Num livro em que deslinda os processos constitutivos do que define como cinema hipermoderno – ou seja, o cinema “livre das normas passadas, dos freios e obstáculos, das convenções estéticas e morais de outrora” – o filósofo Gilles Lipovetsky menciona a imagem-distância como sendo aquela que identifica o filme como algo que recua referencialmente em relação a si mesmo e, como exemplo paradigmático desta tendência, cita a recente contratação de Daniel Craig como intérprete do famoso agente secreto britânico James Bond. Segundo o autor, o primeiro dos filmes com o espião protagonizados por este novo astro [“007 – Cassino Royale” (2006, de Martin Campbell)] “se apresenta como um distanciamento quase crítico da série, pela escolha de um intérprete fisicamente diferente, de uma violência seca e de uma melancolia desencantada no tom”, caracterizando o recuo iconoclasta e/ou referencial embutido na sua definição de hipermodernidade cinematográfica.
Polêmicas conceituais à parte, o diagnóstico sobre o personagem que Gilles Lipovetsky menciona em “A Tela Global” cabe perfeitamente na análise deste “007 – Operação Skyfall” como um dos melhores da franquia, visto que, dentre todos os filmes envolvendo o agente britânico nas últimas duas décadas, ele é o que mais avança neste recuo referencial e assume-se com uma homenagem legítima aos tempos áureos da cinessérie, quando ela era realmente cultuada pelo público e seus episódios não eram apenas despejados no mercado como meros ‘blockbusters’ entupidos de explosões e efeitos especiais deslocados.
Nesse sentido, a inusitada opção pelo diretor dramático Sam Mendes na condução desta aventura diz muito sobre os variegados méritos deste filme, que, para além de suas bifurcações temporais – tão legitimadas pelas convenções da diegese quanto as distâncias impressionantemente ultrapassáveis de um continente a outro – fecha um ciclo em relação aos vinte e dois capítulos “oficiais” anteriores (sem contar três títulos não produzidos por Albert R. Broccoli, detentor dos direitos autorais dos romances com o personagem), de modo que, se houvesse uma lógica produtiva estrita na produção destes longas-metragens hodiernos, o próximo filme a ser lançado seria uma regravação do ótimo “007 Contra o Satânico Dr. No” (1962, de Terence Young).
Conforme antecipado por Gilles Lipovetsky, um dos principais estranhamentos trazidos à tona com a vinculação de Daniel Craig ao personagem James Bond está em sua sisudez monogâmica, bastante distinta do caráter bonachão e perenemente lascivo das célebres vivificações de Sean Connery e Roger Moore. Se, no já citado “007 – Cassino Royale”, o que laureia a produção é justamente a falibilidade do personagem – bastante humanizado, afinal de contas – o filme seguinte [“007 – Quantum of Solace” (2008, de Marc Forster)] demonstra-se como um dos mais fracos da cinessérie por causa de sua linearização factual (o contato direto com o final da trama do filme imediatamente anterior rompe a liberdade narrativa dos filmes predecessores) e de sua adesão renitente aos clímaxes amorfos, que acrescentam muito pouco à evolução psicológica do personagem, que, nos filmes contemporâneos, protagoniza “preqüências” das ações levadas a cabo pelos demais intérpretes.
“007 – Operação Skyfall” supera o demérito disfuncional e revela-se como uma das melhores aventuras do personagem justamente por restituir a sua dignidade viril (em nível freudiano, inclusive, visto que o trauma da morte de seus pais durante a infância é assumida como a causa de sua conhecida rebeldia, segundo um diagnóstico intrafílmico) e dialogar com os aspectos minuciosos que tornam as produções das décadas de 1960 a 1980 absolutamente geniais em sua capacidade de fazer com que os ancestrais fílmicos do subgênero ‘ação’ sejam urdidos pela inteligência de seus enredos e aparições vilanescas.
Os diálogos recorrentes envolvendo um conflito entre a “velha guarda” da espionagem e as novas práticas profissionais – vide o primeiro encontro entre James Bond e o jovem Q (Ben Whishaw), em que canetas explosivas são descartadas do cardápio tecnológico do espião por serem consideradas antiquadas, e os embates entre M (Judi Dench, sempre majestosa) e o burocrata Gareth Mallory (Ralph Fiennes) sobre os ônus políticos e bélicos do final da Guerra Fria [“continuamos lutando nas sombras...”]– pontuam o roteiro de Neal Purvis, Robert Wade e John Logan com esperteza calculada, encontrando eco magistral na cena em que James Bond “seqüestra” M utilizando um modelo imponente de automóvel clássico (justamente utilizado pelos 007’s de outrora) e na assunção aguardada da personagem de Naomie Harris como sendo a espirituosa (e onipresente nos filmes primevos) senhorita Eve Moneypenny. Ou seja, o cuidado que Sam Mendes dedica em suas obras pessoais à valorização (não apenas nostálgica, mas historicizada) do passado foi definitiva para a genialidade detectada neste ótimo filme.
Não obstante a obsessão por “entradas triunfais” do vilão afetado e muitíssimo bem-interpretado por Javier Bardem justificar um blague mui coerente de 007, o contraste irregular entre a imponência de seus primeiros momentos em cena e a sua derrocada súbita aparece como um dos poucos defeitos estruturais significativos desta obra. Ainda assim, a seqüência que o ex-agente Silva explica a 007 a razão de seu ódio vingativo por M a partir de uma anedota metafórica sobre as mudanças induzidas nos comportamentos de ratos insulares, que, a partir de um confinamento forçado, passariam a se alimentar de sua própria espécie (mais ou menos como os traidores nos filmes de espionagem) é exímia em toda a sua extensão, incluindo a inaudita suspeição de indícios homossexuais no histórico de James Bond, visto que, quando Silva alisa as suas coxas, com intuito assumido de deflorá-lo eroticamente, 007 retruca: “quem te disse que esta seria a minha primeira vez?”.
O assassinato tragicamente estilizado da prostituta Sévérine (Bérénice Marlohe) e o modo sutilmente anunciado com que Silva é esfaqueado enquanto suplica para que M utilize uma mesma bala para dar fim à sua vida e à dela própria confirmam a grandiosidade compositiva deste personagem, obliterada momentamente durante o tiroteio ocorrido na residência em que James Bond morou quando criança e que explica o título do filme, visto que “Skyfall”, palavra que ele se recusa a comentar durante um teste psicotécnico, nada mais é que o nome da chácara onde ele vivia com seus pais falecidos. Mais: o retorno de James Bond ao território que valida a crença de M de que “os órfãos são os melhores recrutas” conecta-se brilhantemente à vinheta musical de abertura do filme, em que a cantora Adele interpreta uma belíssima canção homônima, enquanto signos inicialmente cifrados de um veado, de uma sala de espelhos e de túmulos desfilam para tela, para que, afinal, desemboquem e sejam desvendados com o animal que identifica a propriedade dos Bond, com o estratagema que James ensina a seu criado para que ele atire nos capangas de Silva sem ser atingido e com a descoberta da lápide onde lê-se os nomes de ambos os pais (Andrew e Monique Delacroix Bond) do agente, falecidos na infância do mesmo em condições misteriosas, porém traumáticas e determinantes no enrijecimento de sua personalidade aventureira.
Emoldurando definitivamente a qualidade superior deste filme, temos: a já citada assunção da senhorita Moneypenny e a sua função acessória enquanto amante perpetuamente disponível do agente; a morte da feminina M e a sua substituição mandatária pelo personagem de Ralph Fiennes; a ótima trilha sonora de Thomas Newman, companheiro habitual do diretor, que se funde organicamente com os eventos e não apenas os acompanha pleonasticamente; a maravilhosa direção de fotografia de Roger Deakins, particularmente deslumbrante no último quartel do filme; a recorrente menção ao luto no roteiro, em contextos tramaticamente oportunos (o elíptico obituário de James Bond, a fatalidade do destino de Sévérine, o presente destacado por M em seu testamento, o funeral dos agentes da MI6 mortos num atentado a bomba, a malfadada tentativa de suicídio narrada por Silva); e a encarnação definitiva de Daniel Craig como um cínico mulherengo, emulando principalmente a subestimada e dramática encarnação unitária de George Lazenby como o personagem, no excepcional “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade” (1969, de Peter R. Hunt).
Como acontecia no passado, o alinhamento de aventuras alucinantes não prejudica o estatuto artístico do filme: “007 – Operação Skyfall” é, portanto, o bem-sucedido coroamento de um ciclo, no qual Daniel Craig torna-se internamente merecedor do pronunciamento do jargão característico “Bond. James Bond”! Que ele faça bom uso de seu laurel verbal nas produções vindouras...
Wesley Pereira de Castro.
terça-feira, 13 de novembro de 2012
007 - OPERAÇÃO SKYFALL ('Skyfall') Inglaterra/EUA, 2012. Direção: Sam Mendes.
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