segunda-feira, 16 de novembro de 2009

BESOURO (2009). Direção: João Daniel Tikhomiroff.


“Não posso porque sou menino. Não posso porque sou pobre. Não posso porque sou negro”: com essas três reclamações inter-relacionadas, somos apresentados ao personagem principal, ainda criança, contemplando o coleóptero que lhe servirá de apelido. Diante dele, seu mestre Alípio (Macalé) adverte-o que o mesmo crescerá e talvez deixe de ser pobre, mas será negro por toda a vida. Portanto, deveria ele se orgulhar de tal condição racial. A narração de Milton Gonçalves, sobreposta ao mesmo texto escrito, explica que a trama se passa no Recôncavo Baiano, em 1924. A prática de capoeira é até então proibida pelos coronéis da região e o personagem-título agora é adulto, vaidoso e irresponsável. Quando Mestre Atílio é morto numa emboscada, Besouro é culpado por desleixo em suas funções protetorais e, disposto a corrigir seus erros, faz um pacto de reverência com a entidade Exu (Sérgio Laurentino) e torna-se um mítico defensor dos negros que “libertados há quase 40 anos, ainda são tratados como escravos”.

Esta é, basicamente, a sinopse do filme aqui resenhado e, comungada a deslumbrantes imagens publicitárias fotografadas por Enrique Chediak, enchem de interesse o olhar do espectador. Infelizmente, porém, os pretensiosos e inúteis virtuosismos de câmera e montagem comandados pelo diretor João Daniel Tikhomiroff, o roteiro omisso dele mesmo e de Patrícia Andrade e a péssima interpretação do protagonista Aílton Carmo chafurdam o ótimo projeto que este filme poderia render. Ao invés de um saudável pontapé inicial no subgênero de artes marciais no Brasil, “Besouro” assemelha-se a um piloto de seriado televisivo concluído às pressas e ignorando as contradições ideológicas de seu entrecho. Sabendo-se que a Globo Filmes está envolvida na produção, a intenção talvez tenha sido essa mesma!

Ainda que as propaladas coreografias de lutas ensaiadas pelo chinês Huen Chiu-Ku justifiquem o chamariz com que é tratado, a edição frenética de Gustavo Giani e o excesso de câmeras tremidas e/ou subjetivas diluem o impacto visual do filme, que se assemelha bastante a um arremedo de videoclipe proto-surrealista. Poucas são as cenas envolvendo o personagem principal que não estejam envoltas numa confusão espaço-temporal entre passado, presente e fantasia sobrenatural. A exacerbação divulgadora dos caracteres enciclopédicos do candomblé ‘for export’ que permeia o filme amalgama-se a um discurso alegadamente revoltoso em que os germes seriam apenas plantados na luta contra a exploração (visto que, como diz o avantesma de Mestre Alípio, “a morte não existe. A morte é apenas viver debaixo da bota alheia”), mas os personagens do filme são sintomaticamente perseguidos por aquela condição que o educador Paulo Freire constatou nos povos dominados da América latina: a tendência a serem “hospedeiros” do poder dominante e, dessa forma, levarem a cabo os seus intentos progressivos de dominação, mesmo quando parecem se revoltar contra eles. Nesse sentido, a composição do personagem Quero-Quero (vivido pelo erotógeno ator Anderson Santos de Jesus, que lega a melhor interpretação do elenco) denuncia a obliteração conscienciosa que se instala quando “um afago faz esquecer a chibata anteriormente recebida”.

A subsunção crescente deste personagem às ordens veladas do coronel Venâncio (Flávio Rocha, correto), quando este parece empolgado durante suas apresentações de capoeira, é o corolário definitivo do tipo de comportamento obediente que mascara a violência das novas configurações escravagistas. O problema é que essa mesma composição personalística é instaurada por um capricho maniqueísta do roteiro: Quero-Quero precisa agir de forma desagradável apenas para que sua namorada de infância Dinorá (Jessica Barbosa) termine o romance com ele e se entregue ao desenxabido Besouro. Em outras palavras, não há um mínimo de sinceridade nas transições comportamentais dos personagens, seja no que diz respeito à malevolência sub-reptícia de Quero-Quero, seja no que diz respeito à redenção incredível de Besouro.

Outro aspecto em que tal falta de sinceridade composicional interfere de forma gritante é a trilha sonora: se, no plano intradiegético, a percussividade somática dos berimbaus encanta figurantes e espectadores, no plano extradiegético, o ofuscamento de Gilberto Gil, Nação Zumbi e Rica Amabis em meio a explosões eletrônicas e odes sintetizadas demonstram a escandalosa tendência do filme à diluição mercadológica: tudo nele é minuciosamente planejado para ser vendido, desde a sensualidade forçada das cenas em que Dinorá e Besouro dançam e fazem amor até a paralisia imagética da cena final, quando fica subentendido que o filho de Besouro continuará a saga vingativa contra os coronéis baianos que mataram seu pai.

A construção humorística do vilão Noca de Antônia (Irandhir Santos) é particularmente ridícula, tornando ainda mais grave o maniqueísmo contido no roteiro, que, para além de suas metonímias históricas, injeta uma puerilidade disfuncional na condução da trama, que demanda muito tempo nalgumas atividades (vide os ritos de passagem espiritual a que Besouro é submetido) e despreza a importância de outras (as estranhas relações empregatícias entre a mãe de Dinorá e seu patrão, por exemplo). Ao final, sobressaem-se as incômodas impressões de que o filme transcorre de forma muito rápida e intermitente, de que o personagem principal aparece muito pouco, considerando a sua exaltação mitológica, e de que, com certeza, ele inaugurará uma franquia exploradora dos arquétipos raciais do Brasil.

Comparando-se o filme com os correspondentes genéricos de Hong Kong que tanto emula, “Besouro” é débil em pelo menos duas grandes constatações: a falta de apoio hipercodificado no que diz respeito a produções nacionais similares, o que faz com que ele mereça ser elogiado por seu pioneirismo proposicional, mesmo que as ambições a ele relacionadas sejam deveras perniciosas; e a adoção espalhafatosa do imaginário religioso, que, para além de sua importância enquanto congregadora de pessoas, é apresentado aqui de forma pirotécnica e oportunista, não havendo espaço suficiente para as reflexões conscienciosas dos personagens, em especial, do antipático protagonista. Sendo assim, também merecem elogios alguns integrantes do elenco secundário (já mencionados) e a iniciativa geral no que diz respeito ao resgate de raízes da cultura negra brasileira, elevadas ao patamar de “patrimônio cultural da Nação”, conforme anuncia um letreiro final.

O diretor João Daniel Tikhomiroff, por outro lado, assume-se como parasitário em seu tecnicismo deslumbrante e incoeso, utilizando o colorido das imagens e a voz privilegiada do músico pernambucano Jorge du Peixe para obscurecer as mesmas raízes culturais que o enredo do filme fragilmente tenta resgatar...

Wesley Pereira de Castro.

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