Na primeira cena deste filme, Maria
(Marlene Burow) prefere ficar em casa lendo, em vez de ir à escola.
Ela faz isso há vários dias, o que intriga seu namorado Johannes
(Cedric Eich), que ameaça jogar o grosso romance que ela lê pela
janela. Ela pede que ele não faça isso e, numa conversa casual,
Johannes pergunta-lhe qual o nome do livro e do que se trata. Ela
responde: “Os Irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoiévski, e, em
seu resumo, a trama é sobre os três filhos de um senhor
assassinado, sendo que o mais novo deles fica dividido entre duas
mulheres de temperamento radicalmente distinto. É uma enorme
simplificação, claro, mas ajuda a compreender o ímpeto passional
da protagonista…
Ao som da canção “Behind
the Wheel”, da banda britânica Depeche Mode, intuímos que estamos
entre o final da década de 1980 e o início da década de 1990: a
Alemanha acabara de ser unificada, em razão da derrubada do Muro de
Berlim, que dividia o país em dois. Maria vive na parte oriental, e
passa mais tempo na casa de seu namorado que ao lado de sua mãe,
Hannah (Jördis Triebel). Esta ficou desempregada recentemente,
devido às bruscas mudanças econômicas desencadeadas pela situação
supracitada e, para piorar, ela está ressentida porque o seu
ex-marido, pai de Maria, casar-se-á com alguém com metade de sua
idade. A comunicação entre mãe e filha é dificultada, em
múltiplas instâncias.
Apesar de não ser uma
fazendeira abnegada, eventualmente Maria ajuda a família de Johannes
em tarefas cotidianas, como debulhar o trigo ou auxiliar nas vendas
de uma quitanda. É numa dessas atividades que ela conhece o ríspido
Henner (Felix Kramer), com quem ela se envolverá sexualmente, num
desenvolvimento enredístico que, segundo alguns espectadores, emula
tramas como as dos romances “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert,
ou “O Amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence. Tal como
ocorre nestas obras, Maria busca refúgio no sexo, ao quedar
entediada na lida com a rotina rural…
O relacionamento com Henner é
permeado por uma sexualidade rude, bruta. Nos primeiros contatos, ele
tenta praticar o coito anal, e ela consente, fascinada pela pletora
de livros espalhados pela residência do camponês. Estes foram
herdados de sua mãe, a quem ele descreve como alguém depressivo, o
que vai acrescentando dados que permitem antecipar o que ocorre no
desfecho. O roteiro, inclusive, foi co-escrito pela diretora e por
Daniela Krien, autora do romance homônimo original.
Chama a atenção, no filme,
a sua fotografia amplamente alaranjada, emulando tanto a luz
crepuscular, quanto as plantações de trigo e a cor dos cabelos de
Maria. Esse tom é também encontrado nas lâmpadas da residência de
Henner, bem como no papel de parede que cobre o seu quarto. Maria
submerge nesses ambientes quase monocromáticos, até tornar-se presa
de uma obsessão que a adoece: em mais de um momento, ela aparece
febril, enfraquecida, não hesitando, porém, em entregar-se a Henner
mesmo quando está menstruada. O que deixará de ocorrer com
Johannes, para o seu descontentamento.
À medida que o filme avança,
tons esverdeados surgem na tela, emulando a passagem do tempo,
através das estações do ano. Da mesma maneira que Maria – ainda
muito jovem, em seus dezenove anos de idade –, a Alemanha está
também amadurecendo: os habitantes da Alemanha Oriental,
traumatizados por conta da doutrinação e censura comunistas,
demonstram-se fascinados com as aberturas comerciais do Ocidente, com
as promessas de lucro e com produtos chamativos, como o toca-CDs ou o
‘chantilly’ enlatado. A família de Johannes, que acolhe Maria
durante a fase em que ela não sabe direito o que fazer da própria
vida, passa por vários conflitos, que espelham o que ocorre em
âmbito nacional. É quando o rapaz crê ter encontrado a sua
vocação: tornar-se fotógrafo. O que faz com que Maria se sinta
ainda mais solitária do que estava inicialmente…
Nas duas horas e nove minutos de duração desta simpática produção germânica, tem-se a impressão de que Maria é presa de um ciclo mui repetitivo de atração e aversão, em relação ao lacônico Henner. Na derradeira seqüência, o título do filme é clarificado, numa associação renovada com a obra que ela lê com tanto entusiasmo. Antes que os versos apaixonantes de “Dancing Barefoot”, de Patti Smith, surjam nos créditos finais, o vaticínio de um personagem dostoiévskiano será pronunciado, em ‘off’, pela jovem: “um dia, nós ressuscitaremos, e nos reencontramos e conversaremos sobre tudo. Absolutamente tudo”. Fica a impressão de que o enredo possui forte pendor autobiográfico, o que não é casual: há uma dupla adolescência sendo abandonada no filme, a de uma moça e a do país em que ela vive. Enquanto leitora compulsiva, Maria exorta-nos a decifrar as entrelinhas do que ocorre no filme em que ela é a personagem principal!
Wesley Pereira de Castro.
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