À página 135 do livro "Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil", organizado por Paulo Henrique Silva, aparece a seguinte afirmação: "como realizador, [Marcelo] Ikeda tem uma produção expressiva". Segue-se uma lista de realizações, onde não consta o filme resenhado nestas linhas. Apesar de publicado em 2019, o texto de Ailton Monteiro e Diego Benevides sobre "Crítica de Cinema no Ceará: a apreciação como prática coletiva" obliterou intencionalmente este curta-metragem realizado em 2016. E não foi por desatenção. Há muitos aspectos na difusão deste filme em particular que exigiram a sua retração exibitória. Quais seriam estes? Talvez o próprio título explique...
Nos créditos finais, há uma pista valiosa: em meio aos agradecimentos da produção, uma advertência, "nenhum animal irracional foi maltratado durante as filmagens". O embate entre aluno avaliado e professores avaliadores, que ocorre num momento-chave do filme, demonstra a veracidade deste aviso: muitos egos foram machucados aqui! E a cautela do realizador quanto à apresentação deste ótimo produto de catarse coletiva deixa claro que quem se sentiu atacado pelo enredo reagiu com violência. Ignorando, inclusive, quem maltratou antes e com maior intensidade. Talvez isso seja uma questão extrafílmica. Portanto, voltemos ao que o filme apresenta, por si mesmo, em seus dezoito minutos de duração.
Logo no início, o desconforto de um personagem, Evan (Evan Teixeira), que precisa confessar algo para sua mãe. Deveras nervoso quanto à possível reação incompreensiva dela, ele ensaia persistentemente a melhor maneira de encetar o diálogo. De supetão, percebemos vários temas caros a um curta-metragem anterior do realizador, "Carta de um Jovem Suicida" (2008). A recorrência denotaria uma obsessão pessoal com algo ainda não devidamente assumido? Logo perceberemos que não apenas isso: num recurso genial de adesão à metalinguagem, o filme trava. E o "assunto meio delicado" do início sai da esfera íntima e adentra o campo acadêmico, a discussão intelectual. O que é privado é também público, quando convertido em Arte!
Numa encenação genial, em que o próprio diretor, junto a dois outros professores, atua como si mesmo, aquilo que até então víamos como drama é julgado enquanto atividade universitária. O que parecia defeituoso internamente (o abuso de certa teatralidade, por parte dos atores) é questionado como defeito técnico, pela banca avaliativa. Seria um chiste, uma autocrítica, uma provocação e/ou tudo isso ao mesmo tempo? É irrelevante responder. Marcelo Ikeda - roteirista, diretor, professor e personagem - convida-nos a sentir, a lembrar de situações semelhantes, em que estivemos envoltos numa esfera de reprovação, apenas porque insistíamos em desabafar algo. Eis um tema que parece abarcar toda a filmografia ikediana: a urgência salvaguardadora do desabafo!
Por mais que Evan, o aluno, tente defender-se, há toda uma conjuntura de "experiência" que o desautoriza, em termos de imaturidade (por mais que essa seja trazida à tona, enquanto depoimento autoral, por ele próprio). Num diálogo posterior com um amigo, a chaga da rejeição/incompreensão revela contradições ainda mais delicadas: depois que esbraveja contra a europeização afetada de seus detratores, Evan reclama que, ao invés de estrear no Festival de Tiradentes, seu filme deveria ser exibido em Locarno. Quem o julgaria por ter ambição? Quem se identifica com seu elã colérico? Na derradeira seqüência, no escuro, a leitura de um maravilhoso poema de Sara Síntique. Tal qual o supracitado curta-metragem anterior, "Um Assunto Meio Delicado" revela-se um filme de amor, um grito em defesa da necessidade de declarar aquilo que arde por dentro. Um trabalho de mestre, portanto: parabéns por tamanha (auto)consciência e sensibilidade, Marcelo Ikeda!
Wesley Pereira de Castro.
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