quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

CINE HOLLIÚDY (Brasil, 2012). Diretor: Halder Gomes.

Num texto em que analisa as implicações ideológicas das paródias brasileiras de clássicos hollywoodianos convertidos em motes para (porno)chanchadas, o pesquisador João Luiz Vieira conclui que, ao assumir um complexo chistoso de inferioridade em relação às superproduções estrangeiras, determinadas obras patenteiam este tipo de filme como sendo “válido, legítimo e autêntico, reconhecendo a eficiência da linguagem de um cinema opressor, [de modo que] o cinema brasileiro, mais uma vez, provoca gargalhadas às suas próprias custas”.

Ao invés de revelar criticamente as estruturas de manipulação espectatorial ou denunciar os mecanismos de uma linguagem cinematográfica que visa à manutenção de práticas de dominação artística, tais filmes consolam-se em imitar pobremente o ilusionismo técnico que deveria ser rechaçado ou, no mínimo, questionado.

Dadas as diferenças contextuais entre os filmes aos quais o autor se refere – produções realizadas nas décadas de 1950 e 1970 – e o subgênero ao qual “Cine Holliúdy” (2012) pertence – algo que alguns críticos contemporâneos apressaram-se em apelidar de “novas chanchadas” – as ressalvas anteriores são igualmente válidas, no sentido de que, em sua pretensão declarada de impor-se contra uma modalidade midiática acachapante (no caso, a televisão), o filme imita justamente a sua linguagem, cometendo, inclusive, a indiscrição de capitular covardemente ao mostrar os personagens repetindo os seus cacoetes espalhafatosos na moldura de um aparelho televisivo durante os créditos finais: ou seja, mais do que “perder a batalha contra a TV” (conforme um letreiro indica), o modelo narrativo de cinema ao qual este filme se vincula reproduz o que de mais rasteiro pode ser identificado nas fórmulas desgastadas deste meio de comunicação de massa. Em seu afã por fazer os espectadores sorrirem, o filme faz com que eles zombem de si mesmos, atolados numa concatenação de chavões popularescos que não oferecem a mínima ameaça ao poder dominante.

 Acompanhemos como tal capitulação se estabelece no roteiro: situado historicamente no auge da ditadura militar no Brasil, a década de 1970, “Cine Holliúdy” apresenta antes dos créditos uma cartela que imita os laudos de censura da referida época, indicando que o referido filme possui “cenas de cearensidade explícita”. Segue-se uma breve e bela seqüência de créditos iniciais, em que rolos de película cinematográfica empoeiradas trazem etiquetas contendo a informação de que o enredo é baseado nas memórias do próprio diretor, que dedica o filme a seu pai.


O que poderia redundar num arremedo cômico de filmes nostálgicos e/ou incisivos como “Cinema Paradiso” (1988, de Giuseppe Tornatore) ou “Adeus, Dragon Inn” (2003, de Tsai Ming-Liang) mostra-se como um mal-feito pasticho semi-melodramático, em que a choradeira de Graciosa, a desenxabida esposa do protagonista (vivida por Miriam Freeland), e os desejos de consumo do garotinho Valdisney assumem-se como principais defeitos compositivos, aos quais se somam a vilanização parcial do prefeito corrupto Olegário Elpídio (Roberto Bomtempo) e do garoto esnobe (João Pedro Delgado) que impede que Valdisney assista a um seriado de TV em sua casa.

As suspeitosas inclusões de um suposto comunista perenemente embriagado e de parrudos “agentes da lei” que se mancomunam interesseiramente com o gerente do cinema também se somam neste panorama ideológico entreguista, que culmina no espalhafatoso desfecho onírico, em que Graciosa antevê seu marido sendo entrevistado, em inglês, para um programa televisivo internacional, por conta do lançamento de “O Arrebenta-Pleura”, filme dirigido pelo filho dele e por seu melhor amigo, na rede de cinemas Francisplex. As percepções antecipadas de João Luiz Vieira fazem pleno sentido, portanto, demonstrando o quanto este filme se filia a um projeto que estabelece o seu próprio fracasso discursivo.

 Por mais que o interessante protagonista Francisgleydisson (muitíssimo bem interpretado por Edmilson Filho) insista em pronunciar odes à sétima arte, promulgando que “enquanto houver vida, haverá cinema”, o modo desrespeitoso com que ele exibe os seus filmes (desobedecendo a ordem dos rolos, ignorando as exigências internas das obras, narrando à revelia os enredos inventados por ele e atribuídos aos filmes clicherosos ansiados pela platéia) deslegitima as suas declarações apaixonadas, convertendo a sua devoção profissional em mera necessidade aquisitiva. Contra este personagem, além da constituição da referida Graciosa, alinham-se também a péssima montagem de Helgi Thor (execrável tanto no paralelismo entre a chegada da família de Francisgleydisson à cidade de Pacatuba e os anseios cinematográficos dos habitantes locais quanto na simples conjunção arrítmica de seqüências) e a superestimação humorística do dialeto “cearensês”, que não justifica a desnecessária opção por exibir o filme legendado para espectadores brasileiros, perfeitamente capazes de identificar e entender as variações regionais da língua portuguesa, conforme falada no país.

Malgrado os meta-filmes do protagonista serem engraçados em seus excessos de desmantelamento formal (vide o segmento em que pai e filho lutam ‘kung-fu’ com extraterrestres), as lamúrias e situações de convívio familiar que antecedem ou sucedem os mesmos são dispensáveis, seja no momento em que Graciosa convence um guarda de trânsito a não multar o seu marido atrapalhado, nas diversos situações em que ela o repreende por estimular a imaginação fantasiosa de Francisgleydisson Júnior (Joel Gomes, ótimo) ou na sua comemorada habilidade para resolver problemas práticos, como a limpeza de um estabelecimento comercial, a resolução dos trâmites de um aluguel ou até mesmo a escolha da canção favorita de seu esposo, “A Noite Mais Linda do Mundo (A Felicidade)”, composta por Odair José.

 Durante quase toda a extensão do filme, há um embate entre cenas escancaradamente chanchadescas (inclusive no que diz respeito à predominância das ‘gags’ isoladas sobre a trama mais geral) e vergonhosas emulações de melodramaticidade rural, como a pobreza do garotinho que sonha em ter uma televisão ou o inconformismo de uma mulher lasciva insatisfeita com o provincianismo de seu namorado deslumbrado. Felizmente, após a inauguração do cinema de Francisgleydisson, o filme toma fôlego e oferece-nos uma hilária constelação de espectadores (estereo)típicos, desde o apostador contumaz até o sujeito que não pára de falar durante a sessão (Haroldo Guimarães, divertidíssimo), sem contar o irritadiço vereador da oposição (Bolachinha) e o cego que insiste em comparecer à exibição do filme e disparar impropérios contra os seus vizinhos (num desempenho espontâneo do cantor Falcão).

 As situações ocorridas durante o(s) filme(s) que o projetor exibe são efetivamente engraçadas – correspondendo justamente àquilo que o diretor havia mostrado no curta-metragem [“Cine Holiúdy – O Astista Contra o Caba do Mal” (2004)], a partir do qual este filme se expandiu – não obstante incorrerem na reprodução inquestionada dos preconceitos dos habitantes, que vão de rejeições chulas a tudo o que se assemelha a “baitolagem” (vide a composição do personagem 6 Volts, por Thomaz Aquino) aos estereótipos que integram a platéia barulhenta, como por exemplo uma lésbica masculinizada obcecada por futebol (Karla Karenina), um pastor evangélico charlatão (interpretado pelo próprio Edmilson Filho) e um padre oportunista e mentiroso (Jorge Ritchie).

Por mais elogiável que o filme possa ser enquanto realização independente de um homem que realmente vivenciou aquilo que apresenta no roteiro, no que tange à ênfase subserviente aos ditames popularescos dos exemplares cinematográficos brasileiros contemporâneos, “Cine Holliúdy” pouco difere das produções levadas a cabo pela Globo Filmes. Destarte, mais que perdida, a batalha contra a TV foi abandonada – e, pior, vendida aos derrotados como piada!

 Wesley Pereira de Castro.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O CONSELHEIRO DO CRIME ('The Counselor') EUA/ Reino Unido/ Espanha, 2013. Direção: Ridley Scott.

Surpreende bastante que um filme dirigido por Ridley Scott e roteirizado por Cormac McCarthy tenha obtido a recepção tão fria (para não dizer indiferente) que “O Conselheiro do Crime” (2013) recebeu por parte da crítica e do público. Dirigido pelo mesmo realizador de obras insignes como “Os Duelistas” (1977), “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979), “Blade Runner, o Caçador de Andróides” (1982) e “Thelma & Louise” (1991), e roteirizado por um dos escritores contemporâneos mais autorais em sua abordagem ao mesmo tempo poética e austera da fereza humana [vide os formidáveis romances “Meridiano de Sangue” (1985) e “Onde os Velhos Não Têm Vez” (2005)], “O Conselheiro do Crime”, paradoxalmente, tem na excelência prototípica de seu roteiro o principal problema: em mais de um momento, as interpretações e/ou a condução directiva do filme ficam aquém do modo mui peculiar com que os personagens mccarthianos externam poderosas reflexões metafísicas enquanto realizam atividades absolutamente triviais ou intensamente criminosas.

Porém, quando Ridley Scott emula a postura tão ágil quanto estilosa de seu irmão recém-falecido Tony Scott [particularmente em “Chamas da Vingança” (2004), com o qual este filme tem algumas semelhanças formais], ele obtém exímios resultados, malgrado não abolir a percepção dos defeitos ostensivos anteriormente mencionados. A cena em que o personagem-título (interpretado de maneira forçosa por Michael Fassbender) atravessa uma procissão, na qual uma mãe mexicana exige providências governamentais acerca do contexto de violência urbana que causou a morte de seu filho, é um ótimo exemplo do quanto a ótima direção fotográfica de Dariusz Wolski contribui para a constatação dos méritos scottianos, tão acertados quanto o foram no admirável filme policial “O Gângster” (2007).

 Apesar da magistral direção de fotografia, da montagem primorosa de Pietro Scalia (colaborador habitual do diretor desde a segunda metade da década de 1990) e da magnânima utilização das músicas contidas na trilha sonora, que vão da eficientíssima partitura original de Daniel Pemberton a canções interpretadas por Beirut [“Santa Fe”], Lila Downs [“Zapata se Queda”] e Paco Mendoza [“La Frekuencia”], além de diversas bandas eletrônicas, uma das maiores fragilidades de “O Conselheiro do Crime” está no modo como o quinteto central de atores tenta se adequar à complexidade estrutural dos personagens que interpretam: se, conforme já foi dito, Michael Fassbender está um tanto afobado como aquele que é chamado apenas por seu apodo advocatício e Javier Bardem decepciona num papel caricato (o do bandido Reiner), Cameron Diaz defende vigorosamente o exotismo – que, eventualmente, beira a estereotipia vilanaz – da lúbrica Malkina, a ponto de, em meio ao absorvente morticínio em que o roteiro do filme se converte do meio para o final, o espectador quase se sinta tentado a torcer por sua sobrevivência, por mais ardilosa e malévola que ela se demonstre, inclusive na cena dispensável em que finge interesse em se confessar para um padre católico (Édgar Ramírez). Brad Pitt, por sua vez, oferece uma interpretação apenas correta como o atravessador Westray e Penélope Cruz está adequadíssima ao seu papel secundário de noiva do protagonista, assassinada de forma brutal como quase todos os outros citados até agora.

 Em dado momento, o entrecho de “O Conselheiro do Crime” parece organizar uma competição interna para apresentar o personagem que morre da forma mais chocante, honra que talvez seja concedida ao motoqueiro decapitado que sabemos ser filho da presidiária vivida por Rosie Perez, uma atriz que, mesmo num papel apenas conectivo, está maravilhosa, o mesmo podendo ser aplicado ao joalheiro holandês interpretado por Bruno Ganz e ao mercenário silencioso e brutal vivificado por Sam Spruell, sem contar a divertida participação não-creditada de John Leguizamo como um traficante de drogas hostil ao protagonista.

 A menção à brevidade participativa da presidiária interpretada por Rosie Perez, que aparece em apenas duas seqüências (quando dialoga com o advogado sobre a prisão de seu filho por excesso de velocidade e o momento posterior em que ela intuitivamente sente a morte do mesmo), torna perceptível mais uma firula enredística, no sentido de que a vinculação entre o protagonista e esta personagem é precipitada e deveras capciosa, o que torna assaz artificial o fato de que, após saberem da decapitação do motoqueiro através de uma manchete de jornal, o advogado e os demais personagens descobrem que são mortalmente perseguidos por mandatários delituosos que gozam de uma existência mefistofélica, tamanha a onisciência de suas condições informativas, a onipresença de suas ordens exterminadoras e a onipotência aplicativa destas últimas.

É nesse quesito que, revertendo sagazmente uma deformidade narrativa, o filme expõe o seu elemento discursivo mais interessante: por mais concretas que sejam as atividades letais do tráfico de drogas, a sua mantença é praticamente abstrata (segundo as nuanças do capitalismo especulativo), o que se confirma no brilhante diálogo em que Westray explica ao personagem-título o quão cúmplices de assassinatos em massa são os consumidores de cocaína que, através de sua aquisição reiterada de produtos ilegalmente contrabandeados, engendram demandas produtivas que põem em ação diversos agentes desencadeadores das discrepâncias sociais mais aberrantes, o que explica – tanto no enredo do filme quanto fora dele – o luxo exacerbado dos milionários que possuem um casal de felinos selvagens no interior de suas mansões e os subempregos disputados por pessoas que não hesitam em limpar sangue humano e restaurar a lataria de caminhões atingidos por projéteis balísticos, transportar cadáveres quase decompostos em meio a contêineres de fezes ou surrupiar os pertences de homens trucidados à queima-roupa...

Ainda que Cormac McCarthy demonstre pleno conhecimento do esquematismo das tramas hollywoodianas, ao fazer com Reiner descreva casualmente ao protagonista o intricado funcionamento do ‘bolito’, mecanismo letal envolvendo um arame motorizado que rasga a artéria carótida em poucos minutos – o que será demonstrado a posteriori, quando o personagem de Brad Pitt é morto em plena luz do dia, numa rua londrina – e exagere em suas pretensões literárias quando leva Westray a afirmar que Jesus Cristo não poderia nascer no México porque seria difícil encontrar três homens sábios e uma virgem no país, ele compõe diálogos superlativos ao longo do filme, como, por exemplo, quando Malkina responde, ao ser tachada de fria por evitar sentir saudades, que “a verdade não possui temperatura”, ou quando é proferido que amigos confessadamente dispostos a morrer por outrem correspondem à constatação de que, na verdade, não se tem nenhum amigo real. O telefonema que o advogado recebe de um misterioso personagem mexicano, que, valorizando uma citação literária sobre a edificação do caminho a partir da própria andança do caminhante, o faz perceber que sua amada fora morta (o que é verificado numa seqüência posterior, quando ela é despejada de um caminhão de lixo, em meio a outros detritos) é um dos diversos momentos em que um falante estende-se demais em seu diálogo, confundindo-se com as instâncias narrativas dotadas de muita sabedoria prática e parafilosófica que abundam nos livros escritos pelo autor.

 A adequação elogiável de Ridley Scott ao seu estilo tão dialogisticamente lacônico quanto verborragicamente preciosista merece ser elogiada, configurando-se num maduro contraponto às adaptações anteriormente realizadas de suas obras, em especial o mediano “Espírito Selvagem” (2000, de Billy Bob Thornton), o arrebatador “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007, de Joel & Ethan Coen) e o enfadonho “A Estrada” (2009, de John Hillcoat). “O Conselheiro do Crime” é, portanto, um filme que tende a ser mais valorizado com o decorrer do tempo, visto que o seu pendor imediatamente profético parece ter assustado os seus receptores, que não assimilaram as profecias mortiferamente tautológicas despejadas através de um intricado quebra-cabeça enredístico mancomunado às convenções fílmicas do gênero policial...

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

BLING RING: A GANGUE DE HOLLYWOOD ('The Bling Ring') EUA/Reino Unido/França/Alemanha/Japão, 2013. Direção: Sofia Coppola.

Sofia Coppola é uma cineasta bastante autoral. Como tal, desde o seu longa-metragem de estréia [“As Virgens Suicidas” (1999)], ela deixou assaz demarcadas as suas obsessões temáticas: os conflitos geracionais, o fascínio ambíguo pelas celebridades midiáticas [ambíguas em essência] e o flerte imersivo com as culturas ‘pop’ e/ou ‘indie’.

Em “Encontros e Desencontros” (2003), sua obra-prima até então, ela demonstrou uma maturidade sobressalente em relação a estes assuntos, de maneira que os longas-metragens seguintes, em suas sutis metamorfoses estilísticas, apenas ratificam o que já havia sido anunciado no primeiro filme: em “Maria Antonieta” (2006), por exemplo, os anacronismos vinculados à inserção proposital de artefatos e cantos contemporâneos numa narrativa romântica situada no século XVIII funcionavam como emulações indiciais dos temas anteriormente destacados; e, em “Um Lugar Qualquer” (2010), filme de temática um tanto mais sóbria, tais temas ressurgem no modo donairoso com que um ator afamado se relaciona com a filha adolescente que praticamente desconhecia.

 Em “Bling Ring: A Gangue de Hollywood” (2013), os traços autorais da diretora são misturados de forma astuta e veloz graças ao brilhantismo da montagem de Sarah Flack (colaboradora habitual da cineasta desde o seu segundo filme), que inteligentemente dirime o perigo de a obra tornar-se enredisticamente limitada por sua obediência reconstitutiva aos fatos reais que engendraram a trama, descritos originalmente numa reportagem da jornalista Nancy Jo Sales, em que se baseia o roteiro. Este, escrito pela própria Sofia Coppola, não se limita a contar esta absurda história verídica, mas opera uma interessantíssima reversão narrativa, em que, ao mesmo tempo em que critica os estereótipos modistas que impulsionaram os rompantes criminosos dos protagonistas, lida com os chamarizes cinematográficos e cibernéticos de maneira assumidamente dúbia, a ponto de algumas celebridades aparecerem no filme interpretando a si mesmas, como Kirsten Dunst, parceira freqüente da diretora, e Paris Hilton, intensa e inclementemente citada nos diálogos.

Dedicado ao fotógrafo Harris Savides, falecido em 06 de outubro de 2012 por complicações de um câncer cerebral, este filme ostenta o seu brilhantismo potencial desde os exuberantes créditos de abertura, em que os acordes altissonantes e acelerados de uma canção [“Crown on the Ground”, de Sleigh Bells] sobrepõem-se a imagens de jóias e roupas de grifes famosas, devidamente aludidas e merecedoras de agradecimentos colaborativos nos créditos finais, muito mais brandos, ao som da oportuna “Super Rich Kids”, de Frank Ocean (com participação de Earl Sweatshirt).

A direção de fotografia compartilhada entre o próprio Harris Savides e Christopher Blauvelt proporciona momentos tão fantásticos quanto inesperados, como as extraordinárias seqüências no interior de boates, em que os protagonistas são freqüentemente mostrados fotografando a si mesmos, em ângulos cingidos, através de seus telefones celulares, e o potente instante, filmado em ‘contra-plongeé’, a partir da câmera embutida de um computador, em que o afetado Marc Hall (Israel Broussard) rebola, usa maquiagem feminina e consome drogas inaláveis ao som de “Drop it Low”, de Ester Dean e Chris Brown. Na trilha sonora, inclusive, merece destaque o modo genial com que a diretora mescla as sonoridades apaziguadoras da banda francesa Phoenix [“Bankrupt!”] e do músico Brian Reitzell [que compôs “The Bling Ring Suite”] com as irrupções frenéticas de Kanye West [“Power” e “All of the Lights”], M.I.A. [em “Bad Girls” e “Sunshine”], Reema Major [“Gucci Bag”] e Azealia Banks [“212”], entre tantos outros artistas.

 Não obstante ser dotado da perspectiva subjetivo-confessional que concatena e incita as demais personagens, Israel Broussard oferece uma interpretação tão travada quanto os comportamentos sociais do homossexual enrustido que vivifica, mas isso não impede que seja reverenciada a homogeneidade do excelente elenco, que inclui Leslie Mann, ótima como sempre, no papel da mãe fútil de uma das ladras, insistentemente mostrada em arremedos de rituais religiosos inspirados por ‘best sellers’ de auto-ajuda. Porém, quem mais se destaca no filme são Katie Chang, no papel da dissimulada Rebecca, Claire Julien, que personifica a deslumbrante Chloe, e Emma Watson, irreprochável como a carente e deslumbrada Nicki Moore, que reaparece depois de serem anunciadas as sentenças prisionais dos personagens, sendo entrevistada pelo âncora de um programa sobre a vida íntima das celebridades, comentando que estivera na mesma cena que Lindsay Lohan, atriz juvenil continuamente presa por estar dirigindo embriagada. Quando Nicki olha para a tela da TV e divulga orgulhosamente o seu ‘blog’, percebemos o quanto o roteiro foi sagaz na demonstração da incapacidade da geração à qual ela pertence em assumir as responsabilidades por seus delitos: a fama instantânea desencadeada pela cleptomania de luxo que ela põe em prática a converte num pasticho de celebridade, o que é previamente antecipado no enredo a partir da afinidade dos personagens com jargões e letras de canções que valorizam as atitudes de ‘bitches’ [vadias] e ‘gangstas’ [malandros] e no inusitado questionamento que Marc faz a Rebecca: “se nós deixarmos de ser amigos, tu vais roubar a minha casa?”. “Bling Ring: A Gangue de Hollywood” é, sobretudo, um poderoso testemunho de época! 

 Numa comparação com os demais filmes da diretora, esta obra mais recente revela-se deficitária em mais de um aspecto – em especial, na confecção de seu roteiro, muito mais “óbvio” que os anteriores – mas, ainda assim, a insistência discursiva sobre as características peculiares (e tão influenciáveis quanto influenciadoras) dos jovens hodiernos, para além de suas condições de classe ou configurações gentílicas, evidencia o quanto a diretora é percuciente em seu olhar autoral, a ponto de permitir que o filme pareça se confundir com o que está sendo criticado, já que o espectador é mergulhado em situações de intensa percussividade somática, introjetando o frenesi dos personagens em sua praticamente ininterrupta rotina de festas, culto à própria imagem e consumo abundante de álcool, música dançante e cocaína.

Se, na quinta vez em que a gangue juvenil invade a residência de Paris Hilton, o chiste já não é tão interessante (ou surpreendente), a preparação noticiosa para o contexto em que esse tipo de invasão é possível salta aos olhos, visto que muitas das mercadorias (supérfluas) furtadas são facilmente substituíveis ou ignoradas pelos milionários lesados.

 A lógica do valor de uso é completamente esvaziada, sendo hipertrofiado um simulacro de valor de troca que perpetua, dentro e fora das telas, as crises falsamente desejosas – e encadeadas de maneira psicótica – que acometem os personagens, atingem alguns dos espectadores e, infelizmente, não ficarão restritas a este filme, que já é a versão ficcional de uma patética situação real. Insistindo no que já foi dito, estivemos diante de um verdadeiro filme-testemunho, que, apesar de fadado a envelhecer muito rápido, diagnostica de maneira pluridimensional as fraquezas e destrezas da faixa etária que, não por acaso, é o público-alvo dominante dos produtos hollywoodianos atuais...

 Wesley Pereira de Castro.

domingo, 20 de outubro de 2013

SERRA PELADA (Brasil, 2013). Direção: Heitor Dhalia.

O interrogatório em ‘close-up’ a que o personagem Juliano (Juliano Cazarré) é submetido no plano que antecede o crédito de abertura deste filme promete interessantíssimas reviravoltas no roteiro escrito pelo próprio diretor, em colaboração com Vera Egito: quando perguntado acerca de sua filiação, Juliano declara que é filho de pai desconhecido; insiste para o interrogador que a sua profissão é a de garimpeiro; e, quando lhe questionam se ele já assassinou alguém ou se está envolvido com tráfico de drogas, ele silencia, somente voltando a se expressar verbalmente quando defende energicamente a honra de um amigo hospitalizado, acusado de também estar envolvido em esquemas criminosos. Surge, então, o título do filme, entremeado por recortes telejornalísticos sobre a febre do ouro na região de Serra Pelada, situada no município paraense atualmente batizado como Curionópolis. Daí por diante, o vigoroso potencial sociológico, dramático e eminentemente cinematográfico que poderia emergir a partir desta premissa inicial é, infelizmente, acometido por uma vacuidade atroz...

Narrado pelo personagem Joaquim – chamado apenas de Professor ao longo do filme – da mesma forma jargonada e onisciente que caracteriza “Cidade de Deus” (2002, de Fernando Meirelles & Kátia Lund) e “Tropa de Elite” (2007, de José Padilha), “Serra Pelada” (2013) tem na composição deste protagonista um de seus defeitos mais evidentes, no sentido de que, para além dos esforços actanciais de Júlio Andrade, sua vivência é completamente inorgânica num cotejo com os demais elementos contextuais do filme: não apenas sua amizade de infância com o turrão Juliano é inverossímil como as suas reações desenxabidas tornam praticamente nula a sua presença em cena, sendo desprovidas de veemência emotiva as agruras em que ele se envolve, como ser traído por causa de dinheiro pelo melhor amigo e ter corpo e alma vilipendiados por uma jornada de trabalho inglória.

O que justifica a incoerente perspectiva deste personagem, já que tudo o que acontece recebe o seu crivo analítico, é precisamente a competência dos atores que o circundam, destacando-se a breve e desperdiçada aparição de Matheus Nachtergaele como o ambicioso Carvalho, o sutil cerceamento do vilanaz Lindo Rico (numa surpreendente e espetacular atuação de Wagner Moura), e a consistência compositiva do personagem Juliano, cujo intérprete homônimo dota-o da rudeza imediatista associada ao apelido Grandão desde a supracitada seqüência do interrogatório, que, quando reinserida linearmente na narrativa, não possui o mesmo ímpeto. O motivo: a cadência de eventos enredisticamente atrelados aos efeitos psicologicamente destrutivos da “febre do ouro” é frouxa, o que desencadeia um desfecho absolutamente anticlimático, em que, depois de enviar ao atabalhoado Joaquim um cheque e uma fotografia do momento feliz em que “bamburraram” (ou seja, encontraram uma larga quantidade de ouro, segundo a gíria local), Juliano invade a sede das atividades de Lindo Rico com a intenção de assassiná-lo vingativamente. No auge do que seria mais uma pretensa seqüência de ação, o filme acaba!

A conformação gangsterista das atividades criminais que balizam o roteiro de “Serra Pelada” distancia-no até mesmo do impactante viés telejornalístico apresentado no início e faz com que ele se assemelhe – guardadas as devidas proporções imitativas – a filmes policiais hollywoodianos, como as sagas mafiosas conduzidas por Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese, sendo evidente o quanto Heitor Dhalia tentou estresir alguns dos cacoetes desses diretores, ignorando os próprios traços estilísticos que concatenam obras tão variegadas quanto o genial curta-metragem “Conceição” (2000), o equivocado “Nina” (2004), o pitoresco “O Cheiro do Ralo” (2006) e o ótimo “À Deriva” (2009).

 Se, em suas realizações anteriores, Heitor Dhalia destacava-se por parecer (e, eventualmente, conseguir ser) um diretor modernoso, em “Serra Pelada”, as exigências produtivas tornaram-se imperativas e a obra oferece-se de maneira incompleta, amorfa e esvaziada em mais de um aspecto, principalmente no que diz respeito à intragável combinação entre a montagem de Márcio Hashimoto Soares [também responsável pela disritmia do execrável “Faroeste Caboclo” (2013, de René Sampaio)] e a direção fotográfica de Lito Mendes da Rocha, que deixam o filme negativamente evanescente: raramente consegue se perceber algo em foco durante a projeção, tamanha a constância de cortes bruscos e da câmera em perene movimento epiléptico, sendo difícil averiguar os demais elementos cênicos sob tal tremelique, o que afeta sobremaneira a interpretação de Sophie Charlotte como a prostituta Tereza, deveras caricatural em suas pretendidas nuanças emocionais. A cena em que ela tenta fugir dos perseguidores enviados por Juliano, ao som de “Eu Te Amo, Meu Amor”, de Frankito Lopes (um dos artistas que compõem a ótima seleção de canções que assessora a partitura eficiente de Antonio Pinto), é horrível em sua vacuidade efetiva: ouvimos a canção, percebemos que há pessoas correndo na tela e entendemos o contexto sarcástico da circunstância – em comunhão direta com o cinismo enumerativo da narração de Joaquim – mas, visualmente, a seqüência é pífia, um subaproveitamento dos diversos talentos envolvidos.

 Para que não se diga que o filme é de todo ruim, algumas imagens fugidias de Juliano sobre um terreno arenoso plano e avermelhado e as reconstituições de fotografias antigas de Serra Pelada em pleno apogeu aurífero, misturadas a trechos de registros documentais da época, demonstram que, se não fosse por causa da montagem aceleradíssima e inconveniente, o trabalho do fotógrafo Lito Mendes da Rocha não seria tão destituído de validade estilística. O mesmo pode ser dito sobre a inculcação tramática das atividades de garimpeiros homossexuais, reduzidos a uma inimizade quase espectral com Juliano, principalmente na figura do agressivo Marcelo (Liu Arisson). As observações pontuais sobre a aceitação tangencial dos comportamentos pederásticos pelos trabalhadores desprovidos de álcool e mulheres, pelo menos até que as notícias de contaminação pela AIDS se espalhem enquanto mais um indício de periculosidade paranóica, é um detalhe bastante relevante e que poderia render uma portentosa subtrama, caso o roteiro fosse dotado de sustentáculos sociológicos consistentes, mas, infelizmente, as intervenções dos personagens homossexuais no filme reduzem-se a pendengas tão gratuitamente provocadas quanto rapidamente resolvidas (ou interrompidas).

 O que sobra de realmente válido em “Serra Pelada”, em sua demonstração superficial de como milhares de homens, seduzidos pelos delírios de riqueza, “cavaram uma pirâmide ao contrário, mudando literalmente um morro de lugar”, é o vigor do elenco, formado por atores mui competentes que foram sufocados por condições técnicas que extraíram a humanidade de suas vivificações, fazendo com que o filme seja lancinantemente contaminado pela estrutura geograficamente corrosiva de sua trama. Ao final, as diluições de caráter que são mencionadas enfaticamente na narração de Joaquim impregnam o próprio filme, que é inconcluso, desalinhado, dramaturgicamente inane e contributivamente parco na filmografia dotada de personalidade de Heitor Dhalia. Por mais que seja intentada uma correlação situacional entre o que acontecia no garimpo e eventos históricos mais gerais da História do Brasil, como as lutas estudantis pelas eleições diretas, o roteiro ignora situações-chave, como, por exemplo, as intromissões diretas do governo militar sobre a exploração dos recursos minerais da região Norte da nação.

As imagens televisivas que aparecem vez por outra são desprovidas de criticidade, tanto quanto o são as tentativas insistentes dos filmes produzidos sobre a égide da Globo Filmes em demonstrar que a emissora televisiva correspondente observou de forma emergente as intensas transformações sociais brasileiras da década de 1980. Por estes e outros motivos, “Serra Pelada” é uma verdadeira ode ao desperdício!

 Wesley Pereira de Castro.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O ABISMO PRATEADO (Brasil, 2011). Direção: Karim Aïnouz.

Apesar de a protagonista ser Alessandra Negrini e de a sua personagem alvoroçadamente angustiada estar presente em quase todas as cenas, o fato de este filme iniciar e terminar sob a perspectiva dos homens com que ela se envolve não é nada casual. Alegadamente inspirado na canção “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque, cujo maior mérito é ser conduzida a partir de um eu-lírico feminino gradativamente autoconfiante, o roteiro de “O Abismo Prateado”, escrito por Beatriz Bracher em colaboração com o próprio diretor, ignora tudo aquilo que é relevante na letra da canção, desde o cínico desejo de felicidade declarado pelo amante que abandona a mulher até a tardia conquista de auto-estima desta última a partir da percepção de que fora amada “bem mais e melhor” por outros homens. O que resta é uma translação malfeita do trecho compreendido nestes versos: “quando você me deixou, meu bem/ (...)/ quis morrer de ciúme, quase enlouqueci/ mas, depois, como era de costume, obedeci”.

Difícil entender como o mesmo artista responsável pela obra-prima “Madame Satã” (2002) e pelo encantador “O Céu de Suely” (2006) – sem contar o excepcional “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009, co-dirigido por Marcelo Gomes) – se deixou envolver num projeto tão superficial e entulhado de preconceitos de classe, que, se possui algum mérito infinitesimal, este está justamente em sua assunção involuntária como sintoma composicional: o filme é muito elucidativo em sua representação do cotidiano desenxabido da classe média carioca, em que comprar uma passagem de avião de um dia para o outro e hospedar-se solitariamente num motel de luxo são atitudes corriqueiras. Ou seja, se “O Abismo Prateado” acerta em alguma coisa é justamente quando ele mais erra na consecução das pretensões directivas, bastante evidentes, especialmente no que diz respeito ao desenho de som.

 Dotado de um estilo consagrado, entre diversas virtudes, pela excelente utilização da trilha sonora, neste filme Karim Aïnouz perpetua associações constrangedoras com músicas xaroposas, principalmente na ridícula seqüência em que “You Make Me Feel Brand New”, da banda Simply Red, supostamente executada de forma diegética na cena em que a protagonista se senta no táxi de uma motorista (Carla Ribas) também atormentada por problemas amorosos, permanece sendo ouvida (de forma igualmente distanciada) quando ela desce do veículo. A pretensa ironia dramática relacionada à defasagem entre o tom positivamente declarativo da canção e o comportamento lamurioso da personagem soçobra consideravelmente dada a perniciosidade deste prolongamento não-diegético, que também acomete os momentos posteriores àquele em que a protagonista Violeta dança ao som de “Maniac”, de Michael Sembello, numa boate, ou quando ela ouve, por acaso, “Quando um Grande Amor se Faz”, na versão de Cleiton e Camargo, numa sorveteria praiana.

A entrada em cena da pequena Maria Isabel (Gabi Pereira), cuja simpatia é vergonhosamente forçada no instante em que ela dança ao som de “Só Love”, de Claudinho & Buchecha, só deixa ainda mais evidente o quanto o diretor foi tremendamente infeliz na seleção musical, não no que diz respeito à qualidade das canções – até porque ressignificar canções consideradas bregas ou excessivamente ‘pop’ é um dos elementos mais aplaudíveis de seus filmes anteriores [vide o seu ótimo segmento na produção coletiva “Desassossego (Filme das Maravilhas)” (2010)] – mas no modo desengonçado com que as mesmas aparecem. As exceções estão a cargo da partitura original de Tejo Damasceno, Rica Amabis e Dustan Gallas, em especial na cena da academia de ginástica, cujos acordes eletrônicos ouvidos num determinado ambiente hipertrofiam o mal-estar emotivo sentido por Violeta depois que escuta a mensagem de abandono de seu marido Djalma (Otto Jr.), somente mais tarde ouvida pelo espectador.

Voltando à questão das perspectivas masculinas que iniciam e terminam o filme – e que, por dedução, transformam o langor de Violeta num interstício secundário – vale lembrar que as primeiras imagens do filme mostram Djalma nadando à noite numa praia e, em seguida, caminhando de sunga pelas ruas circunvizinhas ao seu apartamento, ostentando uma expressão de enfado que antecipa a declaração de sufocamento e de desamor que ele grava na caixa postal do telefone celular de Violeta. O problema é que a cópula entusiasmada que se segue e o diálogo simpático que é travado entre ele e seu filho adolescente (João Vítor da Silva), através da porta vítrea de um banheiro, tornam inverossímil a ruptura súbita da relação amorosa (e familiar) duradoura que fora compartilhada entre estes personagens. Do mesmo modo, a rapidez com que o humilde Nassir (Thiago Martins, numa interpretação realmente valorativa) se envolve com a protagonista é dotada de semelhante imponderação, sendo deveras afoito o plano subjetivo no interior da van conduzida por ele, ao som de uma péssima versão de “Olhos nos Olhos” cantada pela graciosa Barbara Eugênia, quando sabemos que ele continua a pensar na mulher que acompanhou até o aeroporto, ao lado da filha pequena.

Aliás, as situações protagonizadas por Maria Isabel são insuportáveis, tamanho o descaramento forçoso na exalação do conjecturado carisma da menina, que desaparece em meio a detalhes desleixados como a exclamação “porcaria de vida!” no momento em que ela defeca ou o desdém frente a um sorvete de morango quando sabemos que a garota vive numa situação economicamente mui dificultosa com o pai, a ponto de precisar dormir no veículo que ele adquirira recentemente. As brincadeiras infantis no interior do aeroporto são o píncaro da desconexão classista, francamente vergonhosas quando comparadas à leveza das cenas do dia-a-dia nordestino mostradas no já citado “O Céu de Suely”.

 No afã por encontrar um paralelo conteudístico com os variegados equívocos deste filme, talvez se possa encontrá-lo na telessérie “Alice” (2008), roteirizada e eventualmente dirigida por Karim Aïnouz, novamente em parceria com Marcelo Gomes, para o canal fechado HBO. Os enredos focados no arrivismo empresarial da protagonista desta série televisiva – que também deu origem a um díptico de telefilmes, sendo um deles [“Alice: O Primeiro Dia do Resto da Minha Vida” (2010)] dirigido pelo cineasta – têm a ver com a entrega precipitada de Violeta à depressão deambulatória que se segue ao repúdio marital inesperado de que foi vítima.

Se, por um lado, a cena em que ela não consegue se concentrar numa de suas atividades como dentista por causa da ansiedade emotiva é inconvincente, bem como a queda de bicicleta que ela sofre e que será mencionada ao longo do restante da projeção por conta das feridas epidérmicas decorrentes da mesma, por outro, o instante em que Violeta senta-se calmamente no matagal próximo ao local onde se instalou a filial de uma barulhenta agência de construção imobiliária é brevemente elogiável, tanto quanto as aparições de expressivos transeuntes em cenas de amostragem urbana. Afora isso, “O Abismo Prateado” é uma desagradável perversão do enredo de uma das mais belas canções românticas do Brasil, transformado na extensão vendável de um manual de auto-ajuda psicológica para mulheres aquisitivamente bem-sucedidas que não sabem lidar com imprevistos emocionais. Um lamentável retrocesso na filmografia de um dos mais interessantes cineastas brasileiros surgidos nos últimos anos!

 Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

GRAVIDADE ('Gravity') EUA/Reino Unido, 2013. Direção: Alfonso Cuarón.

Num momento providencial deste filme, descobrimos que a morte acidental de sua filha num jardim-de-infância foi o fato traumático que permitiu que a Dra. Ryan Stone, personagem de Sandra Bullock, se tornasse tão abnegada em relação ao seu trabalho como médica assistente da NASA. Nos créditos finais, o diretor Alfonso Cuarón dedica o filme à sua própria mãe. Apesar de aparentemente distanciadas, estas duas percepções são essenciais para compreender a função desempenhada por “Gravidade” (2013) na filmografia do cineasta, celebrado por sua habilidade técnica – em especial, no que diz respeito ao uso elaborado de planos-seqüências – mas também dotado de autoralidade, principalmente no que diz respeito à importância que a noção de maternidade desempenha em seus longas-metragens.

Se, por um lado, o tema da orfandade é central em obras como “A Princesinha” (1995) e “Grandes Esperanças” (1998), além de ecoar significativamente em “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” (2004), por outro, ele é transfigurado em “E Sua Mãe Também” (2001), cujo magistral roteiro ressignifica o tema da rebeldia juvenil que, numa olhadela bastante superficial, associaria este filme a outras produções protagonizadas por adolescentes ávidos por fazerem sexo. A ligação direta entre “Filhos da Esperança” (2006) e o filme mais recente, ambos atrelados ao gênero ficção científica, mas sob vieses completamente distintos, deixa ainda mais evidente o quanto a temática anteriormente abordada é provida de interesse analítico, não obstante obnubilada pelos malabarismos directivos e pela versatilidade consistente dos enredos.

A constância quase obsessiva de signos maternais/reprodutivos (a Dra. Ryan flutuando como se fosse um feto após ter se despido, pedaços de aeronave que adentram a atmosfera terrestre como se fossem espermatozóides fecundando um óvulo, nosso planeta antonomasiado como “mãe Terra”, etc.) leva-nos a constatar que, por detrás das limitações cíclicas da cadeia de perigos espaciais que ameaçam a vida da Dra. Stone, o que é privilegiado é a associação entre a sua gana por sobrevivência e a redefinição de seu instinto maternal, sendo a imagem final – um ‘contra-plongée’ da personagem, pisando firme na lama do local em que aterrissou – uma precipitada reelaboração darwiniana da primazia evolutiva da mulher sobre os demais espécimes animais, suspeitosamente contaminada pelo triunfalismo estadunidense que invade o enredo.

 Por mais que as convenções do gênero tornem verossímil o sobejo de ameaças cósmicas que perseguem Ryan, a insistência no enfoque da bandeira norte-americana de seu uniforme de astronauta é dotada de um sentido muito maior que a mera casualidade gentílica, o que se torna absolutamente patente quando é noticiado que o satélite de um país outrora comunista foi autobombardeado por um míssil e na exposição das dificuldades experimentadas pela protagonista quando tenta manobrar veículos espaciais respectivamente controlados pela Rússia e pela China, cujas diferenciações alfabético-tipográficas aparecem como problema nodal, a ponto de ela brincar que ‘no sabe hablar chino’ quando se depara com um teclado de computador confeccionado a partir de ideogramas chineses. Todo este conjunto de empecilhos culturais (estrangeiros) para a sobrevivência da Dra. Stone em pleno espaço externo do planeta Terra é dotado de uma oportuna constituição nacionalista, que prejudica sobremaneira os pretendidos êxitos roteirísticos do diretor e de seu filho Jonás Cuarón. Em outras palavras, malgrado ser otimamente dirigido, eficientemente montado (pelo próprio diretor, em colaboração com Mark Sanger) e brilhantemente fotografado, o roteiro de “Gravidade” parece tão atirado a esmo quanto a personagem principal, em mais de um momento do filme.

 Além de ter trabalhado em quase todos os filmes do diretor Alfonso Cuarón, o fotógrafo Emmanuel Lubezki também é conhecido por sua colaboração nos filmes recentes do diretor Terrence Malick, o que justifica o magnificente pendor naturalista na derradeira seqüência, quando uma belíssima tomada submarina permite que percebamos um anuro nadando ao lado de Ryan, quando ela tenta subir à superfície para respirar. Ao conseguir emergir, mosquitos circundam-na, antes que ela descanse na água por alguns minutos, antes de levantar-se tão imponentemente quanto uma heroína dos antigos filmes B de ficção cientifica, especialmente “O Ataque da Mulher de 15 Metros” (1958, de Nathan Juran). Não seria inadequado vincular o modo impávido com que a protagonista, decidida a sobreviver, adentra a paisagem natural desconhecida ao modo justificadamente invasivo com que as incumbências de colonização norte-americana são organizadas na contemporaneidade, através do soslaio simbólico preponderante da dominação cultural. Nessa perspectiva, o extraordinário recurso da filmagem em 3D é paradigmático, visto que a suscitação de reações somáticas por parte dos espectadores em relação aos objetos rapidamente deslocados na tela possibilita uma nova abordagem do caráter técnico das máquinas ópticas que, de acordo com o teórico Jean-Louis Baudry, é relacionado à prática científica (no caso, ao aprimoramento tecnológico das formas cinematográficas) “para mascarar não apenas o seu emprego nas produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são suscetíveis de provocar. Sua base científica lhes assegura uma espécie de neutralidade e evita que se tornem objeto de um questionamento”.

Não é por acaso, portanto, que, graças ao uso genial de longos planos, às vezes realizando voltas de 360º, a visão do espectador confunda-se com a de Ryan Stone à deriva no espaço, tamanho o excesso proposital de ângulos que se confundem com o ponto de vista da protagonista no interior de seu capacete tecnologicamente muito desenvolvido. A periculosidade inerente a quase tudo o que circunda a Dra. Stone leva-nos a introjetar o seu ímpeto sobrevivencial, que se sobrepõe rapidamente ao anterior alquebramento deambulatório decorrente da perda de sua filha, quando ela confessa, entristecida, que costumava dirigir seu automóvel a esmo, quando saía do trabalho num hospital, pois não sentia ânimo de retornar para um lar solitário. No quartel final do filme, Ryan deixa claro que quer “voltar para casa” e, por causa disso, é dotada de uma determinação física até então entorpecida. A forma do filme está rigorosamente submetida ao seu conteúdo ideológico, portanto!

 Tudo o que foi mencionado até este ponto faz com que a avaliação qualitativa deste filme seja balizada por aspectos que transcendem a pretensa evolução das técnicas cinematográficas (já que evolução parece um termo-chave do filme, cuja imputação nauseante sobre o acompanhamento espectatorial assume-se como uma espécie de metáfora compartilhada dos enjôos físicos de uma gravidez), mas que, ao mesmo tempo, fixam-se criticamente a tais aspectos, no sentido de que os estratagemas de contaminação ideológica destacados por Jean-Louis Baudry são demasiado evidentes.

Em outras palavras: por mais impressionante que seja esta obra quando analisamos os seus elementos técnicos de forma desmembrada (a direção é excelente, as atuações de Sandra Bullock e George Clooney são muito boas, a fotografia é acachapante), numa percepção mais geral, “Gravidade” soa mecânico em seu entulhamento de riscos físicos e em sua progressão repetitiva de situações que situam a vida da Dra. Stone no limiar invariável da superação. Conforme antecipado, tanto o roteiro é dramaticamente esvaziado em sua sujeição disrítmica às explosões, acidentes, incêndios e quedas (in)esperadas quanto a trilha sonora de Steven Price é aplicada de forma disfuncional em situações que seriam muito mais efetivamente assustadoras se conduzidas em silêncio (vide o instante genial em que a Dra. Stone crê que seu companheiro de equipe fora resgatado no módulo espacial chinês em que se encontrava).

Para além de seus alucinantes (no bom e no mau sentido) momentos de concatenação imagético-sonora, “Gravidade” é um filme que empilha diversos arremedos de clímaxes sensórios com o intuito de apregoar um discurso: a fim de caminhar novamente sobre a Terra que antes lhe intimidava por causa da generalização de um trauma familiar (hipertrofiado no espaço sideral quando a fotografia da família de um astronauta falecido flutua sobre o seu rosto destruído por uma colisão objetal), a Dra. Ryan Stone precisa atender ao conselho que seu amigo insistentemente bem-humorado lhe concede quando está prestes a zanzar pelo espaço. Diz-lhe ele: “tu precisas aprender a deixar ir”... A minuciosa correlação entre o que é percebido pelo espectador e aquilo que é visto pela protagonista, através da imitação de seu olhar, serve como canal de transmissão ideal deste conselho, que atrela-se a uma conjuntura de validação ufanista comum em Hollywood mas dissonante em relação à obra cuaroniana.

Aqui, maternidade e patriotismo se confundem de forma perniciosa, em que a habilidade elogiável no uso da perspectiva tridimensional serve para que o filme esteja dotado de uma “espécie de aparelho psíquico substitutivo, respondendo ao modelo definido pela ideologia dominante”, para citar novamente o vaticínio de Jean-Louis Baudry em seu famoso artigo de 1970, “Cinema: Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base”, que nos ajuda bastante a compreender as intenções sub-reptícias do aprimoramento técnico deste filme.

 Se, nos longas-metragens prévios do diretor, o que acontecia no entorno (sociopolítico) dos personagens estabelecia as transformações comportamentais que eles demonstravam ao longo de ótimos roteiros, em “Gravidade”, a motivação sobrevivencial da protagonista psicologicamente abalada é a mera explosão centrífuga de uma propensão ao domínio ambiental (e geográfico) que se encontrava adormecido na protagonista e que é imprescindível – segundo os desígnios condutivos do entrecho – que também esteja prestes a ser despertado nas reações do público. A ode embevecida à maternidade levada a cabo por este filme não é contingente, estando a propensão tematicamente autoral de Alfonso Cuarón infelizmente cooptada no processo de legitimação colonizatória estadunidense.

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

SEM DOR, SEM GANHO ('Pain & Gain') EUA, 2013. Diretor: Michael Bay.

Não ter visto na íntegra “Os Bad Boys” (1995) e sua continuação “Bad Boys II” (2003) é um pormenor que interfere mui negativamente na apreciação deste “Sem Dor, Sem Ganho” (2013). O motivo: este díptico de filmes possui a chave interpretativa mais ampla para se verificar que, ao contrário do que parece, o longa-metragem mais recente de Michael Bay não difere tão substancialmente em relação aos demais filmes do diretor.

Por mais que tal obra seja absolutamente distinta em seus parâmetros de financiamento, os cacoetes de direção e a composição excessivamente bem-humorada dos protagonistas assemelham-se bastante ao que já fora percebido em “A Rocha” (1996) e “Armageddon” (1998). Entretanto, a sagacidade do roteiro, escrito por Christopher Markus e Stephen McFeely a partir de um caso escandalosamente real, relatado pelo jornalista Pete Collins, destaca-se de qualquer outro capítulo da filmografia bayniana justamente por ser radicalmente verossímil: neste filme, em meio às explosões e batidas e perseguições de carros que caracterizam o seu estilo, o que mais impressiona é a ostensividade minuciosa da caracterização arquetípica do estadunidense médio (e dos imigrantes que prontamente assimilam o ‘american way of life’), não por acaso o espectador ideal de qualquer um de seus filmes anteriores.

Comparar “Sem Dor, Sem Ganho” com “Transformers” (2007), para buscar uma associação imediata, é um exercício que denota o quanto o filme ora resenhado é inteligentíssimo em sua crítica severa à ideologia espalhafatosa do ‘american dream’, despejada ano após ano através de dezenas de superproduções hollywoodianas. Se, por um lado, é audacioso (e precipitado) demais louvar os arremedos de autoria levados a cabo por Michael Bay [utilizar a noção de “autoria” em relação ao corpus raramente elogiável deste diretor é desrespeitar a historiografia do conceito!], por outro, não há como negar que tal cineasta mantém-se rigorosamente coerente ao que já demonstrara em todos os seus filmes anteriores, para além das diferenças alardeadas. É em relação a estas aparentes diferenças que devemos nos deter daqui por diante...

Magistralmente conduzido por um excelente Mark Wahlberg, desde o início o filme deixa patente o seu brado ideológico: “eu acredito em malhar!”. O tom que o protagonista Daniel Lugo utiliza para pronunciar este aforismo é exatamente o mesmo que um dos apadrinhados de Don Vito Corleone inicia uma súplica na famosa cena de abertura do clássico “O Poderoso Chefão” (1972, de Francis Ford Coppola), o que nos leva a uma continuidade identitária: Daniel aprendeu o que (acha que) sabe através dos filmes que viu, sendo a obra mencionada justamente uma de suas produções favoritas.

A reiteração de situações policiais ou investigativas antecipadas nos dois filmes citados na primeira linha deste texto confirma que, dentre os filmes que aprimoraram o cabedal gnosiológico de Daniel Lugo estão também os filmes de Michael Bay, que, em meio às suas exortações pragmáticas, demonstra-nos como descobrir a proveniência de um telefonema (digitando *69 no teclado do aparelho). Os variegados jargões fisiculturistas que Mark Wahlberg entorna ao longo da projeção, incluindo aquele que justifica o título do filme, são vitais para a fidedignidade do ator ao seu personagem, o que, felizmente, também acontece com os seus parceiros de encenação.

 Dentre as suas inúmeras virtudes, a honestidade compositiva do trio de protagonistas é um dos maiores méritos de “Sem Dor, Sem Ganho”: além da ótima interpretação do ator principal, Anthony Mackie e, principalmente, Dwayne Johnson merecem ser ovacionados por suas entregas actanciais impressionantemente funcionais.

Se o intérprete do impotente Adrian parece exagerar na caricatura, mas cuidadosamente não se deixa incorrer na estereotipia deslocada (afinal, indivíduos estúpidos como aquele existem aos borbotões!), o astro eventualmente cognominado como The Rock surpreende por seu trabalho delicado como o cocainômano convertido ao catolicismo que crê que a sua impressionante habilidade para derrubar outras pessoas numa luta seja um dom divino, sendo particularmente laudatória a sua aparição final, cantando no coral cristão de uma penitenciária. Por mais grandiloqüentemente pecaminoso que seja o seu personagem, suas atitudes estouvadas são justificadas tanto por sua rudeza nata quanto pelos efeitos colaterais de seu vício progressivo e falsamente combatido, chegando ao extremo de as conseqüências (auto)destrutivas da cocaína aparecem escritas na tela. Apesar de acometida por algumas irregularidades do entrecho, a interpretação de Dwayne Johnson é muito melhor que a de veteranos como Tony Shalhoub (o desagradável Victor Kershaw), Peter Stormare (numa breve aparição como um corrompido médico urologista) e Ed Harris (como o pacato detetive aposentado Ed DuBois III), que, apesar das boas presenças, isoladamente respondem pelos aspectos menos interessantes do filme.

 Por mais que as câmeras lentas e as propensões ao ‘flashback’ da seqüência inicial, em que o instrutor de halterofilismo Lugo é atropelado por um automóvel quando é perseguido pela Polícia, o modo como o diretor Michael Bay se serve destes clichês formais do cinema de ação é extraordinário, assemelhando-se bastante aos estilos de Danny Boyle e Guy Ritchie: o filme é tão genialmente frenético em suas intercalações narrativas a partir das confissões dos personagens acerca de como chegaram àquele ponto culminante de suas vidas entrecruzadas (o depoimento da ‘stripper’ romena vivida por Bar Paly, neste aspecto, é fundamental) que até mesmo as derrapadas rítmicas casuais – que visam a confirmar justamente que o cineasta que está no comando é o mesmo de superproduções decepcionantes como “Pearl Harbor” (2001) e “A Ilha” (2005) – soam válidas e bem-acopladas à mixórdia de gêneros em que o filme investe.

 Afinal de contas, malgrado o sobejo de seqüências de ação, das esperadas explosões de veículos, das inúmeras colisões automobilísticas e das operações policiais bem-sucedidas (mais pelas falhas incríveis dos criminosos que pela habilitante dos vigilantes da lei, o que é um diferencial louvável), “Sem Dor, Sem Ganho” é, sobretudo, uma ácida comédia de costumes, que ridiculariza impiedosamente aqueles que sucumbem às formulas administrativas de sucesso apregoadas pelo irritante Johnny Wu (Ken Joeng). Não seriam as vergonhosas palestras de auto-ajuda mostradas no filme pouco mais que uma exacerbação dos delírios evasivos que fizeram com que Hollywood se tornasse a “fábrica de sonhos” por que se tornou conhecida ao longo das décadas? O próprio Daniel Lugo confirma isto cinicamente desde a sua acachapante entrada em cena, flexionando-se no topo de um monumento pictórico à boa forma física.

 Somados aos magistrais desempenhos dos roteiristas, do diretor e do elenco, os demais atributos técnicos deste filme devem ser também entusiasticamente laureados: a direção fotográfica de Ben Seresin é absolutamente primorosa, chegando ao fastígio de citar enquadramentos antológicos de outros filmes hollywoodianos; a montagem de Thomas A. Muldoon e Joel Negron (parceiros habituais nos últimos filmes do diretor) é exitosa na obtenção dos efeitos de frenesi exigidos em todas as produções baynianas; e a trilha musical de Steve Jablonsky (também freqüente nos filmes de Michael Bay) é muito boa tanto nas cenas de tensão quanto naquelas de alívio cômico/sarcástico.

Porém, o brilhantismo da seleção de canções merece um elogio à parte: mancomunar, num mesmo filme, canções interpretadas por artistas tão díspares quanto Coolio (“Gangsta’s Paradise”, que reaparece coerentemente durante os créditos finais, quando imagens dos verdadeiros criminosos são mostradas), C + C Music Factory (“Gonna Make You Sweat”, que tudo a ver com a ambientação ‘fitness’ do filme) e Bon Jovi (“Blaze of Glory”, magnificamente executada num momento inesperado) é algo que corresponde a um dos mais aplaudíveis tirocínios de versatilidade cancional deste início de século XXI! A hilária e consistente coadjuvação de Rebel Wilson, como a enfermeira Robin, também é primorosa, sendo ela a responsável por alguns dos diálogos mais engraçados do filme (vide a brincadeira com o atropelamento que vitimou o seu pai racista, pronunciada durante o discurso matrimonial).

Ao final da sessão, é impossível não sair empolgado e consciente da própria estultice espectatorial, tamanha a assunção enredística no que tange à configuração de seu público-alvo generalizado e internacional. Pena que saibamos de antemão que o próximo filme de Michael Bay seja o dispensável “Transformers: A Era da Extinção” (programado para ser lançado em 2014), para o qual ele fez o desfavor de incluir o desenvolto Mark Wahlberg no elenco.

Conforme ficou evidente em cada filigrana fílmica do ótimo “Sem Dor, Sem Ganho”, este execrável representante da ideologia monetifágica do cinema norte-americano não deixou de ser quem ele é por um instante: ele reproduz e zomba propositalmente da malevolência de suas megaproduções... É uma pena constatar tamanho desperdício manipulatório de agilidade e – quem diria? – talento!

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

ELYSIUM ('Elysium') EUA, 2013. Diretor: Neill Blomkamp.

A estréia do sul-africano Neill Blomkamp em longa-metragem, aos 30 anos de idade, com o filme de ficção cientifica “Distrito 9” (2009) impressionou por causa da impavidez política de seu roteiro e pela firmeza directiva que emulava Paul Verhoeven e David Cronenberg no modo como atrelava perspectivas extremamente autorais a estratagemas genéricos com vistas à bilheteria. De fato, o filme, uma produção com financiamento modesto para os padrões hollywoodianos, obteve surpreendentes – e merecidos – resultados de público e crítica, catapultando o diretor para um projeto mais ambicioso, no qual ele insistiu em manter a pujança contestatória.

Ainda que “Elysium” (2013) pareça demasiado concessivo em sua propensão às cenas de ação física, o enredo promissor em seu delineamento crítico da faceta contemporânea da luta de classes demonstra que o diretor não é incoerente em relação à própria inteligência e à sensibilidade denuncista: a extraordinária direção de arte e a fotografia sempre estourada de Trent Opaloch (que nos faz experimentar a quentura extremada dos cenários terrestres depauperados) são alguns dos aspectos mais elogiáveis do filme, cujos minutos iniciais chamam a atenção pela brevidade com que situam o espectador no contexto segregatório em que o personagem de Matt Damon e seus vizinhos latino-americanos viviam. Entretanto, esta brevidade anuncia um dos maiores defeitos do filme: a sua precipitação factual, corroborada pela montagem velocíssima de Julian Clarke e Lee Smith. Tudo acontece muito rápido e os delicados antagonismos classistas que são anunciados na trama são suplantados pela superficialidade estereotípica dos embates belicosos.

 Se, por um lado, não se pode reclamar que as atuações de Matt Damon ou Sharlto Copley sejam ruins, por outro, seus personagens são aprisionados em configurações deterministas de personalidade: o primeiro, Max da Costa, é um órfão que, desde a infância, é condicionado a crer que é um menino especial e que, como tal, realizará algo muito importante em sua vida – quiçá, ao preço de sua própria vida; o segundo, cognominado apenas pelo sobrenome Kruger, é um mercenário crudelíssimo e conhecido pelo temperamento arredio e pelo histórico criminal marcado por estupros e espancamentos.

 À medida que a trama evolui, eles tornam-se inimigos mortais por envolverem-se diretamente nas tramóias da xenofóbica secretária Delacourt (Jodie Foster, ótima), em seu afã por se tornar a detentora do poder supremo na colônia espacial Elysium, no século XXII, onde vivem as pessoas ricas que fugiram da destruição da Terra – causada por seus próprios habitantes – que possuem em suas residências leitos capazes de curar qualquer moléstia corporal. É justamente de um desses leitos que Max precisa para se salvar, visto que fora submetido a uma carga letal de radiação em seu emprego e tem apenas cinco dias de vida, mas é impedido tanto pelas intervenções opositivas de Kruger quanto pela complexidade do entrosamento relacional com seus amigos, o oportunista Spider (Wagner Moura, excessivamente afetado), que contrabandeia passagens para Elysium, e a enfermeira Frey (Alice Braga), por quem se apaixona e resolve se sacrificar, a fim de assegurar que a filha dela, portadora de um estágio avançado de leucemia, tenha direito à recuperação. Pena que, em meio a este interessante entrecho, soluções ‘blockbusterianas’ se interponham.

 Escrito pelo próprio diretor, o roteiro deste filme é prejudicado pelos diálogos simplistas, que, em mais de um momento, parecem uma mera atualização dos filmes de ‘kung fu’ da década de 1970, em que o que mais importavam eram as lutas. Não por acaso, diversos aspectos do filme confirmam esta impressão (vide a utilização de uma espada pelo vilão e o momento em que alguém comenta que Max será um “ninja da favela” após aplicar um exoesqueleto metálico em seu corpo), mas, em termos imagéticos, o filme com o qual “Elysium” revela mais proximidade é a produção B “Cyborg, o Dragão do Futuro” (1989, de Albert Pyun), por causa justamente de seu cruzamento ‘high tech’ entre as artes marciais e o clima pós-apocalíptico. A abordagem bem mais politizada de Neill Blomkamp, entretanto, esbarra em seu tratamento maniqueísta dos personagens e cenários, sendo atravessado por preconceitos o registro autodestrutivo do modelo de vida dos vizinhos de Max, poluidores, desordeiros, usuários de drogas e hostis, em contraponto aos habitantes de Elysium, impessoais e folgazões. Mas isto não impede que, ao menos sinopticamente, o filme seja digno de elogios por sua envergadura sociológica.

 Dentre os aspectos técnicos que enviesam negativamente o ótimo ponto de partida tramático deste filme destacam-se: a trilha sonora incoesa, que mistura talentosos artistas eletrônicos (Lorn, Arkasia, Gambit, Kryptic Minds) à partitura original de Ryan Amon sem que estes se coadunem climaticamente ao que é mostrado; a unilateralidade na concepção dos personagens mesquinhos (vide os funcionários superiores que oprimem Max em seu emprego, incluindo o desdenhoso John Carlyle, vivido por William Fichtner); e o sobejo de pirotecnia, que torna muitos planos do filme opacos e/ou desfocados em seu entulhamento de explosões. Os ‘flashbacks’ langorosos e a precipitação com que a garotinha Matilda (Emma Tremblay) narra a fábula bem-intencionada do suricato ajudado por um hipopótamo que só queria ter um amigo também se associam primariamente a estes aspectos, mas não são completamente desprovidos de validade dramática, sendo essenciais para a compreensão da atitude sacrificial de Max ao final, depois de ter passado a vida inteira lidando com a opressão incontinente das instituições policiais e legislativas, como fica evidente nas ótimas seqüências em que ele é agredido num ponto de ônibus ou quando ele é escorraçado verbalmente por um agente eletrônico de prisão condicional.

Apesar de ser falho em seus intentos políticos mais gerais – bastante conjugados à ínclita realização anterior de Neill Blomkamp – “Elysium” não é um mau exemplo de ficção cientifica. O problema é que ele é afligido, em suas exigências de produção, justamente pelo tipo de abuso de poder que tentou delatar...

 Wesley Pereira de Castro.

INVOCAÇÃO DO MAL ('The Conjuring') EUA, 2013. Direção: James Wan.

Apesar de ter anunciado que não mais dirigirá filmes de terror [seu próximo projeto, após o lançamento de “Sobrenatural: Capítulo 2” (2013), será “Velozes & Furiosos 7”, previsto para ser lançado em 2014], James Wan, desde que conduziu o publicitariamente hiperestimado “Jogos Mortais” (2004) vem se dedicando a este tipo de produto cinematográfico, com exceção feita unicamente a “Sentença de Morte” (2007, ainda não-visto).

Malgrado quase sempre angariar bons resultados nas bilheterias, seus filmes costumavam ser defenestrados criticamente, por causa de suas limitações temáticas e de seu insistente atrelamento aos clichês contemporâneos do gênero horror, freqüentemente relacionados ao abandono da condução das tramas em detrimento de sustos isolados e possibilitados por atributos sonoros tão incômodos quanto altissonantes.

 No caso de “Jogos Mortais” – que se tornou uma cinessérie monetariamente profícua e progressivamente piorada – o que mais incomodava, para além de seu mecanicismo genérico [visto que ele apenas deslocava alguns ‘leitmotivs’ do ótimo “Seven – Os Sete Crimes Capitais” (1995, de David Fincher)], era o seu viés moralizante, pois, no decorrer da trama, percebia-se que as intenções sádicas do vilanaz Jigsaw eram motivadas por um discurso senso-comunal de “elogio à vida”, sendo os personagens cruelmente assassinados descritos como indivíduos estultos que desperdiçavam solenemente o egrégio dom da existência. Nos filmes posteriores da cinessérie, esta inversão catequizante torna-se ainda mais exacerbada e contraditória, conforme se pode se perceber nas sinopses dos mesmos.

 James Wan, entretanto, preferiu se envolver directivamente noutros projetos, sendo os mais notórios “Gritos Mortais” (2007, título nacional interesseiro para ‘Dead Silent’) e “Sobrenatural” (2010): o primeiro é uma fracassada tentativa de servir-se do pavor engendrado por brinquedos malévolos e o segundo, uma desmazelada reedição do tema da casa mal-assombrada, que começa muito bem, mas se engancha nas armadilhas do horror explícito. Não é um currículo deveras entusiástico, mas, ainda assim, “Invocação do Mal” (2013) passou a ser alvo de uma inaudita recepção elogiosa por parte dos críticos: parecia que o diretor tinha conjugado espertamente elementos dos clássicos “O Exorcista” (1973, de William Friedkin), “A Cidade do Horror/Terror em Amityville” (1979, de Stuart Rosenberg, não-visto) e “Poltergeist – O Fenômeno” (1982, de Tobe Hooper), e obtido êxito a partir de uma obra que tem na hibridez a sua maior originalidade. Dito e feito!

 Por mais que o diretor incorra nos mesmos defeitos de seus filmes anteriores e que, nalguns pontos, a trama possua muitas similaridades com o prévio “Sobrenatural”, “Invocação do Mal” é assaz meritório, em mais de um aspecto: a excelente direção de fotografia de John R. Leonetti, elogiável desde a primeira seqüência, quando simula o aspecto de filmagem caseira para um filme utilizado numa palestra sobre infestações sobrenaturais proferida pelos protagonistas Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga, ambos ótimos), demonstra que, neste filme, os enquadramentos não estão apenas a serviço dos espantos somáticos – como infelizmente acomete o desenho de som – preocupando-se sobremaneira tanto com os detalhes reconstitutivos de época (o filme se passa no início da década de 1970) quanto pela concatenação dramática dos eventos familiares que balizam o enredo.

Além de ser um filme de terror – logo, impregnado pela violência advinda de entidades fantasmagóricas – “Invocação do Mal” é também uma espécie de melodrama, em muito favorecido pelo fato de os susomencionados Ed e Lorraine Warren serem personagens reais. Nesse sentido, a opção dos irmãos roteiristas Chad e Carey W. Hayes por alternar o cotidiano do casal Warren, em seu enfrentamento diuturno de avantesmas mal-intencionados, com as dificuldades de realocação doméstica da numerosa família Perron (comandada por um desenxabido Ron Livingston e pela muito expressiva Lili Taylor), assombrada por espíritos atormentados e suicidas, é excepcional, adequadamente distinta do sobejo de produções imitativas lançadas ano após ano pelos produtores hollywoodianos.

 Se, de fato, o roteiro é bem-sucedido na maneira precisa como constrói os seus personagens, ele peca (inclusive no sentido religioso do termo) por confundir-se com propaganda escancarada da Igreja Católica, visto que os desígnios de fé e os dotes paranormais que possibilitam que o casal Warren – devidamente apoiado (e quiçá sustentado) pelos padres locais – esteja apto a lidar com os seus antagonistas espectrais não correspondem ao que é promulgado pela doutrina redentora da referida igreja, sendo as menções à Santíssima Trindade (a adesão mística entre as manifestações paterna, filial e espiritual de Deus, segundo as Escrituras Sagradas) utilizadas como meros estratagemas oportunistas de eliminação profissional de infestações fantasmáticas. Assim sendo, crucifixos, recipientes com água benta e orações em latim são utilizadas desleixadamente e de forma fetichizada, ignorando-se a preparação intencional e benevolente de seus manipuladores, exceto pela reiteração da declaração feita por Ed a Lorraine, em sua noite de núpcias, depois de deixar patente a vontade de transar com ela repetidas vezes: “Deus não nos reuniu por acaso. Temos uma missão a cumprir no mundo!”.

A reiteração xaroposa desta assunção missionária, bem como os ‘flashbacks’ de alegria praiana irrestrita da família Perron, incomodam o espectador por conta da rejeição do estilo realista de apresentação dos fatos até então adotado, que, do meio para o final, soa tão dialogisticamente melindroso quanto o de uma telenovela. Mas nada que comprometa o ótimo trabalho do elenco, incluindo o infantil (Kyla Deaver, intérprete da pequena April, é encantadoramente eloqüente).

 Em relação à organização de seus componentes técnicos, vale reafirmar a maturação de James Wan como realizador, valendo-se de uma maravilhosa direção de arte e da sustentação hábil da trilha musical de Joseph Bishara, que, apesar de um ou outro excesso (vide a cena em que um acorde estrondoso ecoa quando uma lâmpada estoura na primeira vez em que Carolyn Perron desce sozinha ao porão de sua casa), dialoga funcionalmente com os instantes brilhantemente silenciosos do filme e com as canções escolhidas para serem executadas em momentos mais descontraídos (destacando-se a opção por utilizar a recente “In The Room Where You Sleep”, do grupo Dead Man’s Bones, que, apesar do anacronismo, combina muito bem com o clima tétrico da trama).

As cenas envolvendo a cadela Sadie (Dusty, na vida real), posteriormente encontrada morta num momento de bastante tensão familiar, a tentativa de plano-seqüência no momento em que a família arruma a mobília na casa nova e o assustador clímax do exorcismo de Carolyn demonstram o quanto James Wan evoluiu em relação aos seus filmes precedentes, adquirindo uma percepção orgânica do terror (vide a sutileza da cena que antecede os créditos finais, quando um brinquedo supostamente invocador de espíritos começa a funcionar repentinamente e, quando pára, nada acontece, exceto a irrupção de uma grave nota musical), que, se assim pode ser definido, não é apenas por causa da exorbitância de efeitos sonoros e visuais, mas em função da persistência do mal nos terrenos de convivência humana, muito bem sintetizada na comparação com o desconforto que aflige alguém que pisa num chiclete: “quanto mais assustada fica uma pessoa, mais as assombrações a perseguem”.

Neste sentido, o conluio este tipo de trama e os fitos institucionalmente religiosos é bem-vindo, mas não de forma apelativa e propagandística como foi posto em prática aqui, já que a explicação pretensamente científica para a impregnação de avejões nos relatos verídicos da bruxa Bathsheba e da boneca Annabelle é repleta de necedades sentimentalóides. Mesmo defeituoso em razão da perversão proposital de seu entrecho, “Invocação do Mal” merece aplausos (e sustos) por sua engenhosidade!

 Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

ANTES DA MEIA-NOITE ('Before Midnight') EUA, 2013. Direção: Richard Linklater.

A seqüência inicial deste filme, assessorada pelo diretor de fotografia Christos Voudoris, é notável por seu poder de síntese: num aeroporto internacional, o escritor Jesse Wallace (Ethan Hawke, bastante envelhecido) despede-se de seu filho adolescente (Seamus Davey-Fitzpatrick), prestes a embarcar num vôo de volta à cidade de Chicago, onde vive. É visível a vontade do pai de acompanhar o crescimento e o bem-estar do filho, que, ao perceber esta preocupação, adianta-se em confessar que as seis semanas que passara com ele e sua nova família na Grécia corresponderam ao melhor verão de sua vida. A câmera focaliza os pés dos interlocutores enquanto eles caminham e conversam. Depois de abraçar o filho repetidas vezes, Jesse e ele se despedem, uma música tenra irrompe na banda sonora e, ao sair do aeroporto, um plano móvel continuado permite que percebamos Celine (Julie Delpy) à distância, conversando em francês com alguém ao telefone, e, ao entrar no carro, um movimento brusco focaliza as filhas gêmeas do casal dormindo no banco de trás. Os créditos de abertura surgem e uma nova seqüência começa, esta mais reconhecível em relação ao estilo do diretor, em que a câmera permanece fixa na parte da frente do automóvel, enquanto Celine e Jesse conversam sobre a vida e o casamento e imagens de ruínas na paisagem circundante entremeiam seus diálogos.

O que se percebe imediatamente através do cotejo entre essas duas seqüências é que: 1 – a trilha musical de Graham Reynolds estabelece uma tonalidade sentimentalóide, atrelada às determinações classistas que eram discretas nos filmes anteriores da trilogia, mas incontornáveis na assunção de um cotidiano marital; 2 – o diretor está afobado para concatenar os eventos tramáticos e, ainda assim, manter o clima de nostalgia pelo presente que predominava nos encontros fortuitos do casal; e 3 – o tom dialogístico, instaurado por uma minuciosa colaboração entre os dois atores centrais e o diretor, ainda estava titubeante, em busca de um instante (ou situação) focal que possa ser dramaturgicamente estendida.

 Essas três percepções exordiais, arriscadas em sua forçação esquemática, perigam dirimir o chamariz de que o filme goza em seu anúncio de que fora realizado exatamente nove anos após “Antes do Pôr-do-Sol” (2004), por sua vez realizado nove anos após “Antes do Amanhecer” (1995). Porém, se nos dois primeiros capítulos da trilogia os questionamentos existenciais do relacionamento eram justificados pela fugacidade do encontro, a ostensiva crise de insatisfação cotidiana que permeia o contexto deste filme mais recente intimida o espectador por causa da insistente emulação de transitoriedade nas percepções conjuntas de Celine e Jesse, que parecem viajar o tempo inteiro, de modo que as lembranças que compartilham (e sobre as quais se questionam mutuamente) antecipam o recurso apelativo de ‘continuum espaço-temporal’ que permitirá a reconciliação do casal numa cena-chave posterior.

Ou seja, apesar de não ser estilisticamente tão delimitado quanto os filmes antecedentes, “Antes da Meia-Noite” é brilhantemente indicial, sendo assaz evidente – até mesmo por vias involuntárias – o que deseja transmitir, mas que só é evidenciado na longa e genial seqüência da discussão no hotel, rigorosamente conectada àquilo que os fãs dos personagens desejavam presenciar, não obstante a inversão sentimental em relação à perspectiva anterior, pois, agora, os personagens sobretudo brigam: Jesse hipertrofia as suas características de norte-americano desleixado enquanto Celine subsume-se aos cacoetes contraditórios da neurastenia feminista (entendida enquanto pecha autodeclarada e não enquanto organização discursiva). Em seu terço final, por dedução, este filme é magistralmente coadunado às produções prévias, estabelecendo-se como mais uma realização meritória na vasta e desigual filmografia de seu diretor.

Responsável tanto por filmes que se esforçam para ostentar uma verve alternativa [vide “SubUrbia” (1996), “Waking Life” (2001, em que os protagonistas deste filme aparecem brevemente em versões animadas) e “Nação Fast Food – Uma Rede de Corrupção” (2006)] quanto por obras de apelo comercial inquestionado [“Newton Boys – Irmãos Fora-da-Lei” (1998), “Escola de Rock” (2003) e “Eu e Orson Welles” (2008)], Richard Linklater não possui traços que o identifiquem autoralmente: a desenvoltura de seus sutis movimentos de câmera, a predominância dos diálogos em relação às ações e a temática das preocupações juvenis com o envelhecimento e a inserção capitalista, numa contextualização impregnada de filosofemas, são algumas de suas marcas registradas, mas não constantes em todas as suas obras. Comparar “Jovens, Loucos e Rebeldes” (1993) e “O Homem Duplo” (2006), por exemplo, é um exercício que permite a rápida constatação de suas limitações directivas, compensadas pelo entrosamento de seus atores, algo que, infelizmente, não funciona muito bem na primeira metade de “Antes da Meia-Noite”: os diversos momentos em que Jesse e Celine são mostrados interagindo com típicos representantes da classe média helênica contemporânea falham por causa da pretensa fluidez interativa.

Os lapsos de intelectualidade espontânea (vide o modo como um escritor mais velho descreve as suas influências estilísticas ou o comportamento de uma jovem atriz sentada à mesa) e as confissões românticas provenientes tanto de uma viúva sorridente quanto de um rapazola abobado (vivido pelo formoso Yiannis Papadopoulos, só para constar dos autos) intentam situar o casal de viajantes numa conjuntura de espontaneidade relacional deveras similar àquela em que encontramos os personagens nos filmes antecessores. Porém, somente após a caminhada até o quarto num hotel de luxo que fora pago por seus amigos gregos é que Jesse e Celine irão enxergar (e, por conseguiste, mostrar) a si mesmos como realmente são: receptáculos humanos de emoções e conhecimentos invulgares que são tolhidos pelas convenções e comparações precipitadas do dia-a-dia, clamando por instantes de expressividade confessional mútua em meio aos deslocamentos flexíveis a que se habituaram...

 Se, neste filme, a interpretação displicente de Ethan Hawke rende uma excelente caracterização masculina arquetípica, a deslumbrante Julie Delpy estranhamente se deixa converter num insuportável estereótipo de mulher enfastiada, incorrendo em ressentimentos e laivos de ciúme que só contribuem para desnudar a atmosfera de deslumbramento amoroso idealizado de que o casal gozava até então. Mas, contrariamente ao que poderia parecer, isto não é ruim: a absoluta sinceridade na composição dos personagens nos diversos segmentos da discussão matrimonial a que se submetem permite que reconheçamos a supremacia qualitativa do roteiro, que atualiza muito bem os anseios afetivos dos personagens (que metonimizam também os da platéia), fixando-os em suas condições de classe e diferenças profissionais, mas sem abandonar a graciosidade inerente aos contextos em que eles se conheceram e se reencontraram.

Na derradeira cena, tal qual vinham oferecendo indícios desde a primeira aparição, no filme de 1995, Jesse e Celine se reconciliam a partir da recorrência interpelativa de outras personalidades: ele, como um homem do futuro que conhece as reações íntimas e antecipadas de sua parceira; ela, como uma beldade estulta que se deslumbra pela inteligência pragmática dele. Um belo fecho para uma trilogia que se assume como cíclica, afinal!

 Wesley Pereira de Castro.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

FLORES RARAS (Brasil, 2013). Direção: Bruno Barreto.

Graças ao poderio financeiro de sua família, Bruno Barreto tornou-se um precoce realizador de cinema: aos 17 anos de idade, dirigiu o irregular “Tati, a Garota” (1973), logo demonstrando um talento insuspeito em obras vigorosas como “Dona Flor e seus Dois Maridos” (1976), “Amor Bandido” (1978), “O Beijo no Asfalto” (1980) e o posterior “Atos de Amor” (1996), filmado nos EUA, onde se radicara na década de 1980. Na década posterior, provou que ainda era um hábil diretor, ao conduzir filmes bem-sucedidos comercialmente como “O Que é Isso, Companheiro” (1997) e “Bossa Nova” (2000), que exibiam um acabamento técnico incapaz de escamotear os seus desvios ideológicos.

Recentemente, os desconjuntados “Voando Alto” (2003), “O Casamento de Romeu e Julieta” (2005) e “Última Parada 174” (2008), além do escabroso projeto do ainda não-visto “Crô” (2013), fizeram com que fosse posta em xeque a diligência directiva outrora demonstrada por este profissional cinematográfico, que, no elogiado “Flores Raras” (2013), mistura características de todas as fases de sua carreira. Se, por um lado, a sutileza intemporal que acompanha o romance entre a poetisa Elizabeth Bishop (Miranda Otto) e a arquiteta nata Lota de Macedo Soares (Glória Pires) ao longo de quinze anos é encantadora, por outro, os descuidos referentes à evolução cronológica da trama são execráveis em sua proposital corrupção histórico-política.

 Por mais garrida que seja a interpretação de Glória Pires e por mais ternas que se mostrem as cenas de sexo entre mulheres, a composição das personagens é precária, principalmente no que diz respeito à contextualização de suas condições sociais, fazendo com que a sensualidade que baliza o envolvimento passional entre as protagonistas seja contrabalançada por uma desenxabidez tramática, realçada pela trilha musical quase redundante de Marcelo Zarvos e especialmente percebida quando a indefinida e ciumenta Mary (Tracy Middendorf) está presente.

O autodeclarado comprometimento de Elizabeth com o pessimismo redunda numa hipertrofia oportunista dos caracteres depressivos, que visam a levar o espectador a considerar o seu alcoolismo uma falha de caráter muito pior que o colaboracionismo de Lota com a primeira fase da ditadura militar brasileira. Neste sentido, o declínio rítmico que se instala após a entrada em cena da personagem infantil Clara torna ainda mais evidente a malevolência discursiva do filme em suas omissões e/ou deturpações históricas, que devem ser atribuídas ao roteiro de Matthew Chapman e Julie Sayres, precipitado em sua concatenação temporal. Se, intradiegeticamente, a rapidez com que se instaura o vínculo paramatrimonial de Elizabeth e Lota é justificada quando a primeira responde à questão “que tipo de vida é esta em que o amor vem na frente da amizade?”, no que diz respeito à reconstituição de época, o atropelamento de fatos históricos (geralmente metonimizados através de notícias de jornais ou programas radiofônicos) vai de encontro à bela fotografia de Mauro Pinheiro Jr., que tira excelente proveito das paisagens naturais cariocas.

O momento em que Elizabeth, bêbada, escandaliza os seus companheiros de refeição ao externar seu desagrado pela reação indiferente dos brasileiros que jogavam futebol na praia enquanto os militares tomavam o poder é particularmente constrangedor porque, apesar de ser provido de motivação opinativa, é desfavorecido em mais de um aspecto, seja pela exacerbação reprobatória do alcoolismo da personagem, seja pela desconsideração da subtração informativa que se instalou midiaticamente no Brasil durante o período abordado.

 Insistindo na averiguação dos componentes discursivamente negativos do filme, pode-se perceber na ausência de manifestações homofóbicas em relação às personagens lésbicas menos um adendo militante ou apoiador das causas homossexuais que uma associação perniciosa ao isolamento paisagístico proporcionado pelas benesses classistas das protagonistas. A perspectiva instável de câmera na seqüência em que Mary, financiada por Lota, visita a casa de uma mulher pobre e deveras fértil para comprar um bebê recém-nascido é outro instante de constatação do decréscimo talentoso de Bruno Barreto, repercutido nas metáforas paupérrimas que acompanham cenas de suposto impacto elevadamente emocional, como quando começa a chover, forte e subitamente, no momento em que Lota confessa a Mary seu intuito de namorar Elizabeth, ou quando esta última recita, ao lado de seu fiel amigo Robert Lowell (Treat Williams, eficiente), o célebre poema “A Arte de Perder”, num parque de nautimodelismo, e é focalizado um barco de brinquedo que afunda num lago.

Situações como esta quase dirimem a imponência de momentos grandiosos como as carícias eróticas entre as duas protagonistas e o instante em que, após ser resgatada de um porre etílico, Elizabeth Bishop sintetiza na seguinte afirmação o dilema de sua existência: “quando eu não tenho aquilo que quero, sinto-me sozinha e triste; mas, quando consigo, tenho a certeza de que perderei tudo em breve. A espera é insuportável”. Tal confissão valida o reconhecimento literário que a verdadeira personagem goza enquanto renomada poetisa, para além dos preconceitos acadêmicos contra a sua condição sexual.

 Vale acrescentar que, tal qual o título do livro de Carmen Oliveira [“Flores Raras e Banalíssimas”] em que este filme se baseia, o brilho dos cabelos negros de Glória Pires, e os paradoxos contidos nos versos premiados de “Norte e Sul – Uma Primavera Fria” (obra lançada em 1956), o filme de Bruno Barreto é tecnicamente pulcro e potencialmente muito interessante. O problema é que ele se deixa perverter por um nocivo projeto de reescritura da história brasileira levado a cabo pela Globo Filmes e manipula os altos e baixos do intenso envolvimento amoroso entre as protagonistas em prol de um recorte assaz enviesado que se associa à obnubilação política, conforme se evidencia na representação caricatural do governador Carlos Lacerda (Marcello Airoldi) e nos pantins aristocráticos das ricas personagens.

A audição de canções antológicas como “Kalu” (interpretada por Dalva de Oliveira) e “Blue Velvet” (na voz de Tony Bennett) na banda sonora é balsâmica em sua efetividade nostálgica, mas o entreguismo ideológico do filme preocupa-se sobremaneira em legitimar o elitismo pioneiro da determinada Lota de Macedo Soares, segundo se constata na exaltação sentimentalóide do Parque do Flamengo nos letreiros finais. Poeticamente falando, as flores raras que o filme tão bem modela sucumbem quando morros inteiros são explodidos apenas para assegurar visões profissionalmente confortáveis àqueles que dispõem do mesmo (desejo de) conforto luxuoso de que gozam as personagens do filme.

 É esse tipo de situação que mantém o comprometimento falacioso com o pessimismo, enquanto sentimento que assegura a lógica de consumo atrelada à divulgação desta peça fílmica tão iridescente quanto equivocadamente encenada...

 Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

CÍRCULO DE FOGO ('Pacific Rim') EUA, 2013. Direção: Guillermo del Toro.

Em defesa da subsunção de Guillermo del Toro aos arrasa-quarteirões hollywoodianos, diversos críticos definiram-no como um cineasta que se diferencia pelo humanismo. Enquanto diretores como Roland Emmerich e Michael Bay se sobressaem negativamente pelo modo como utilizam os filmes de ação (com nucléolos temáticos de ficção científica) para legitimarem discursos estatais de intervenção bélica, Guillermo del Toro e Peter Jackson seriam aqueles que se preocupam muito mais com a valorização dos personagens em suas virtudes e limitações humanas, deveras relevantes para o prolongamento de seus feitos heróicos.

De fato, “Blade II – O Caçador de Vampiros” (2002) e “Hellboy” (2004) são filmes que surpreendem pela constituição personalística, em que até mesmo os coadjuvantes desempenham funções primordiais na caracterização ativa dos anti-heróis protagonistas (respectivamente, um vampiro assassino de vampiros e um ente com aspecto demoníaco) como seres não necessariamente humanos, mas com uma índole predominante e inusitadamente bonachona. O prévio delineamento gráfico destes personagens talvez facilite os méritos desempenhados pelo diretor Guillermo del Toro, mas os acachapantes roteiros de “A Espinha do Diabo” (2001) e “O Labirinto do Fauno” (2006) denotam o quanto este cineasta é coerente em suas produções. Todos estes aspectos, portanto, são mais do que suficientes para empolgar o espectador acerca da exibição de “Círculo de Fogo” (2013), mas, infelizmente, esta homenagem pessoal aos ‘tokusatsu’ incorre em desagradáveis clichês infantilizados, sendo o roteiro escrito pelo próprio diretor e por Travis Beacham vergonhoso num cotejo com qualquer filme anteriormente dirigido pelo primeiro, incluindo o menos valorizado “Mutação” (1997).

 Não obstante o interessantíssimo preâmbulo do filme, todas as seqüências posteriores ao crédito titular tornam difícil a percepção do referido humanismo do diretor, visto que a sua colaboração com o fotógrafo constante Guillermo Navarro é obnubilada pelo excesso de efeitos especiais, tão grandiloqüentes, maquínicos e altissonantes quanto automáticos em sua reiteração belicosa. No prólogo, conhecemos os dois conceitos-chave do filme: ‘kaiju’, que quer dizer ‘monstro’ em japonês; e ‘jaeger’, que quer dizer ‘caçador’ em alemão. Um narrador explica como os ‘kaijus’ surgiram a partir de uma fenda sob o Oceano Pacífico, não entra em detalhes acerca de suas motivações invasivas (definindo-os apenas como “alienígenas que nos atacaram por baixo”), enumera os efeitos devastadores dos acometimentos catastróficos destes animais e, ao final, entra em conflito sutil com o triunfalismo estadunidense contido em algumas imagens quando o tom da narração assume um aspecto melancólico e autocrítico ao afirmar que “nós nos acostumamos a vencer”, enquanto um apresentador de programa de auditório japonês brinca com alguém fantasiado de dinossauro. Dentre as minudências geniais deste prólogo, enfatiza-se o momento em que sabemos que as fezes dos ‘kaijus’ são contaminantes e que o sangue dos mesmos causaram um efeito ecologicamente devastador batizado como “kaiju blue”. Em seguida, conhecemos o vaidoso protagonista Raleigh (Charlie Hunnam), ao lado de seu irmão Yancy (Diego Klattenhoff), que falecerá de forma traumática e, assim, fundamentará a contenda familiar que Raleigh precisará enfrentar para vencer os inimigos monstruosos e elevar a um patamar coletivo – portanto, superior – a paixão que nutrirá pela também traumatizada Mako Mori (Rinko Kikuchi). Desse modo, os sentimentos humanos serão erigidos como aspectos centrais da trama. Mas... Seria isso realizado com a habilidade tipicamente associada ao diretor? A resposta: definitivamente não

 Por mais que seja assaz inteligente a elaboração enredística dos enormes robôs metálicos que só funcionam a partir da combinação neural de no mínimo duas pessoas, com base em uma fusão mnemônica bastante delicada, tal ponto de partida conceptivo é insistentemente reduzido a um elemento piegas de afetividade conjunta, o que só piora quando a trilha sonora insuportavelmente xaroposa de Ramin Djawadi se eleva em momentos pretensamente dramáticos, como, por exemplo, o constrangedor ‘flashback’ que explica a origem traumático-fetichista do sapatinho vermelho que Mako insiste em carregar, mesmo quando adulta. Os vergonhosos diálogos entre Raleigh, Mako e o comandante Stacker Pentecost (Idris Elba) deixam claro o quanto este roteiro é inferior em relação aos filmes antecedentes do diretor, visto que as frases proferidas por estes personagens são absurdamente redundantes em relação à metáfora óbvia que se estabelece entre o modo de pilotar o ‘jaeger’ e uma concepção orgânica de entrosamento social, algo que, no filme, só é relevante quando balizada por impressões emotivas arquetípicas.

Neste sentido, tanto a concepção do clicheroso personagem Pentecost é precária, já que, desde a primeira cena em que ele aparece sangrando pelo nariz, adivinhamos que ele se submeterá a um desafio combativo sacrificial (não antes de preconizar que “a vingança é uma fenda!”), quanto o surgimento dos demais coadjuvantes resistentes incomoda pela estereotipificação, tanto no que diz respeito aos trigêmeos chineses atléticos quanto aos russos que ainda carregam os cacoetes furtivos da extinta Guerra Fria, sem contar a aguardada aparição de Hannibal Chau, divertidíssimo personagem vivido por Ron Perlman, colaborador habitual do diretor.

 Para fins conclusivos, cabe deter-se um pouco mais na relação compartilhada entre os cientistas Gottlieb (Burn Gorman) e Newton (Charlie Day): ambos exagerados em sua paspalhice cientificamente funcional, são eles que validam o sucesso estratégico da declaração formulada por Pentecost acerca da difícil necessidade de se lidar com as conseqüências derivadas das decisões imediatas que são tomadas durante uma batalha. Se, por um lado, o teutônico Gottlieb chama a atenção quando exclama que “política, poesia e promessas são mentiras e são os números aquilo que mais se aproximam da verdade no mundo”, por outro, o abobalhado Newton desempenha um papel fundamental na resolução da batalha entre ‘kaijus’ e humanos que se estende ao longo de doze anos através da premissa básica do entendimento das razões do oponente. É graças a este irritante personagem que o roteiro do filme faz sentido (inclusive para além de suas convenções genéricas) ao esclarecer as razões da invasão dos ‘kaiju’ à Terra, ao mesmo tempo em que os categoriza enquanto espécimes dotados de uma consciência (instintiva) coletiva, similar àquelas que os condutores de ‘jaegers’ emulam em sua defesa do compartilhamento de interesses comuns, algo que ressurge de forma ainda mais previsível e vendável na canção dos créditos finais, “Just Like Your Tenderness”, interpretada por Luo Xiaoxuan.

Ainda que isso funcione muito bem enquanto proposta moralizadora extensiva, a má direção de atores faz com que esta atualização de seriados televisivos como “O Fantástico Jaspion” e “Esquadrão Relâmpago Changeman”, produzidos entre 1985 e 1986, soçobre qualitativamente. Tal como acontece em relação aos atributos humanos em que a crítica identifica em Guillermo del Toro um artificioso defensor (vide situações pitorescas como aquela em que Gottlieb vomita num vaso sanitário em meio aos destroços de uma cidade atacada por ‘kaijus’, a percepção das gaivotas que levantam vôo quando o impacto dos golpes de ‘kaijus’ e ‘jaegers’ devasta um cais, ou o brinquedo metálico que é mostrado em câmera lenta durante um combate que atravessa destrutivamente um prédio), nem sempre as boas intenções são suficientes para sustentar um filme. A inconvincente translação da “borda pacífica” mencionada no título original deste filme que o diga...

 Wesley Pereira de Castro.