Num texto datado de 1957, fundamental para a
arregimentação teórica do que foi consagrado como “Política dos Autores”, o
cineasta e crítico de cinema François Truffaut afirma que “um diretor possui um estilo perceptível em todos os seus filmes, e isso
vale para os piores cineastas e seus piores filmes”. Alegando que, para
além das diferenças técnicas e produtivas imputadas de um filme para outro, um
cineasta inteligente e talentoso permanece merecedor de ambos os adjetivos não
importa que filme esteja a realizar, François Truffaut acrescenta que “um filme de diretor não visa à perfeição; é
menos homogêneo, porém mais vivo, mais belo de rever”.
Ainda que alguns considerem
precipitada a consideração do taiwanês Ang Lee como um cineasta autoral, é
inegável que, ao transitar por filmes dos mais variegados gêneros, ele consegue
imprimir uma sutil marca registrada permanente, estando esta atrelada à
temática recorrente da autoridade paterna questionada pela rebeldia de sua
prole. Transitando entre a figura ostensiva do pai em crise [“Comer, Beber,
Viver” (1994), “Tempestade de Gelo” (1997), “Hulk” (2003)] e a figura paterna
ausente, omissa ou substituída [“Razão e Sensibilidade” (1995), “Desejo e
Perigo” (2007), “Aconteceu em Woodstock” (2009)], esta temática explica por que
filmes tão distintos quanto os excelentes “O Tigre e o Dragão” (2000) e “O
Segredo de Brokeback Mountain” (2005) possuem aspectos em comum que ultrapassam
as suas convenções genéricas específicas e asseguram a impressionante
versatilidade do diretor Ang Lee.
Em “As Aventuras de Pi”, como era esperado,
tal temática é novamente importante para se entender as motivações pulsionais
dos personagens, mas, no caso do protagonista Piscine Patel (Suraj Sharma), o
que surpreende é a elevação do questionamento da autoridade paterna a um nível teológico, visto que, numa cena-chave,
uma criança hindu tendente à conversão ao cristianismo interroga-se
pungentemente acerca dos motivos que levaram Deus a conduzir a própria figura humana
de Seu filho para sofrer na Terra...
A introdução oportuna das questões religiosas no
roteiro deste filme – escrito por David Magee a partir de um conceituado romance
de Yann Martel – transporta o espectador por um terreno muito mais árduo do que
parecia demonstrar a assunção de que Ang Lee é um cineasta autoral e com
preocupações assaz íntimas acerca da reiteração das relações familiares anteriormente
descritas. Além de se considerar simultaneamente hindu, cristão e muçulmano, o
personagem principal ainda dialogará com um budista, sendo este último fundamental
para o pretenso deslindamento de uma chave interpretativa justificadora dos panegíricos
destinados ao filme, ao qual seria ofensivo dedicar uma análise meramente
técnica ou centrada apenas em suas peculiaridades tramáticas.
Um dos méritos
mais evidentes do filme é a sua apresentação narrativa ambígua, inicialmente
conduzida pelo protagonista envelhecido (Irrfan Khan) que conta a sua estória
de sobrevivência para um audiente (Rafe Spall) prontamente identificado como
alter-ego do escritor Yann Martel. Se, no princípio, esta narração intercalada parece
incômoda ou equivocada, numa das seqüências finais ela instaura a dúvida acerca
da veracidade intradiegética dos eventos narrados, quando estes se bifurcam
numa trama convencional e noutra simbólica, em que um quarteto de animais desempenha
funções antropomorfizadas. O problema (no melhor sentido do termo): mesmo que
associemos a zebra ferida, a hiena agressiva, a orangotanga maternal e o tigre
instintivo a um budista feliz, a um marinheiro chistoso, à mãe do protagonista
e a ele próprio, como tenta fazer alguém durante o filme, a co-presença de Pi
em relação a estes mamíferos exige que analisemos o seu espectro enredístico a
partir de um prisma crítico/narratológico mais ousado.
Obrigando o espectador a se posicionar diante de duas ficções
possíveis envolvendo as mesmas possibilidades de interação entre personagens,
Ang Lee, através do roteiro que dirige, lança-nos na mesma encruzilhada conteudística
que balizava “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003, de Tim Burton),
não por acaso um filme sobre um filho que se desentende com seu pai fantasioso.
Porém, dois filmes com os quais se pode cotejar diretamente “As Aventuras de Pi”
são “Stromboli” (1949, de Roberto Rossellini) e “Náufrago” (2000, de Robert
Zemeckis).
Em relação à segunda obra, as associações são óbvias, visto que existem
diversas conexões entre ambos os filmes, como a valorização encantatória e, ao
mesmo tempo, periculosa de misteriosos seres vivos marinhos e a perda dalgum
objeto que assegura a sanidade do protagonista à deriva em meio à solidão concernente
à sua espécie (uma bola de futebol humanizada a partir de uma mancha de sangue
que parece uma efígie sorridente, no filme zemeckisiano, e um caderno onde relatava
as suas memórias de sobrevivência, no filme mais recente). Já no que diz respeito
ao clássico de Roberto Rossellini, o filme de Ang Lee irmana-se no que tange à
aceitação de aspectos epifânicos da crença monoteísta, de modo que a invocação exaltada
que Ingrid Bergman faz em relação à supremacia de um Deus Todo-Poderoso quando
um vulcão entra em erupção ao lado dela tem muitíssimo a ver com as exclamações
religiosas adoradoras de Pi em meio a uma tempestade permeada por apavorantes relâmpagos.
Mas, sendo original em relação aos filmes com os quais foi comparado, “As Aventuras
de Pi” se destaca pela grandiosidade heteróclita do relacionamento entre o
protagonista indiano e o tigre-de-Bengala Richard Parker (maravilhosamente recriado
a partir de efeitos computadorizados digitais).
Por mais limitador que seja analisar este filme em vista
de seus atributos técnicos, não há como não se impressionar diante da extrema segurança
directiva relacionada aos diversos animais em cena, que, reais ou não, em
termos de atuação não deixam nada a dever a nenhum dos atores humanos com quem
contracenam. O brilhantismo da fotografia de Claudio Miranda, a majestosidade
da trilha sonora de Mychael Danna, a edição firme de Tim Squyres (que colaborou
com o diretor em quase todos os seus longas-metragens) e as habilidades
versáteis já mencionadas de Ang Lee (que, neste filme, faz uma breve aparição à
la Alfred Hitchcock) estão à mercê das questões sumamente filosóficas que o
filme elenca, tendo como motrizes dois diálogos essenciais e repetidos em
momentos roteiristicamente convenientes: o primeiro deles diz respeito à
teimosia do pequeno Piscine (então interpretado por Gautam Belur) em acreditar
que os animais têm alma, até que a exposição, por parte de seu pai (Adil
Hussain), de como um carnívoro se alimenta o leva a acreditar que a afeição que
ele percebeu nos olhos do tigre Richard Parker não passava de seus próprios
sentimentos refletidos; o segundo, por sua vez, é mais categórico e pontual,
quando o náufrago Pi atrela o medo que sente do tigre também náufrago à força
que o fez permanecer alerta e seguir em frente.
Por extensão, poder-se-ia
deduzir daí que o filme filia-se ao tipo de pensamento contido no vigésimo
segundo parágrafo da sexta meditação cartesiana, quando o filósofo, em primeira
pessoa, insinua que “tudo o que a
natureza me ensina contém alguma verdade. Pois, por natureza considerada em
geral, não entendo outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição
que Deus estabeleceu nas coisas criadas”. Não sendo mais inoportuno,
portanto, chegar à conclusão que Ang Lee é, sim, um autor de cinema, no caso em pauta talvez seja muito mais urgente ler
a obra original de Yann Martel no qual o filme se baseia. Mas, enquanto não se
tem acesso a ela, as perguntas suscitadas pelo filme são o que ele tem de mais
precioso: deveras gratificante encontrar este tipo de reflexão metafísica num
filme hollywoodiano atual, aliás!
Wesley
Pereira de Castro.
Um comentário:
tigre insensíivel
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