Em dado momento das três horas e vinte minutos de duração deste filme, os fãs das aceleradas narrativas scorseseanas tendem a estranhar a maneira comedida com que ele se dedica à linearidade do relato, quiçá obedecendo à estrutura capitular do romance original de David Grann. Diferentemente do que ele acostumou-nos em seus trabalhos mais célebres, aqui, a montagem de sua colaboradora fiel Thelma Schoonmaker evita as estripulias lingüísticas, não obstante servir-se de paralelismos situacionais e de 'flashbacks' explicativos/revisionistas. Até que a derradeira seqüência referenda a genialidade do realizador, no que tange à consciência de que, ao narrar a História de seu país, ele obrigatoriamente dedica-se a uma listagem de assassinatos. O que, porém, não o leva a estimular a descrença nas instituições democráticas, mesmo que fique evidente que isso advém de construtos discursivos embasados na repetição factual com intenções descadaramente ideológicas...
Ao narrar a comunhão matrimonial oportunista (e ambígua) entre um jovem recém-chegado da I Guerra Mundial (Leonardo DiCaprio) e uma mulher indígena (Lily Gladstone, magnífica) com direito a grandes somas de dinheiro, relacionadas à exploração de petróleo em suas terras nativas, Martin Scorsese - que adaptou o roteiro do filme, junto ao premiado Eric Roth - chama a atenção exatamente para aquilo que a História é: uma narração! Neste sentido, o brilhantismo do desfecho também possui uma carga autocrítica, visto que, somando-se pincipalmente a John Ford [1894-1973], o diretor tem clareza de que contribuiu para uma apreensão deveras específica sobre as condições de estabelecimento da nação estadunidense. Ou seja, ele assume que oferece mitos nacionais ao espectador, malgrado preferir a faceta anti-heróica (ou até mesmo vilanesca) dos mesmos, fazendo com que este novo longa-metragem seja um complemento direto do igualmente magistral "Gangues de Nova York" (2002).
Fotografado de maneira excelente por Rodrigo Pietro, "Assassinos da Lua das Flores" é musicado de forma inteligente por Robbie Robertson [1943-2023], cujas composições muitas vezes se estendem por longos minutos, reforçando o aspecto conseqüencial das atitudes dos personagens, em cenas distintas. Ainda que a perspectiva dominante seja a do protagonista Ernest Burkhart, em tom objetivo, o filme surpreende ao inserir duas alucinações moribundas da personagem Lizzie Q. (Tantoo Cardinal), em tom subjetivo, antecipando a reviravolta narratológica da seqüência final, uma das mais corajosas já filmadas (e protagonizadas) pelo cineasta, um dos mais talentosos em atividade em Hollywood!
Em sua décima colaboração actancial com o diretor, Robert De Niro converte o vilão William King Hale num personagem que sintetiza as características hipócritas facilmente encontráveis nos líderes carismáticos de algumas regiões norte-americanas, sendo escancaradas as intenções político-denuncistas do enredo quanto a problemas da atualidade. Porém, o foco tramático é o pedido de desculpas a uma comunidade indígena que foi amplamente dizimada, num projeto malévolo desvendado pelo então recente FBI (Federal Bureau of Investigation), fundado em 1908. Quantos e quantos genocídios locais não receberam a mesma atenção midiática, conforme o diretor faz questão de emular, ao citar a influência da Ku Klux Klan nalguns atos violentos, mencionados pelos personagens. Servindo-se, portanto, de uma estrutura narrativa consolidada, Martin Scorsese obriga-nos a questionar os interesses por detrás da própria ficcionalização - e, assim, no auge de oitenta anos de idade, ele entregou-nos um trabalho de gênio!
Wesley Pereira de Castro.