domingo, 4 de agosto de 2024

O MAL NÃO EXISTE (2023, de Ryusuke Hamaguchi)


Não obstante variar radicalmente de temática de filme para filme, pode-se perceber, nos roteiros escritos por Ryusuke Hamaguchi, uma mesma orientação: o respeito pelos personagens humanos - o que não implica necessariamente na concordância em relação às suas ações -, a partir da suma valorização dos diálogos, em seqüências tão lentas quanto fascinantes. Neste sentido, se a sua mais recente produção difere bastante dos dois excelentes trabalhos lançados em 2021 ("Roda do Destino" e "Drive My Car"), o ritmo é similar, bem como a maneira quase epifânica com que o desfecho ressignifica as situações anteriores. Vide a demonstração pragmática do título do filme, em termos de exposição do Mal enquanto discurso, não como algo que existe por si mesmo... 



Dois aspectos chamam a atenção aqui: de um lado, a trilha musical, algo jazzística, de Eiko Ishibashi, que parece onipresente, mas é interrompida de modo abrupto, em momentos-chave, a fim de reverenciar o estilo godardiano; do outro, as demoradas cenas de reuniões e/ou que mostram atividades cotidianas, como cortar lenha ou preparar o almoço, em um restaurante. Enquanto síntese, a demonstração de que, para enfrentar o capitalismo especulativo, é mister recorrer à organicidade da natureza, que dispõe de um código mui particular de convivência, em que os lucros não são apenas desnecessários, mas ostensivamente rejeitados. 



Tal qual ocorre nas demais obras hamaguchianas, deve-se reverenciar o ótimo trabalho do elenco, capitaneado pelo eloqüente Hitoshi Omika, que interpreta o "faz-tudo" Takumi. Este possui uma filha pequena, Hana (Ryo Nishikawa), e é assediado por dois intermediários de uma empresa de 'glamping' ("'camping' glamoroso"), que tentam convencer os habitantes locais a aceitarem um proposta que introduzirá a poluição naquela paisagem. Ocorre que estes intermediários desconhecem a proposta que se esforçam para apresentar, pois eles, na verdade, trabalham para uma agência de talentos. Nas entrelinhas, uma denúncia ao esvaziamento proposicional (e ao desconhecimento das responsabilidades ambientais) levado a cabo pelas estratégias de terceirização. 



Nos cento e seis minutos de duração, vemos as copas de árvores, em mais de um instante, e aprendemos sobre as características das mesmas, o que será essencial para que compreendamos o impacto da derradeira seqüência, em que Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani) lidarão com os ônus da falta de contato com os ambientes naturais: ele, que sequer sabia como cortar lenha, constatará que instalar um acampamento na trilha de cervos possui conseqüências que podem ser trágicas, enquanto ela sofrerá um ferimento profundo, quando sua mão toca os espinhos de um ginseng siberiano. Para o espectador, a conclusão reitera aquilo que já testemunhamos em contatos prévios com a filmografia do realizador: conversar, sem omitir aquilo que efetivamente se sente, é essencial! 



Wesley Pereira de Castro. 

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