quinta-feira, 19 de novembro de 2009

TÁ CHOVENDO HAMBÚRGUER (2009). Dir.: Phil Lord & Chris Miller


Não obstante o cinema hollywoodiano enfrentar crises eventuais de popularidade e/ou de foco temático e ostensivas transformações, reinvenções e emulações técnico-formais, a manutenção do ciclo familiar – tendo na relação entre pai e filho o seu ponto forte – continua sendo o valor ideológico que mais impulsiona a produção de peças cinematográficas que variam em torno da mesma fórmula narrativa: alguém é incompreendido e escorraçado pelo círculo social que o rodeia, tem a chance de se redimir, torna-se bastante orgulhoso neste processo, arrepende-se e consegue restituir a ordem anteriormente estabelecida, com a diferença de que agora é aceito pela mesma sociedade que o rejeitou antes, valendo-se para tal justamente dos estratagemas que faziam com que ele fosse rejeitado.

Assim acontece em dramas, comédias, faroestes e em qualquer outro gênero fílmico que obedeça às convenções instituídas pelos estúdios financiadores. Tanto é que, com base nesta percepção, estabeleceu-se o seguinte esquema para o acompanhamento do cinema norte-americano geral: situação – ação – situação modificada. Ou seja, os mantenedores deste esquema comungam da idéia de que os problemas conjunturais da sociedade podem ser resolvidos através da ação de um indivíduo em particular, o que explica porque seus admiradores respeitam tão fervorosamente o sistema representativo de governo, em que as razões da maioria são costumeiramente associadas à satisfação obediente. O filme aqui comentado pouco adiciona aos fatores constitutivos do supracitado esquema, sendo previsível, consentidamente inverossímil e, o pior de tudo, atrelado às piores mazelas do ‘status quo’ familiar. Fica a pergunta: isto impede que ele seja muito divertido e assistível?

Para o espanto desesperançoso dos amantes de cinema, a resposta à pergunta acima é não! O filme possui momentos bastante inspirados de diversão e, conforme pôde se perceber a partir de amostras experimentais de receptividade espectatorial, funciona muito bem em seus intentos inoculadores de devoção familiar, não sendo raro que as crianças que assistiram a este filme acompanhadas por seus pais saiam da sessão dizendo que os ama, tal qual fazia o protagonista em relação ao seu próprio pai e à mulher que ama e que, dentro em breve e no plano extra-campo, possibilitará que ele seja também um pai de família merecedor das mesmas declarações de amor. Entretanto, a satisfação que o roteiro deste filme consegue causar tem muito mais a ver com a exigüidade qualitativa de produções similares – concomitante à sua impressionante impregnação quantitativa – do que necessariamente com suas virtudes roteirísticas internas, a cargo dos próprios diretores. Ignorando-se a já mencionada inverossimilhança situacional, que é amparada pelas convenções do gênero animado, o roteiro de “Tá Chovendo Hambúrguer” é uma execrável ode ao desperdício, visto que, por detrás de seu discurso sobre as dificuldades alimentícias dos moradores da cidade onde se passa a trama, reside um poderoso avatar capitalista em que as leis de mercado são rigorosamente respeitadas, de maneira que a disposição rígida do pai do protagonista em manter-se confinado à sua loja de sardinhas – não importa o que esteja acontecendo do lado de fora ao longo de vários anos – cumpre uma obrigação espúria da segmentação econômica que costuma funcionar como antonomásia indébita de uma região. Quando se pensa no que é feito com os restos de comida que ficam amontoados pelo chão depois que as chuvas gastronômicas passam, (são atirados aleatoriamente ao longe, visto que, nas palavras do vilanesco prefeito, o que está longe dos olhos, está também longe da barriga”), a referida ode assume aspecto de catástrofe mundial, aspecto este que é disfarçado quando o filme brinca com os clichês de filmes sobre terremotos, furações e tempestades, relacionando tudo a macarrão, pizza, frangos assados e, como diz o título original, almôndegas.


Insistindo-se em buscar uma virtude que seja originalmente cara a este filme, temos na reiteração algorítmica de todas as seqüências em que o jovem cientista Flint Lockwood resolve construir, consertar ou simplesmente pôr em funcionamento as suas máquinas e invenções um elemento bastante positivo, que pode passar despercebido para boa parte de sua platéia-alvo, mas, ainda assim, é um poderoso elogio ao uso da prudência na resolução de conflitos. Afinal de contas, Flint faz questão de mencionar em voz alta o verbo correspondente a cada ação que efetua, configurando um esquema metalingüístico na estrutura mesma do enredo, que, dessa forma, é ao menos sincero em sua pretensão mantenedora. A cena em que a repórter Sam Sparks, já vestida como a ‘nerd’ de rabo-de-cavalo que fora na adolescência, diz ao cientista Flint que ele não precisa fingir que é alérgico às mesmas substâncias que ela para despertar sua atenção namoratória é igualmente merecedora de panegíricos, pois tangencialmente põe em evidência a mesma necessidade de manter-se sincero diante de uma meta a ser cumprida.

Assim sendo, rememorando-se retrospectivamente as imagens dos primeiros diálogos românticos do casal, revestem-se de nova beleza os olhares encantados dele e dela quando percebem que têm em comum não somente o desejo de serem aceitos pela sociedade e as ambições científicas, como também um linguajar erudito e minucioso em suas definições físico-químicas elementares.


O saldo geral de “Tá Chovendo Hambúrguer”, portanto, escapa da mesmice a que ele estaria confinado em virtude de suas obrigações mercadológicas justamente pela assunção impressionante dos mecanismos justificadores destas mesmas obrigações, que chegam ao cúmulo da obviedade em todas aquelas seqüências que explicam a subsunção inicial da cidade de Swallow Falls (traduzida como Boca da Maré, no Brasil) ao comércio de sardinhas. Se, nalguns momentos, irritamo-nos deveras com a falibilidade reclamante dos argumentos do protagonista no que diz respeito à alimentação parca e repetitiva de seus vizinhos, noutros, ficamos satisfeitos ao perceber a construção progressivamente relevante do personagem Bebê Brent, que, inicialmente condenado a beneficiar-se vitaliciamente de sua fama enquanto modelo infantil, logo se percebe como capaz de trabalhar em equipe e assim contribuir para a megalômana tarefa de salvar do mundo. E esta é a mensagem que fica, até que sejam lançadas novas miríades de desenhos animados de longa-metragem incorrentes na forçada redenção entre pai e filho e obliterem as preciosas dicas sobre entendimento do sistema capitalista que este filme equivocado sub-repticiamente revela – e que, pensando bem, ao fazê-lo, escamoteia.

Wesley Pereira de Castro.

Um comentário:

Elaine Crespo disse...

Adoro teus comentários!
As vezes meperco umpouco, mutas palavras não entendo!
Mais no final vc deixa tudo bem dito eentendido!

Tu é um gênio em questão de cinema!!
Comentar filmes é teu don!!

Beijos
Elaine