segunda-feira, 9 de novembro de 2009
A ERVA DO RATO (2008). Direção: Julio Bressane.
A agudeza de visão, o rigor estético e o sarcasmo metalingüístico dos filmes de Julio Bressane são características que permitem livre associação entre seu fulgor criativo e o ‘corpus’ literário de Machado de Assis. Não é inesperado, portanto, que o autor de cinema aqui citado recorresse mais de uma vez ao escritor fluminense. Se em “Brás Cubas” (1985), ao invés de uma transcrição linear da narrativa do romance, o que foi levado às telas foi sua própria reflexão sobre o que vem a ser um personagem (aliado a lances insuspeitos de genialidade adaptativa, como oferecer um microfone a um crânio na primeira cena do filme), em “A Erva do Rato”, o diretor/autor amalgama contos diversos do escritor nesta trama excessivamente dialogística, que traz à tona suas obsessões estilísticas reconhecíveis. Na primeira cena do filme mais recente, por exemplo, ondas que quebram na praia são contempladas por alguns instantes para que, em seguida e no mesmo plano, focalizem um cemitério onde encontramos o casal protagonista, interpretado por Alessandra Negrini e Selton Mello. Dela, sabemos que esteve presa por roubo e que seus pais morreram. Dele, ouvimos que saber o nome das pessoas é o suficiente para que elas vivam juntas. Apesar de não conhecermos os nomes destes personagens, eles consentem que devem morar juntos. Lêem e escrevem um ao lado do outro, conversam sobre venenos, posam para fotografias, até que a presença freqüentemente incômoda de um murídeo na residência deles desestabilizará a alegada felicidade do casal. Ao final, o homem estará reproduzindo com um esqueleto as mesmas ações que compartilhava com sua amante. Na trilha sonora, um tango canta que somente uma pessoa encanta o eu-lírico da canção. A casa é mostrada vazia, de fora, depois que percebemos que a mesma água que fomenta os oceanos é aquela que move os córregos: eis o universo romântico de Julio Bressane!
Mais uma vez recorrendo à consulta roteirística e iconográfica de sua esposa Rosa Dias, Julio Bressane conta também com a colaboração recorrente do fotógrafo Walter Carvalho, que o ajuda a engendrar verdadeiros quadros cinematográficos que, conforme a sua propalada erudição pictórica faz perceber, remetem a obras mui elogiadas da arte mundial. O enquadramento em que percebemos numa parede a sombra do “espectador” de papel com que o personagem masculino presenteia a mulher é, nesse sentido, um dos mais belos do filme, metonimizando a falibilidade da colaboração entre a beldade fotografada e o obsessivo homem. Enquanto este último manipula afoitamente a sua câmera, permanece indiferente ao que está se passando ao seu redor, salvo por delirantes ameaças persecutórias referentes ao roedor que ele intenta matar com a distribuição de inúmeras ratoeiras pelo chão de sua casa. Em outras palavras: se pudéssemos reduzir um filme de Julio Bressane ao seu entrecho, nesta obra poderíamos discorrer sobre o modo como o ciúme arregimenta o egoísmo disfarçado de permissividade que tanto fecunda os atos alegadamente passionais de alguns seres humanos. Mas o filme é bem mais do que isso, bem mais do que isso...
Trabalhando novamente com a atriz com carreira consolidada na televisão que protagonizara seu filme precedente [“Cleópatra” (2007)], Julio Bressane extrai de Alessandra Negrini uma interpretação que prima pelo estranhamento. Ao invés de deixar entrever uma índole personalística (seja ela positiva ou negativa), a personagem feminina deste filme é constituída por lacunas entre diálogos, que são, por si mesmos, incompletos. Se num momento vemo-la redigindo comentários de exploradores portugueses sobre a flora peçonhenta do Brasil quinhentista, noutro momento, vemo-la descrevendo o formato do gato ideal para perseguir o rato que assombra seu companheiro masculino: “um gato de rua, sei lá, um gato caçador. Dizem que, lá na Pérsia, existe um gato com o rabo deste tamanho...!”. Selton Mello, por sua vez, contém o histrionismo com que é lembrado em premiadas interpretações e limita-se competentemente a recriar o mecanicismo ativo exigido pelo personagem, mecanicismo este que, num fascinante exercício de revelação, tem sua composição directiva apresentada durante os créditos finais, quando vemos o diretor Julio Bressane instruir os movimentos dos atores, que reagem como se estivessem mergulhados no transe que reconhecemos nos personagens.
Reconvocando a acertada e intencional comparação com o escritor Machado de Assis, Julio Bressane demonstra por que é o maior esteta cinematográfico brasileiro em atividade, realizando uma obra que possui imagens belíssimas que, por vezes, parecem existir isoladas do roteiro (vide o plano subjetivo que acompanha o percurso da ratoeira carregada pelo protagonista), mas que estão minuciosamente carregadas de moral crítica, técnica e política. Sem precisar incorrer em qualquer adesão de unanimidade adjetiva, para além dos elogios merecidos a toda a equipe técnica, e percebendo-se uma notável continuidade entre este filme e as biografias/hagiografias anteriores do cineasta, fica aqui uma certeza: Julio Bressane é um gênio que parece estar nos hipnotizando a cada segundo, mas que, em verdade, alavanca o aclaramento intelectual do público que se dispõe a embrenhar por suas imagens e sons carregados de estesia.
Wesley Pereira de Castro.
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Um comentário:
Gosto muito de teus comentários e sabes disto!
Sempre feito com cuidado, e aprofundamento. Consegues ver as vezes que o publico em geral não consegue enxergar!
ADORO LER Seu COMENTÁRIO DE UM FILME!!
Saudades
Beijos no coração!
Elaine
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