terça-feira, 8 de dezembro de 2009
ATIVIDADE PARANORMAL ('Paranormal Activity') EUA, 2007. Direção: Oren Peli
Num artigo datado de 1947, o crítico marxista Georg Lukács averigua os conceitos de “arte livre” e “arte dirigida” e constata que, no interior do sistema de produção (cultural) capitalista, “a liberdade total de invenção torna-se, na realidade, uma servidão”. Segundo ele, a banalização das formas penetradas por um invencível prosaísmo ideológico leva os artistas a fecharem-se exclusivamente em suas subjetividades íntimas, de maneira que as pretensas invenções formais da atualidade desvinculam-se de conteúdos essencialmente novos, ao contrário do que é socialisticamente idealizado. Não obstante o referido texto abordar um contexto sociocultural e uma opinião política muito particulares, ele é válido para se abordar os fracassos estéticos da obra aqui analisada, sobrevalorizada enquanto filme bem-sucedido mais por causa das proporções econômicas dele oriundas do que necessariamente por seu caráter de novidade em relação à arte cinematográfica, visto que, com o passar dos anos, mais e mais filmes com aparência de vídeo caseiro hiper-realista são lançados no mercado com a intenção de encantar parcelas do público enfastiadas com a similaridade serial dos produtos hollywoodianos.
É por isso, portanto, que “Atividade Paranormal”, para além de possuir seus méritos discretos (quase todos atrelados à atuação espontânea do desconhecido Micah Sloat), vem sendo julgado de forma equivocada por seus admiradores e, como tal, injustamente maculado por preconceitos relacionados à sua inata legitimação modista. Afinal de contas, se deixarmos de lado por um instante os maneirismos videográficos do montador, roteirista e diretor Olen Peli, percebemos no entrecho de “Atividade Paranormal” um vácuo preenchido pela anunciação auto-provocada dos fenômenos contidos em seu título, estando muito aquém de obras congêneres, como a surpreendente reviravolta moral do clássico “Holocausto Canibal” (1980, de Ruggero Deodato) ou os arguciosos chistes técnicos do excelente “A Bruxa de Blair” (1999, de Daniel Myrick & Eduardo Sánchez). Em outras palavras: as tramas elaboradas que sustentavam o invencionismo formal das obras citadas não encontram eco em “Atividade Paranormal”, visto que, neste último filme, o que mais pode ser confundido com improviso é, no máximo, um eufemismo para precipitação epidérmica.
Investiguemos tal acusação no interior do próprio filme: nas primeiras cenas, Micah (Micah Sloat) testa o funcionamento de uma câmera recém-comprada para registrar fenômenos paranormais que estão a se manifestar na residência de sua histérica namorada Katie (Katie Featherston), por sua vez espantada com a opulência do equipamento conseguido por seu dedicado companheiro. Sabemos mais à frente que a captação profissional de imagens e sons engendrada por Micah equivale a ‘hobby’ ou aptidão secundária, visto que ele gasta seu tempo trabalhando na Bolsa de Valores de sua cidade, o que inflaciona as suspeitas acerca da edição intradiegética, que é obviamente diferenciada daquela posta em cena pelos estudantes de Cinema que protagonizam as duas extraordinárias obras anteriormente citadas e do amadorismo proposital de “Cloverfield – Monstro” (2008, de Matt Reeves), em que as pessoas que carregam a câmera-personagem são selecionadas fortuitamente. Assim sendo, os engodos hiper-realistas contidos nos letreiros inicial e final (em que a equipe técnica do filme agradece o apoio concedido pelo departamento de polícia local e pelas famílias dos atores-personagens e, ao final, revela que o crime cometido no clímax permanece não-resolvido até hoje) são negativamente problemáticos em função da inocuidade propulsiva do roteiro, já que, em muitas situações, os personagens forçam as aparições fantasmagóricas que afligem Katie, de maneira que as expectativas geradas por tais aparições soam enfadonhas (e, em alguns casos, até risíveis) para o espectador, felizmente confortado pela credibilidade naturalista do ator Micah Sloat, que, numa ampliação literal, carrega o filme nas costas, tal qual faz com a imensa câmera que hesita em largar até mesmo em momentos de extrema tensão e erotismo.
Somos, então, levados a inquirir sobre o quanto a participação dos atores/cúmplices desse tipo de projeto interferem na efetividade dramática do mesmo, posto que, nos três exemplos genéricos anteriormente citados, a onipresença da câmera era justificada por aspectos funcionais da construção do roteiro e dos personagens, e não forçosamente adotada, conforme acontece em “Atividade Paranormal”.
Se, num exercício oportunista de imaginação comparativa, transpuséssemos as bases enredísticas dos filmes citados para um contexto tradicional de abordagem narrativa, as mesmas permaneceriam críveis, dado que cada uma delas possui expressão conteudística sobressalente ao formato sustentacular de exibição, expressões estas que vão desde o impacto desmoralizador de “Holocausto Canibal” até o espanto catastrófico de “Cloverfield – Monstro”, passando pelo revisionismo documental de “A Bruxa de Blair”. Comparando “Atividade Paranormal” com seus modelos tramáticos mais próximos [“O Enigma do Mal” (1981, de Sidney J. Furie) e “Poltergeist, o Fenômeno” (1982, de Tobe Hooper)], o mesmo demonstra-se incapaz de sustentar, noutro contexto hipotético de abordagem factual, tanto o horror gerador de impotência do primeiro filme quanto o estudo causal de costumes familiares de época aplicado no segundo, sendo, ao invés disso, preenchido por expectativas e provocações (vide a cena em que um tabuleiro de ‘Ouija’ incendeia-se espontaneamente) quase irritantes em sua insistência. Por isso, deve ser destacado e elogiado o ótimo desempenho actancial de Micah Sloat, que acerta ao dotar as passagens transitivas do filme com um senso de humor contagiante, efetivo tanto na imaturidade demonstrada à beira da piscina, quando ele realiza brincadeiras vulgares com seu dedo médio, quanto no hilário momento em que ele se vale de uma piada interrogativa do grupo britânico Monty Python para “entrar em contato” com a entidade que apavora sua namorada. Katie Featherston, por sua vez, é prejudicada pela histeria previsível de sua personagem, que gradualmente se torna mais e mais clicherosa, chegando ao cúmulo de atenuar o pavor imediato que advém da atordoante cena final, quando ela é mostrada com olhar tipicamente desnorteado e um penteado hipercodificado sobre a sua face. Entretanto, no plano da sugestão fisiológica, esta cena final é bastante fecunda ao amedrontar o espectador, que, com certeza, sentir-se-á perseguido por associações subconscientes de retroalimentação do medo após a sessão do filme. Ou seja: mesmo que o filme exiba mais defeitos que virtudes, ele é bastante exitoso na tarefa inicialmente proposta de assustar a platéia.
Feitas todas estas considerações, e pondo-se em evidência o fato de que o filme é realmente apavorante, “Atividade Paranormal” talvez se torne uma experiência fílmica mais agradável (no plano estético) quando revisto, no sentido de que, assim, os efeitos vãos que provêm da exacerbada criação de expectativas convertem-se num componente analítico do que se é pretendido ao se lançarem anualmente inúmeras obras como esta, em que o estupor imediato do público é sinonimizado como reação hipodérmica prevista (e aguardada) por seus produtores e distribuidores capitalistas. Nesta revisão, portanto, os caracteres do relacionamento amoroso entre Micah e Katie podem ser beneficiados num cotejo com “Mar Aberto” (2003, de Chris Kentis), por exemplo, em que o comportamento para-matrimonial numa situação de horror inelutável assume contornos paradigmáticos mui dignos no que se refere às características psicológicas dos personagens.
Nesse sentido, as ocasiões mais interessantes de “Atividade Paranormal”, como o momento em que o casal protagonista se abraça no chão depois que sobrevivem a um ataque ectoplasmático ou sempre que eles são filmados dormindo, são dotadas de um valor transcendente às suas limitações formais natas, vendidas como inovações. E é aqui que uma pertinente citação lukacsiana merece espaço: “o perigo de todo utopismo é o de ficar muito aquém daquilo que, com toda probabilidade, pode ser efetivamente realizado no caso do aproveitamento flexível das possibilidades reais”. Eis um caso!
Wesley Pereira de Castro.
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