro para comprar um vestido de casamento chique, a fim de que sua filha disponha de uma felicidade que ela não encontrou em seu próprio matrimônio. Algo acontecerá antes disso, entretanto.



Além de realizar algumas tarefas de costura, Delia também aplica injeções em idosos doentes, visto que possui suficiente experiência doméstica, já que cuida de seu agressivo sogro, Ottorino (Giorgio Colangeli), que alega se sentir incomodado por causa das surras freqüentes que ela leva. Não por solidariedade em si, mas porque, segundo ele, se Delia apanhar demais, “terminará se acostumando”. Ele, então, aconselha o filho a bater menos em Delia, mas que aumente a intensidade das surras. Era assim que ele tratava a sua falecida esposa, acrescenta. O corolário machista é imediato: “ela era uma santa”!



As situações supracitadas de abuso tornam muito desconfortável a audiência a este filme. Por mais que o título prometa alguma felicidade no dia derradeiro – o que também consta na letra da canção de abertura –, Delia é violentada cada vez mais, física e verbalmente: de tanto testemunhar o pai e o avô agredindo a mãe, os dois filhos mais novos de Delia a tratam de maneira desdenhosa, abusada e pouco compreensiva. Resignada, ela sequer grita quando é alvo de ofensas ou bofetadas. A seqüência em que uma das surras é encenada como se fosse a coreografia de uma canção é particularmente incômoda: original, admite-se, mas insuportável naquilo que a associação entre imagem e som traz consigo. Um detalhe: em alguns momentos, canções de The Jon Spencer Blues Explosion e Outkast surpreendentemente irrompem na trilha musical!



Terminada a sessão – após cento e dezoito minutos de duração – é difícil crer que o clímax entusiástico, mas pouco convincente, do desfecho possa redundar na melhoria das condições maritais de Delia. Ainda que seus vizinhos pareçam solidários ao seu sofrimento, o filme aborda as agressões como socialmente corriqueiras, como um rasgo de personalidade dos homens italianos – vide a cena em que Delia percebe que Giulio (Francesco Centorame), o noivo de Marcella, é tão ciumento quanto Ivano era na juventude, e constata que o casamento de sua filha pode repetir o mesmo martírio diário que ela enfrenta. Um provável ponto de fuga está no encontro com um soldado estadunidense, William (Yonv Joseph), que decide auxiliar “Preciso Ir Embora” (que ele pensa ser o nome de Delia, já que não compreende o idioma local), depois que ela recupera uma fotografia familiar que ele havia perdido. Será que Delia obterá um final feliz e/ou a dignidade que merece? Pelo que é mostrado neste filme, só se for muito tempo depois, via descendência num contexto democrático!



Wesley Pereira de Castro. 

 

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