terça-feira, 25 de dezembro de 2012

AS AVENTURAS DE PI ('Life of Pi') EUA/China, 2012. Direção: Ang Lee.

Num texto datado de 1957, fundamental para a arregimentação teórica do que foi consagrado como “Política dos Autores”, o cineasta e crítico de cinema François Truffaut afirma que “um diretor possui um estilo perceptível em todos os seus filmes, e isso vale para os piores cineastas e seus piores filmes”. Alegando que, para além das diferenças técnicas e produtivas imputadas de um filme para outro, um cineasta inteligente e talentoso permanece merecedor de ambos os adjetivos não importa que filme esteja a realizar, François Truffaut acrescenta que “um filme de diretor não visa à perfeição; é menos homogêneo, porém mais vivo, mais belo de rever”.

Ainda que alguns considerem precipitada a consideração do taiwanês Ang Lee como um cineasta autoral, é inegável que, ao transitar por filmes dos mais variegados gêneros, ele consegue imprimir uma sutil marca registrada permanente, estando esta atrelada à temática recorrente da autoridade paterna questionada pela rebeldia de sua prole. Transitando entre a figura ostensiva do pai em crise [“Comer, Beber, Viver” (1994), “Tempestade de Gelo” (1997), “Hulk” (2003)] e a figura paterna ausente, omissa ou substituída [“Razão e Sensibilidade” (1995), “Desejo e Perigo” (2007), “Aconteceu em Woodstock” (2009)], esta temática explica por que filmes tão distintos quanto os excelentes “O Tigre e o Dragão” (2000) e “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005) possuem aspectos em comum que ultrapassam as suas convenções genéricas específicas e asseguram a impressionante versatilidade do diretor Ang Lee.

 Em “As Aventuras de Pi”, como era esperado, tal temática é novamente importante para se entender as motivações pulsionais dos personagens, mas, no caso do protagonista Piscine Patel (Suraj Sharma), o que surpreende é a elevação do questionamento da autoridade paterna a um nível teológico, visto que, numa cena-chave, uma criança hindu tendente à conversão ao cristianismo interroga-se pungentemente acerca dos motivos que levaram Deus a conduzir a própria figura humana de Seu filho para sofrer na Terra...

A introdução oportuna das questões religiosas no roteiro deste filme – escrito por David Magee a partir de um conceituado romance de Yann Martel – transporta o espectador por um terreno muito mais árduo do que parecia demonstrar a assunção de que Ang Lee é um cineasta autoral e com preocupações assaz íntimas acerca da reiteração das relações familiares anteriormente descritas. Além de se considerar simultaneamente hindu, cristão e muçulmano, o personagem principal ainda dialogará com um budista, sendo este último fundamental para o pretenso deslindamento de uma chave interpretativa justificadora dos panegíricos destinados ao filme, ao qual seria ofensivo dedicar uma análise meramente técnica ou centrada apenas em suas peculiaridades tramáticas. 

Um dos méritos mais evidentes do filme é a sua apresentação narrativa ambígua, inicialmente conduzida pelo protagonista envelhecido (Irrfan Khan) que conta a sua estória de sobrevivência para um audiente (Rafe Spall) prontamente identificado como alter-ego do escritor Yann Martel. Se, no princípio, esta narração intercalada parece incômoda ou equivocada, numa das seqüências finais ela instaura a dúvida acerca da veracidade intradiegética dos eventos narrados, quando estes se bifurcam numa trama convencional e noutra simbólica, em que um quarteto de animais desempenha funções antropomorfizadas. O problema (no melhor sentido do termo): mesmo que associemos a zebra ferida, a hiena agressiva, a orangotanga maternal e o tigre instintivo a um budista feliz, a um marinheiro chistoso, à mãe do protagonista e a ele próprio, como tenta fazer alguém durante o filme, a co-presença de Pi em relação a estes mamíferos exige que analisemos o seu espectro enredístico a partir de um prisma crítico/narratológico mais ousado.

Obrigando o espectador a se posicionar diante de duas ficções possíveis envolvendo as mesmas possibilidades de interação entre personagens, Ang Lee, através do roteiro que dirige, lança-nos na mesma encruzilhada conteudística que balizava “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003, de Tim Burton), não por acaso um filme sobre um filho que se desentende com seu pai fantasioso. Porém, dois filmes com os quais se pode cotejar diretamente “As Aventuras de Pi” são “Stromboli” (1949, de Roberto Rossellini) e “Náufrago” (2000, de Robert Zemeckis). 

Em relação à segunda obra, as associações são óbvias, visto que existem diversas conexões entre ambos os filmes, como a valorização encantatória e, ao mesmo tempo, periculosa de misteriosos seres vivos marinhos e a perda dalgum objeto que assegura a sanidade do protagonista à deriva em meio à solidão concernente à sua espécie (uma bola de futebol humanizada a partir de uma mancha de sangue que parece uma efígie sorridente, no filme zemeckisiano, e um caderno onde relatava as suas memórias de sobrevivência, no filme mais recente). Já no que diz respeito ao clássico de Roberto Rossellini, o filme de Ang Lee irmana-se no que tange à aceitação de aspectos epifânicos da crença monoteísta, de modo que a invocação exaltada que Ingrid Bergman faz em relação à supremacia de um Deus Todo-Poderoso quando um vulcão entra em erupção ao lado dela tem muitíssimo a ver com as exclamações religiosas adoradoras de Pi em meio a uma tempestade permeada por apavorantes relâmpagos. Mas, sendo original em relação aos filmes com os quais foi comparado, “As Aventuras de Pi” se destaca pela grandiosidade heteróclita do relacionamento entre o protagonista indiano e o tigre-de-Bengala Richard Parker (maravilhosamente recriado a partir de efeitos computadorizados digitais).

Por mais limitador que seja analisar este filme em vista de seus atributos técnicos, não há como não se impressionar diante da extrema segurança directiva relacionada aos diversos animais em cena, que, reais ou não, em termos de atuação não deixam nada a dever a nenhum dos atores humanos com quem contracenam. O brilhantismo da fotografia de Claudio Miranda, a majestosidade da trilha sonora de Mychael Danna, a edição firme de Tim Squyres (que colaborou com o diretor em quase todos os seus longas-metragens) e as habilidades versáteis já mencionadas de Ang Lee (que, neste filme, faz uma breve aparição à la Alfred Hitchcock) estão à mercê das questões sumamente filosóficas que o filme elenca, tendo como motrizes dois diálogos essenciais e repetidos em momentos roteiristicamente convenientes: o primeiro deles diz respeito à teimosia do pequeno Piscine (então interpretado por Gautam Belur) em acreditar que os animais têm alma, até que a exposição, por parte de seu pai (Adil Hussain), de como um carnívoro se alimenta o leva a acreditar que a afeição que ele percebeu nos olhos do tigre Richard Parker não passava de seus próprios sentimentos refletidos; o segundo, por sua vez, é mais categórico e pontual, quando o náufrago Pi atrela o medo que sente do tigre também náufrago à força que o fez permanecer alerta e seguir em frente. 

Por extensão, poder-se-ia deduzir daí que o filme filia-se ao tipo de pensamento contido no vigésimo segundo parágrafo da sexta meditação cartesiana, quando o filósofo, em primeira pessoa, insinua que “tudo o que a natureza me ensina contém alguma verdade. Pois, por natureza considerada em geral, não entendo outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas”. Não sendo mais inoportuno, portanto, chegar à conclusão que Ang Lee é, sim, um autor de cinema, no caso em pauta talvez seja muito mais urgente ler a obra original de Yann Martel no qual o filme se baseia. Mas, enquanto não se tem acesso a ela, as perguntas suscitadas pelo filme são o que ele tem de mais precioso: deveras gratificante encontrar este tipo de reflexão metafísica num filme hollywoodiano atual, aliás!

Wesley Pereira de Castro. 

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