sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Festival Varilux 2021: UM CONTO DE AMOR E DESEJO (2021, de Leyla Bouzid)


Na seqüência de abertura, a diretora faz jus ao título de seu filme e apresenta-nos ao protagonista Ahmed (Sami Outalbali) durante o banho: a câmera focaliza suas costas contraídas, enquanto ele se enxuga, a fim de metaforizar a tensão erótica com que ele se deparará dali por diante. Ao invés de converter-se em mero objeto de nossos intentos onanistas, esse personagem assumirá a função de condutor tramático: logo sabemos que é seu primeiro dia de aula na Universidade Sorbonne, onde ele matricula-se numa turma de Literatura. Entretanto, ele não está preparado para o jorro de sensualidade contido nas poesias árabes da Idade Média, tematizadas numa disciplina exordial. Premido entre o machismo da juventude parisiense e as tradições familiares que, em sua interpretação estouvada, relegam as mulheres a posições subservientes, Ahmed não saberá como lidar com a espontaneidade comportamental de sua colega tunisiana Farah (Zbeida Belhajamor), por quem se apaixona... 


Apesar de esta trama de amadurecimento emocional parecer corriqueira, a diretora revela-se arrojada ao preferir abordar as crises morais do personagem masculino, de modo que a perspectiva adotada é o desconforto de Ahmed diante da naturalidade sexual de suas amigas: passa a agir de maneira controladora até mesmo em relação à sua irmã, cujo namoro é motivo de fofocas entre os seus companheiros de trabalho, que pretendem perder a virgindade num prostíbulo holandês. Não obstante a origem argelina, Ahmed não fala árabe, não conhece os locais onde seus pais foram criados e não segue à risca os preceitos da religião muçulmana. E, quando masturba-se, constata que está obcecado por Farah!


Numa montagem que insiste em valorizar a beleza física do personagem, há uma fusão imagética entre o momento em que Ahmed insere a mão entre suas pernas e o mergulho simbólico no livro que ele lê. A professora mais popular da faculdade não titubeia ao associar o material de ensino à lubricidade, o que desconcerta cada vez o protagonista, que pensa em largar os estudos. "Se tu desistires, concederás muita satisfação às pessoas que torcem por seu fracasso", diz a professora. Ahmed reflete consigo mesmo acerca dos múltiplos vícios de sua criação: considera o pai inativo, já que este não conseguiu emprego na França depois que fugiu da Argélia, perseguido por suas atividades como jornalista; e não consegue justificar para seus amigos o porquê de ter escolhido o curso de Letras. Confuso, indeciso, mas em constante excitação egoísta, Ahmed é intimado a aprender - para além das paredes da Universidade. A tarefa requerida para a auto-aprovação é um beijo em público, seguido da aguardada penetração sexual (que, obviamente, é privada). A vida é também poesia, conforme regozija-se a diretora, neste filme um tanto ingênuo, mas prenhe de um vigor minimamente contestatório. O orgasmo é algo tão cultural quanto político! 


Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O QUE VEMOS QUANDO OLHAMOS PARA O CÉU? (2021, de Aleksandre Koberidze)


Em dado momento, na passagem da primeira para a segunda parte do filme - pouco diferenciáveis -, o narrador define o tempo como implacável, enfatizando a quantidade exorbitante de animais que morreram em incêndios criminosos de reservas florestais. O modo como o tempo passa no filme, entretanto, é modorrento: apesar de haver protagonistas bem definidos, figurantes e partes do corpo humano chamam a atenção da câmera de maneira demorada, sobretudo crianças obcecadas por futebol, a ponto de pintarem o nome de um jogador argentino, com tinta amarela, em suas costas despidas. Até mesmo os cachorros torcem pela seleção argentina - o que difere são os lugares em que eles assistem aos jogos!


Boa parte do que acontece nas duas horas e meia de duração deste filme tem a ver com a empolgação gerada pela Copa do Mundo no plácido cotidiano georgeano. É onde uma fábula romântica acontece: um casal encontra-se por acaso, após um esbarrão, e marcam um encontro. Entretanto, isso incomoda um espírito malévolo, que despeja uma maldição sobre eles: a garota, que é estudante de Farmácia, acordará transformada noutra pessoa e sem lembrar o que estudou na Faculdade. O mesmo acontecerá com o futebolista por quem ela se apaixona. Coincidentemente, ambos buscarão trabalho na mesma região, ao redor de um bar ignorado por seus freqüentadores: o novo Giorgi (Giorgi Bochorishvili) tentará convencer os transeuntes de uma ponte a pendurarem-se num trapézio ou comerem biscoitos num tempo estipulado; à nova Lisa (Ani Karseladze) caberá a tarefa de preparar sorvetes. Será que eles apaixonar-se-ão novamente?


Sabemos que sim, e tudo ocorre da maneira prevista, mas o filme sabota as expectativas espectatoriais possivelmente criadas: no início, fechamos os olhos antes da maldição acontecer e, quando o reencontro é reconhecido como tal, os personagens desaparecem em suas rotinas e o narrador informa que muitas outras historietas estão ocorrendo naquele lugar. O que interessa ao realizador são os pequenos eventos, as relações inicialmente fugazes, a banalidade do que ocorre diariamente - e que importa bastante para quem vivencia, para quem sente. Como eixo interno, uma diretora cinematográfica que busca um sexteto ideal de casais, a fim de rodar o seu filme. O ritmo é lento, as ações são casuais, as metáforas desportivas são abundantes: há quem aprecie, portanto! 



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A NOITE DO FOGO (2021, de Tatiana Huezo)


Por mais onipresente que seja a violência dos cartéis de droga neste filme, a diretora dribla a explicitude que poderia converter-se em espetacularização: ao invés disso, ela prefere enfocar as conseqüências traumáticas e as exortações transformadoras, através das ações provisórias de professores abnegados. A perspectiva narrativa respeita a inocência ainda conservada de Ana (interpretada na infância por Ana Cristina Ordóñez González e, na adolescência, por Marya Membreño), mas as agruras ao seu redor tornam-se cada vez mais severas: sua mãe esforça-se para preservá-la do destino cruel reservado às meninas seqüestradas pelos traficantes, enquanto seu amigo Margarito (Julián Guzmán Girón) aparece com um revólver, demonstrando cumplicidade com as pessoas que fazem tanto mal aos moradores do povoado. O desfecho, neste sentido, é paradigmático, justificando muito bem o título do filme.


Não é por acaso que o fogo aparece, à noite: símbolo de reações encolerizadas, na primeira vez que Ana e suas companheiras vê algo sendo queimado, há um corte brusco que marca o envelhecimento delas. Sob a desculpa de uma infestação de piolhos, seus cabelos são mantidos bem curtos, a fim de assegurar-lhe uma aparência masculina e retardar o temido momento em que ela será perseguida pelos cultivadores de papoulas, em cujas plantações trabalham muitos de seus vizinhos, em atemorizadas condições. Helicópteros são constantemente ouvidos, despejando agrotóxicos. Tiros e explosões são ainda mais freqüentes. A supracitada violência é, portanto, indicial - porém, não exclusiva: num dos mais belos momentos do filme, Ana e Margarito dançam numa festa de rodeio... 


A naturalidade das interpretações infantis impressiona pela efetividade: as descobertas em sala de aula, as brincadeiras marotas (como passar beterraba nos lábios, para simular o uso de batom) e o modo como lida-se com a ausência súbita de outras pessoas abrilhantam ainda mais a dinâmica afetuosa entre o trio principal de amigas. Em planos impactantes, que só confirmam a magnificência da direção de fotografia a cargo de Driela Ludlow, diversas mulheres são vistas tentando falar com seus respectivos parentes, naquele que parece ser o único lugar onde há sinal de telefonia. Nem sempre obtêm êxito na comunicação, defendida como essencial em sala de aula. Enquanto isso, Ana aprende, para além das exigências etárias tradicionais: ótimo exercício de feminilidade cinematográfica! 


Wesley Pereira de Castro. 

DESERTO PARTICULAR (2021, de Aly Muritiba)


No mesmo ano em que conquistou um prêmio de Melhor Direção no Festival de Cinema de Gramado por "Jesus Kid" (2021, comentado aqui), o realizador Aly Muritiba recebeu a notícia de que seu filme mais recente foi pré-selecionado para tentar uma vaga na categoria Melhor Filme Internacional do Oscar. Independente de ter ou não chances legítimas de concorrer a este certame industrial, ele entrega um longa-metragem que permite a exploração de intenções autorais: além de retornar à introspecção de seus curtas-metragens prisionais, o percurso efetivado pelo protagonista deste filme inverte a própria saga geográfica do diretor, que nasceu no interior da Bahia e vive em Curitiba. Daniel (Antônio Saboia) sai da capital paranaense, onde enfrenta uma complicada investigação militar, em direção à cidade de Sobradinho, na Bahia, a fim de encontrar seu grande amor, idealizado através de conversas na Internet. O temperamento de Daniel é violento, mas ele insiste que acalmar-se-á: nos áudios de WhatsApp que envia para a amada Sara, ele desnuda-se de corpo e alma. Fotografa-se despido e envia mensagens recorrentes. Porém, Sara não responde...


Da mesma maneira que o roteiro realiza um deslocamento contrário ao do próprio diretor, são perceptíveis as rimas que anunciam a crença na reabilitação personalística de Daniel - e, por extensão, anunciam um desfecho feliz: ainda em Curitiba, um superior hierárquico e a irmã mais nova de Daniel pedem para que ele "não surte" e seja cuidadoso nas decisões que tomará daquele momento em diante; quando sabe que este homem bruto porém apaixonado está no Nordeste, a primeira recomendação que o melhor amigo de Sara, Fernando (Thomás Aquino), ouve é justamente "não surte". A irmã de Daniel (Cynthia Senek) confessa-lhe que está tendo um relacionamento com outra mulher, o que faz com que ele reaja com estupor. Algo parecido se repetirá quando ele conhece Robson (Pedro Fasanaro), um jovem homossexual que é chantageado por um pastor evangélico a submeter-se a um tratamento curativo de suas preferências eróticas. É quando surge em cena um "ex-gay", afirmando que "prefere a salvação à felicidade". As escolhas a que Daniel tem acesso não são tão bem delineadas, em termos maniqueístas: diante de uma usina hidrelétrica que serve como metáfora de potência, Robson fala que sua avó (Zezita Matos) ensinou-lhe que "tudo depende da vontade de Deus"; Daniel argumenta que seu pai acredita apenas na Lei, e que sua fé foi embora quando a sua mãe morreu... 


A entrega de Antônio Saboia ao seu personagem é visceral. Não obstante a incandescência desejosa oriunda de seus músculos evidentes - e insistentemente fotografados -, ele torna sobremaneira crível o desamparo psicológico de Daniel: desligado da corporação militar em que trabalha por maltratar exageradamente um recruta durante um treinamento, ele também precisa lidar com o desemprego e com a necessidade de cuidar de seu pai aposentado e sofredor do Mal de Alzheimer. Por isso, entrega-se de maneira tão intensa a uma paixão virtual. Durante a viagem, alguém até pergunta se "não tinha mulher em Curitiba", a ponto de ele precisar percorrer milhares de quilômetros em busca de alguém que sequer viu pessoalmente. Daniel desconversa: notamos o quão angustiado ele está pelo modo como sempre acorda assustado, seja quando um caminhão buzina enquanto ele cochila em seu carro, seja quando o seu telefone celular toca enquanto ele descansa num quarto de hotel. Felizmente, o susto que o espectador mais teme não desencadeia um clímax violento. Graças a mais uma inteligente rima discursiva, é Daniel que demonstra que está disposto a curar-se de algo que tanto lhe faz mal!


Adotando um primor técnico que remete aos filmes produzidos no que convencionou-se chamar de "Retomada do Cinema Brasileiro", esta obra destaca-se sobretudo pelo uso expressivo da trilha sonora: as composições de Felipe Ayres são excelentes e as canções incidentais refletem de maneira impressionante os sentimentos de Daniel. Prestando atenção às letras de artistas como Odair José, Pablo e Barões da Pisadinha, que ouve nos botecos em que espera por Sara, ele percebe que os versos exagerados que são comuns a gêneros como o brega e o arrocha diagnosticam com precisão a intensidade de seu afeto assimetricamente correspondido. Por motivos publicitários, entretanto, o filme prefere direcionar a identificação do espectador para a icônica canção estrangeira "Total Eclipse of the Heart", na voz de Bonnie Tyler, que retorna durante os créditos finais, à guisa de reiteração. É como se isso metonimizasse o agendamento valorativo que é direcionado sobre muitas situações, como a própria obsessão de certos setores do cinema brasileiro pela legitimação através de premiações e a esperança manifesta por Robson, ao dizer que, no Rio de Janeiro, pode "tocar a sua vida". Conforme já foi escrito por outrem, o essencial está diante de nós, mas nem sempre é enxergado devidamente. O título do filme, neste sentido, é primoroso: que ele só apareça após meia-hora de projeção foi um golpe de mestre! 


Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Cannes/Mix Brasil: BENEDETTA (2021, de Paul Verhoeven)


Desde a frenética seqüência de apresentação da personagem-título, ainda criança, o roteiro de David Birke e do próprio diretor faz com que o espectador experimente uma dialética entre a suspensão da crença, associada às convenções de certos gêneros cinematográficos tradicionais (em que a inverossimilhança é justificada por necessidades narrativas), e a fé absoluta, atrelada à indução da loucura religiosa (posto que a garotinha Benedetta realmente acreditava que era capaz de conversar com santos e/ou de arregimentar milagres). A teatralidade excessiva com que a protagonista conduz as suas aparições públicas surge como metonímia das próprias obsessões verhoevenianas, que parece regravar seu polêmico "Showgirls" (1995), ignorando as possíveis limitações enredísticas do contexto medieval... 


Magistralmente protagonizado por Virginie Efira, este filme flerta tanto com os clichês de terror quanto com o ritmo dos filmes pornográficos, no afã por apresentar seu cabedal de críticas ao fanatismo idólatra, à hipocrisia eclesiástica e à vilania misógina, naturalizada secularmente pelas ideologias institucionais: quando vemos uma noviça segurar com vigor uma estatueta hagiológica, sabemos de imediato que este objeto será utilizado como uma espécie de vibrador. Em seus delírios convertidos em espetáculos, Benedetta - no que tange à inspiração verídica para a trama, romantizada por Judith C. Brown - é alçada à condição de inspiradora de uma inaudita rebelião contra a tirania dos inquisidores católicos. O clímax, próximo ao desfecho, pode muito bem servir como inspiração reativa na lida contra a ascensão contemporânea da extrema-direita, já que, em mais de um aspecto, "Benedetta" é um filme ostensivamente político: defende a primazia da humanidade de quem erra em detrimento da falsa ilibação de quem é apresentado como santo. E, no fundo, é tudo uma bela história de amor incompreendido!


Interpretando a lúbrica Bartolomea, Daphne Patakia não se preocupa com a fidelidade de época na composição de sua personagem, o que coaduna-se às intenções do diretor, ao evitar um rigor reconstitutivo que poderia desviar os aspectos técnicos do filme para a mera contemplação formal. Ao invés disso, temos a urgência nos diálogos e ações, com vistas à constatação de discursos conflituosos e extremamente atuais. Charlotte Rampling e Lambert Wilson estão esplêndidos em suas participações, mas os coadjuvantes também são mui efetivos na confirmação dos jogos de cena sobrevivenciais: "a humilhação não deixa marcas", é o que diz uma ex-prostituta convertida em freira, relembrando uma das duas ou três coisas que aprendeu em sua antiga profissão. Esse tipo de diálogo é reverberado em inúmeras seqüências, visto que cada um dos habitantes do convento onde transcorre a história possui pecados fundamentais, que retroalimentam a sua devoção teísta. É um filme radicalmente autoral, trazendo de volta questões que o diretor já abordara em clássicos como "O Quarto Homem" (1983) ou "Conquista Sangrenta" (1985), para ficar apenas em títulos com semelhanças explícitas. Trata-se de um extraordinário filme-manifesto! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Netflix: 7 PRISIONEIROS (2021, de Alexandre Moratto)


Um dos aspectos que mais chamam a atenção por sua efetividade discursiva, neste filme, é o numeral contido em seu título, visto que ele possui um encargo intercambiante ao longo da trama: no início, acompanhamos a viagem de quatro adolescentes interioranos que se mudam para a capital de São Paulo, com a promessa de que serão bem remunerados por seus trabalhos; algum tempo depois, mais três imigrantes são adicionados a este grupo. Porém, ao invés de consolidar o hepteto anunciado, instaura-se uma avaliação sociológica muito mais delicada, em termos quantitativos: afinal, os prisioneiros são inumeráveis, numa progressão retroalimentada pelas necessidades urbanas e pela corrupção institucional. Quiçá até mesmo o espectador seja merecedor deste adjetivo, no sentido de que a complexa identificação sobrevivencial com o personagem de Christian Malheiros converte-nos também em prisioneiros, pois somos confundidos pela simpatia concessiva dos algozes, em meio às agressivas relações capitalistas... 


Numa interpretação mui delicada - possível graças ao ótimo entrosamento entre ator e diretor, decorrente de um longa-metragem anterior, "Sócrates" (2018) - Christian Malheiros faz com que direcionemos os mais diferentes sentimentos ao seu personagem Mateus: convertido, desde a sua primeira aparição, numa espécie de herói, pelo modo terno como trata as pessoas e por causa de sua inteligência, ele passa a ser gradualmente seduzido pelo poder a que tem acesso, como assistente do hediondo Luca (Rodrigo Santoro). Torna-se cada vez mais violento e moralmente corrompido, sem que assim se perceba, já que o enredo demonstra que ele apenas obedece a uma lógica hierárquica similar a qualquer outra organização contemporânea: ter privilégios implica em imputar sofrimento a outrem, mesmo que involuntariamente. O Capitalismo a tudo assimila, inclusive à benevolência! 


A tensão estabelecida entre Mateus e seus companheiros de cárcere é redimensionada: de conselheiro atuante, ele transforma-se num vigilante impiedoso, assemelhando-se cada vez mais ao antagonista patronal que ocupa a função paterna até então ausente em sua vida (exceto em seu desejo de ter quatro filhos). Confirmando o que fôra previsto pelo afrontoso Isaque (Lucas Oranmian), Mateus torna-se diretamente envolvido na agressão sofrida pela mãe do tímido Ezequiel (Vítor Julian). O ambiente e os personagens são mostrados cada vez mais sujos, e o desfecho é assaz pessimista, estabelecendo como um ciclo perenemente renovado aquilo que é orgulhosamente comentado por Luca: "essa cidade só está de pé por causa do que nós fazemos". Infelizmente, procede. Como podemos agir de maneira diferente, a fim de que não recaiamos no tormento consciencioso secundarizado pelo protagonista, cada vez mais hábil em seu enriquecimento material? Eis a pergunta que valoriza ainda mais o filme... 



Wesley Pereira de Castro. 
 

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Mostra SP 2021: BERGMAN ISLAND (2021, de Mia Hansen-Løve)


 As reminiscências autobiográficas de caráter romântico são comuns na filmografia desta diretora, de modo que os estratagemas metalingüísticos que desvendam-se com mais intensidade na segunda metade do filme surgem como elemento mui positivo, confundindo as interpretações "fáceis" que poderiam advir da sinopse e das platitudes actanciais dela decorrentes. Na trama, Tim Roth e Vicky Krieps são dois admiradores contumazes do cineasta Ingmar Bergman [1918-2017], que viajam para a ilha onde ele morou e realizou boa parte de seus filmes, a fim de escreverem ambos seus novos roteiros. Como eles reagem de formas diferentes aos clássicos bergmanianos, resolvem instalar-se em ambientes separados, para que possam dedicar-se integralmente às suas novas estórias. Em cada uma delas, o lugar onde estão surge como determinante para as crises relacionais que são instauradas: ele prefere abordar algum tipo de reconciliação através de um 'storyboard' com desenhos sexuais; ela lida com os traumas mal-superados de um romance antigo... 


Enquanto tergiversam acerca de suas próprias diferenças comportamentais e profissionais, este casal esforça-se para captar a influência espectral do cineasta sueco, que é fetichizado tanto pelo roteiro quanto pelos capitalizadores de sua herança. Anthony, o marido, é um diretor famoso que está na ilha apresentando um de seus filmes e resolve participar de um "safári Bergman", aprendendo muitas curiosidades sobre a vida particular e as produções de seu ídolo; Chris, a esposa, aceita o convite de um recém-conhecido e passeia por lugares paradisíacos, insuficientemente explorados pelo turismo da região. Gradualmente, este companheiro (Hampus Norderson) aparece como personagem de sua trama metafílmica, interagindo com alguém que pode ser tanto uma versão mais jovem de si mesma quanto um avatar das lembranças juvenis da diretora. No roteiro que Chris escreve, Amy (Mia Wasikowska) viaja para a Ilha de Fårö a fim de participar do casamento de uma amiga, e lá reencontra alguém que amou na juventude, e por quem foi abandonada. A despeito do desconforto inicial, Amy e Joseph (Anders Danielsen Lie) logo entabulam um flerte adúltero, sendo este adjetivo mui enfatizado pelo egocêntrico rapaz. Ela sente-se abandonada outra vez, mas, como é cineasta, utilizará isso como fomento para um enredo posterior. É um filme dentro do filme dentro da vida convertida em roteiro?


Num momento avançado da trama, Chris e o intérprete de Joseph (chamado pelo seu nome verdadeiro) encontram-se na residência onde Ingmar Bergman morou e na qual, minutos antes, Hampus disse que "é um lugar onde é inevitável adormecer". Ao longo da narrativa, o cineasta sueco é convertido num mito onipresente, que é julgado por "ser tão cruel na vida pessoal quanto o era em seus filmes" e cujas obras são avaliadas enciclopedicamente por muitos figurantes e pela guia que conduz os turistas pelos cenários das mesmas. Apesar do imenso chamariz deste sobrenome, é como se a aura bergmaniana, neste filme, fosse muito mais destinada a não-cinéfilos, no sentido de que interessa predominantemente à diretora as obviedades comparativas e imitativas, como diz uma senhoria acerca da cama onde foi realizado "o filme que fez milhões de pessoas se divorciarem". O roteiro é impregnando de pleonasmos emocionais, que são compreensíveis e justificáveis para quem se identifica com eles, mas que, da maneira como são evidenciados, desembocam em dilemas pequeno-burgueses, como a preocupação recorrente de Amy em possuir apenas um vestido elegante, que é tão branco como deveria ser unicamente a vestimenta da noiva. É tudo muito previsível e desgastado no filme, com exceção reservada - em infinitésima escala - ao desfecho, onde um dos filhos legítimos de Ingmar Bergman faz uma figuração. E daí? Ao menos, a diretora é coerente em relação a si mesma!



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Mostra SP 2021: YUNI (2021, de Kamila Andini)


Quando somos apesentados à personagem-título, ela está sendo repreendida pela diretora de sua escola por estar fazendo algo que parece muito recorrente: furtou o prendedor de cabelos de uma colega de classe, apenas por ser roxo. À medida que o filme avança, notamos que Yuni (Arawinda Kirana) possui uma verdadeira obsessão por esta cor: os detalhes de sua motocicleta, seu caderno, suas roupas, quase tudo que a circunda é roxo. Durante uma discussão, uma garota diz que isso se deve à associação existente entre esta cor e a viuvez. Yuni é cortejada por vários potenciais maridos, mas, mesmo perigando ser desonrada, rejeita cada um deles... 


Não obstante viver numa comunidade muçulmana, Yuni freqüentemente é vista sem o véu e conversa naturalmente sobre sexualidade com as amigas. Tenta até mesmo masturbar-se, pois sabe que atingir o orgasmo nas relações sexuais praticadas durante o casamento é incomum. Após certa relutância, nota que um garoto do seu colégio é apaixonado por ela, mas ele é sobremaneira tímido. Até que a poesia começa a aproximá-los: por estar atraída por seu professor de Literatura, chamado Damar (Dimas Aditya), e ter interesse em ingressar na faculdade, Yuni precisa melhorar as suas notas nesta disciplina, única do currículo escolar em que não possui muita afinidade. O tímido Yoga (Kevin Ardillova) é um exímio leitor, mas tem dificuldades em expressar o que sente. No desfecho, caberá a Yuni a decisão mais difícil de sua vida, para a qual receberá pleno apoio de sua progressiva família.


Muito bem interpretado e dirigido, este filme agrada pelo modo gracioso com que desenvolve os dramas das jovens indonésias: insistentemente cortejadas desde a adolescência, elas estão prestes a serem testadas se são virgens, a fim de permanecerem estudando, conforme ouvimos numa notícia de jornal, segundo proposta do Ministério da Educação daquele país. Parece esdrúxulo, mas é o que acontece quando religião e política se misturam. Mergulhada em sua obsessão monocromática, que a converte numa cleptomaníaca eventual, Yuni tem a oportunidade de experimentar um flerte erótico com Yoga. Porém, ao flagrar seu professor numa situação constrangedora, é submetida a um árduo dilema, sendo que o roteiro não envereda pelo melodrama, respeitando o frescor lascivo da protagonista. Um filme tão bonito e sensível quanto os vários poemas de Sapardi Djoko Damono [1940-2020] que são lidos ao longo da narrativa, e a quem a diretora dedica o seu filme!



Wesley Pereira de Castro. 
 

Mostra SP 2021: 18 1/2 (2021, de Dan Mirvish)


Desde o início, salta aos olhos o primor reconstitutivo da fotografia de Elle Schneider, que transporta-nos efetivamente para a década de 1970: o modo como o diretor conduz os diálogos superpostos faz com pensemos nos filmes de Robert Altman ou Hal Ashby, de maneira que quase esquecemos que estamos assistindo a um filme contemporâneo. A atriz Willa Fitzgerald compõe a sua personagem Connie de maneira fascinante, amparando-se em recursos que antecipam a sua conversão em "cinderela espiã", conforme consta na letra da recorrente canção "Brasília Bela", composta por Luís Guerra. Neste filme, a violência eclode ao som de uma bossa nova temporã!


Para públicos estrangeiros, há uma dificuldade inicial na compreensão dos eventos mencionados na fita que os personagens anseiam por ouvir, mas, mesmo entre os estadunidenses, o conteúdo apagado possui um caráter de 'macguffin'. Neste sentido, o roteirista Daniel Moya reproduz muito bem as reações corriqueiras ao agendamento jornalístico: todos os personagens que aparecem em cena comentam, de alguma forma, o escândalo Watergate, e, por conta disso, o filme possui em seu âmago uma crítica sardônica ao modo como a avalanche noticiosa instaura alguns comportamentos programadamente revoltosos. Aconteceu antes (vide o modo estereotipado como o discurso pretensamente revolucionário dos 'hippies' é retratado no filme), acontece ainda mais hoje (vide as pendengas envolvendo opositores e simpatizantes da extrema-direita na realidade): ao falar do passado, o enredo, não por acaso, comenta justamente o presente! 


Se, por um lado, Connie destaca-se por sua incrível perícia ao decorar diálogos e manusear aparelhos - o que decorre de anos e anos de prática como funcionária responsável pela transcrição de reuniões institucionais -, por outro, o jornalista Paul (John Magaro) demonstra-se completamente atabalhoado. Na melhor seqüência do filme, com duração quase teatral, ele e ela entabulam um rápido romance, enquanto são ouvidos os fatos comprometedores que relacionam o ex-presidente Richard Nixon ao magnata Howard Hughes, segundo uma conversa imaginada pelo roteirista. Entretanto, o casal é continuamente interrompido, culminando no instante em que descobrimos as verdadeiras ocupações dos personagens de Catherine Curtin e Vondie Curtis-Hall, ambos ótimos. Quase todas as pessoas do filme desempenham papéis ambíguos, não sendo raro que vida privada e vida profissional se confundam. É um filme que usa a comédia para falar de coisa séria, portanto. Ou talvez o inverso, como muitas vezes ocorre na Política! 



Wesley Pereira de Castro.