sexta-feira, 30 de agosto de 2024

ARMADILHA (2024, de M. Night Shyamalan)


Nas entrevistas que concede, M. Night Shyamalan faz questão de enfatizar algo essencial para a compreensão de sua obra: ele é obcecado por Alfred Hitchcock [1899-1980]. Não um mero admirador, mas um legítimo continuador - ou melhor, um expansor, no sentido de que ele conjuga a sua extrema admiração pelo "mestre do suspense" com elementos que ele alegava advir do fascínio por outro cineasta hollywoodiano, Steven Spielberg. Com o que aprendeu deste último, ele justifica a recorrência de famílias desmembradas em seus roteiros. De um cineasta, portanto, ele extrai a idiossincrasia das aparições diante das câmeras (no caso do indiano, em participações com falas e, nalguns casos, determinantes para alguma reviravolta emocional); do outro, a antecipação de que, nalgum momento da trama, será necessário escolher entre a promessa de harmonia familiar e a possibilidade de salvação em larga escala, tanto de pessoas próximas quanto de desconhecidos. Na mistura de referências, uma filmografia extremamente original, que, neste mais recente capítulo, dialoga até mesmo com o maneirismos supramidiáticos de Brian De Palma! 



Tal qual o seu grande mentor, para M. Night Shyamalan, o prolongamento da tensão interessa mais - muito mais! - que as reviravoltas acachapantes, ainda que ambas coincidam nos enredos: nesta produção mais recente, ele surpreendeu os espectadores antes da estréia, ao revelar, no 'trailer', que o seu protagonista é um assassino em série deveras perverso. Sabendo disso, adentra-se a sessão frente a um desafio: como evitar a identificação com um personagem tão hediondo, quando tudo o que percebemos está conduzido por seu olhar, através de sua perspectiva associada a necessidade de fugir? Ou seja, o espectador vê-se diante de um dilema fundamental, que é o de emancipar o seu ponto de vista tramático da condução plenipotente do psicopata vivido por Josh Hartnett. Como evadir-se? De antemão, o realizador nos diz: seu ofício é semelhante ao de um sádico, em que prolongar o sofrimento das vítimas funciona como uma missão direcionadora. Tese de gênio! 



Pondo em prática uma constatação psicanalítica - a de que a maneira mais eficiente de esconder algo é deixá-la à mostra -, M. Night Shyamalan faz também o inverso: ao obliterar um ou outro detalhe narrativo, ele revela. Daí, ser contraproducente elencar as falhas narrativas ou as inverossimilhanças que as sustentam: o que interessa a ele é a comunhão com o subconsciente espectatorial, sendo imperativo o recurso ao trauma, à explicitação dos mecanismos que retroalimentam a existência dos medos. Por isso, uma psiquiatra (Hayley Mills) orienta os agentes do FBI na busca pelo assassino em série e, nos intervalos de suas canções, Lady Raven (interpretada pela filha do diretor, Saleka Shyamalan) pede à sua vasta platéia que, "se houver alguém, em suas vidas, que vocês precisem perdoar, ergam os seus telefones celulares e digam 'eu te perdôo'". Descobrir a identidade do "Açougueiro" importa muito menos que entender o porquê de ele ter se tornado assim. O intricado (ou, para alguns, defeituoso) enredo é apenas um pretexto: a dialética entre criminoso e vítima é refletida na relação entre o filme e o espectador e, prolongando-se 'ad infinitum', entre este e o que ele se esforça para esquecer... 



Jamais desvencilhando-se das lições hitchcockianas, os 'macguffins' shyamalanianos desvelam-se como luxuosas sessões de terapia, em que as personalidades mais violentas podem estar ao nosso lado (ou, em casos eventuais, dentro de nós). Que ele faça isso através dos mais espetaculosos recursos cinematográficos é algo que merece demorados aplausos: vide o caso em pauta, em que a sua filha compôs um álbum inteiro com canções 'pop', repetidas com paixão pelos figurantes do filme e por Riley (Ariel Donoghue), filha do protagonista. Uma destas canções, "Where Did She Go", magistralmente executada ao piano, é pivô de um momento-chave, em que o bombeiro Cooper não pode mais disfarçar quem ele é: "existe um fantasma em minha casa, e ela está vestindo as minhas roupas/ Ela se parece com alguém que eu conhecia/ Ela canta à noite, melodias que eu escrevi/ Há lágrimas nos olhos dela, mas, por detrás, eu sei"... 



Tecnicamente, o filme é esplendoroso (toda a longa seqüência do concerto, que ocupa quase metade do filme, é excelente), mas, no desenvolvimento da trama, as incongruências se acumulam, obrigando os espectadores mais afoitos a externarem a sua decepção quanto às obviedades e/ou impossibilidades  do filme. Até que, durante os créditos finais, o funcionário Jonathan Langdon exclama, olhando para a tela de sua TV (e, por extensão, para nós), que "nunca mais falará com ninguém enquanto estiver trabalhando". A tese salta aos olhos: M. Night Shyamalan sabe que a manutenção da paranóia e a interdição das gentilezas servem a interesses de vigilância governamental e de macrocomerciantes que se beneficiam dos sentimentos de culpa de seus consumidores. Quer dizer que o assassino escapa, no final? Então... 



Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

TIPOS DE GENTILEZA (2024, de Yorgos Lanthimos)


Goste-se ou não das esquisitices - eventualmente forçadas e sempre tendentes à misantropia - do grego Yorgos Lanthimos, ele configura-se - também de maneira forçada - como um dos grandes autores cinematográficos contemporâneos. Se, em suas tramas, a lógica da dominação de um personagem (ou grupo de personagens) por alguém com tendências psicóticas é recorrente, na perspectiva visual, os espaços tendem a ser bastante amplos, sufocando, pelo excesso de vazio, os protagonistas atormentados. Para isso, a atual colaboração com o fotógrafo Robbie Ryan é fundamental, seja quando exagera na utilização das câmeras olhos-de-peixe, em obras anteriores, seja quando emula os planos de longo alcance de Thimios Bakatakis, que fotografou a maioria das obras deste cineasta, e cuja influência é assaz evidente neste longa-metragem... 


Mais uma vez colaborando roteiristicamente com Efthimis Filippou, parceiro em quase todos os seus trabalhos [exceção sentida em "A Favorita" (2018) e "Pobres Criaturas" (2023)], Yorgos Lanthimos retoma o flerte com o horror que permeava obras que o tornaram internacionalmente conhecido, como "Dente Canino" (2009) e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017). Tal como ocorre nestes filmes, as subtramas independentes abordam os efeitos colaterais de relacionamentos marcados pela excessiva devoção: na primeira das estórias, em âmbito profissional; na segunda, sob o jugo marital; e, na terceira, avaliando o fanatismo religioso/místico. Mesmo quando resvala em alguma verborragia, as quase três horas de duração do filme são bizarramente entretenedoras! 


Um hepteto de atores reveza-se, nas três estórias, em papéis completamente diferentes, sendo surpreendente a radical transformação de Jesse Plemons de um segmento para o outro: de um funcionário subjugado, ele torna-se um marido paranóico e termina como um assecla quase impotente. Emma Stone, apesar de fascinante, não varia o tom de suas interpretações, conquanto vivifique alguém meigo no início, servil no meio, e vilanaz no desfecho. O mesmo ocorre nas personificações de Willem Defoe, que surge demoníaco na abertura, volta quase inexpressivo no episódio intermediário, e aparece como um líder lascivo no enredo derradeiro. Hong Chau, Margaret Qualley, Joe Alwyn e Mamoudou Athie completam o grupo principal de intérpretes, deveras competentes em suas funções tangenciais. 



Do um modo semelhante ao anjo que rondava o condomínio onde transcorriam os capítulos de "Decálogo" (1988, de Krzysztof Kieslowski), há uma entidade, identificada através da sigla R.M.F. e personificada por Yorgos Stefanakos, que circunda as três tramas, e nomeará os correspondentes segmentos ("A Morte de R.M.F", "R.M.F. Está Voando" e "R.M.F. Come um Sanduíche"): ele não fala, mas observa os personagens de maneira clemente, percebendo que estes não terão direito aos consolos que buscam, dado o sadismo com que o diretor os trata. Este último aspecto, infelizmente, calha de estragar a potência do filme, visto que, depois de um primeiro episódio interessante mas apenas mediano, vem uma quase obra-prima e, por fim, um segmento que poderia ser magistral, se não fosse a espalhafatosa falta de contenção do realizador. Tudo o que acontece após a mui divulgada dancinha de Emma Stone soa redundante, em relação ao que já fôra demonstrado. Custava respeitar a epifania criminosa que se instaura num necrotério?!



Para quem chegou desprevenido ao filme, os sinais que identificam as obsessões do diretor estão anunciados desde a utilização da canção "Sweet Dreams (Are Made of This)", da banda Eurythmics, durante os créditos de abertura: para este realizador, as "gentilezas" do título correspondem àquilo que a letra oferta, de maneira um tanto ambígua: "todo mundo está procurando por algo/ Alguns deles querem te usar, outros querem ser usados por ti/ Alguns querem te abusar, outros querem ser abusados por ti". Neste sentido, não chega a ser chocante o teor pornográfico dos vídeos de suruba que o policial Daniel (personagem de Jesse Plemons, no segundo segmento) deseja assistir ao lado de um casal de amigos, nem a progressão antropofágica de seus comportamentos. A violência oportunista a que uma cadela idosa é submetida, no terceiro segmento, por sua vez, é bastante incômoda, bem como o sub-aproveitamento do talento desnudo de Hunter Schafer, numa única e breve seqüência. Ainda assim, trata-se de um filme à altura daquilo que esperamos de seu realizador, que, mais uma vez, extrai uma excelente e perturbadora trilha musical de Jerskin Fendrix. A imagem de um cachorro enforcado, como se fosse um suicida, ao som de uma canção metaleira ("Rainbow in the Dark", de Dio), demora a sair de nossa mente! 



Wesley Pereira de Castro. 

O AUGE DO HUMANO 3 (2023, de Eduardo Williams)


 

Lançando o terceiro exemplar de um projeto iniciado em 2016 – sem que tenha havido um capítulo intermediário –, o cineasta argentino Eduardo Williams faz jus ao título de seu filme, visto que, nas longas conversas e seqüências contidas em “O Auge do Humano 3” (2023), ele prepara-nos para um clímax quase sobre-humano, no desfecho, quando voar é uma atividade corriqueira. Um trabalho genial, que requer imersão por parte do espectador, concedida através de recursos de Realidade Virtual e da filmagem em trezentos e sessenta graus, que engendra efeitos inebriantes desde o primeiro instante de projeção…



Não há letreiros situando o espectador acerca do país em que uma determinada situação está ocorrendo: migramos de Taiwan para o Peru e para o Sri Lanka em poucos segundos, através de uma montagem virtuosística – a cargo do próprio diretor –, que aproveita de forma magistral a expansão do quadro, as linhas de fuga das paisagens urbanas ou rurais dos ambientes em que os jovens protagonistas interagem.



Na seqüência de abertura, percebemos que interessa mais ao realizador os recursos estendidos de imagem e som que os diálogos, não obstante estes serem indispensáveis, em sua profusão quase surrealista. Caminhando por um cenário praiano, um rapaz alega ter visto um corvo vomitando na praia. Seguem andando, até que um deles precisa urinar, e é elogiado por isso: “tu fazes xixi muito bem”. Encontram uma senhora cujo filho está afastado para dedicar-se ao serviço militar. Despedem-se dela e, ao apressar o passo, um deles escorrega. Como sabe que está sendo filmado, exclama “que vergonha!”. É repreendido de imediato: “vergonha é ser um mega-bilionário”!



Situações como esta são repetidas em cenários distintos e as mesmas frases voltam em meio às conversas aparentemente circunstanciais entre amigos. Chama positivamente a nossa atenção a pletora de membros da comunidade LGBTQIA+, naturalizados em suas vivências diuturnas. Um tema recorrente nestas conversas é a necessidade de procurar emprego ou, paradoxalmente, de relaxar durante as jornadas de trabalho que nem sempre são satisfatórias. Um ótimo exemplo: em determinado momento, um rapaz busca outro no restaurante em que trabalha. Este último não parece reconhecê-lo, mas, de qualquer modo, aceita o convite para passearem, subitamente. De repente, o primeiro começa a correr, alegando estar cansado. O conselho lógico: “não corras, então, senão ficarás ainda mais cansado”!


Flagrando os personagens em casas construídas sobre palafitas, à beira-mar ou no meio da floresta, Eduardo Williams estabelece maravilhosos contrastes entre as figuras humanas e as paisagens e cenários ao seu redor. Para tal, a fotografia de Victoria Pereda – que já trabalhara com o diretor no primeiro capítulo deste audacioso projeto – atinge efeitos esplêndidos e alucinantes, por vezes estroboscópicos. Assistir a este filme equivale a experimentar audiovisualmente as sensações compartilhadas por aqueles jovens!



Para quem aprecia os filmes do tailandês Apichatpong Weerasethakul – sobretudo “Eternamente Sua” (2002), uma de suas obras-primas, com muitas similaridades tramáticas em relação ao trabalho multinacional ora resenhado –, “O Auge do Humano 3” serve como uma indicação tão obrigatória quanto balsâmica: trata-se de uma produção que congrega de maneira inteligente e autoral as características audiovisuais – múltiplas, metamórficas e permutáveis, para citar uma famosa classificação do teórico Arlindo Machado [1949-2020] – da contemporaneidade. Vide a inusitada percepção que se instala quando os jovens conversam sobre narrativas de jogos eletrônicos enquanto passeiam por um cenário vasto e montanhoso, próximo ao surpreendente desfecho, em que a câmera é objetificada em sua subjetividade: num átimo, ela parece perder o seu eixo, mas é logo reencontrada, por um dos personagens, e paralisada, no ápice de um movimento. Incrível!



A fim de que o filme seja tão bem-sucedido em suas intenções “instaladoras”, os efeitos visuais idealizados pelo próprio realizador e o trabalho egrégio da equipe responsável pelo desenho de som possuem importância basilar. Tecnicamente, o filme é deslumbrante, possuindo, em suas entrelinhas, críticas pertinentes à poluição e ao desrespeito de algumas pessoas em relação à Natureza. Num dos píncaros espetaculares deste longa-metragem, a placidez sussurrante do mergulho de uma dupla de amigas é prontamente substituída por uma ‘rave’ aquática, onde ouvimos o “Baile do Caos”, de Alada, na banda sonora. Um filmaço mui descritivo acerca do que é o Século XXI, em termos de conjunção entre imagens e sons cinematográficos, mas que também enfatiza a relevância dos encontros entre seres humanos, inclusive em seu viés sexual. Qualquer elogio superlativo é pouco, muito pouco, para metonimizar o impacto desta obra. Um lançamento extraordinário!



Wesley Pereira de Castro.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

MOTEL DESTINO (2024, de Karim Aïnouz)


Ainda que não seja lícito julgar um filme pelas expectativas que ele provoca, este título é negativamente vitimado pelos expressões superlativas que acompanharam a sua divulgação em coberturas de festivais - e, por extensão, nas redes sociais: a exortação enquanto "'thriller' erótico" e a extrema simpatia dos envolvidos na produção, em entrevistas e coletivas de imprensa, resvalam num desempenho apenas morno na tela. Ou pior: cercado por conveniências tramáticas que soam inconvenientes até mesmo na comparação ostensiva com enredos clássicos do subgênero 'noir', sendo o roteiro decepcionante na insistência com que tenta forçar o impacto do Destino, como se fosse uma entidade exterior, na vida daqueles personagens, quando tudo o que acontece advém da irresponsabilidade e das inconseqüências dos mesmos... 


Que Elias, magistralmente interpretado por Fábio Assunção, seja obcecado pelos animais que cria (cavalo, galinhas, gato, etc.) é algo que ajuda bastante no delineamento de caracteres em simultânea atração e conflito, sendo nodal a seqüência em que ele flagra o impetuoso Heraldo (Iago Xavier) observando um casal de burros que se acasala num terreno. Resta-lhe lamentar que "a vida não seja apenas isso" e prosseguir com a labuta infindável no hotel titular, em que os funcionários subjugam as próprias vidas a uma rotina assaz centrípeta, seja em expedientes noturnos ou diurnos. Inclui-se nesta categoria o recepcionista acessório vivido por Yuri Yamamoto, que não esconde uma paixão platônica por seu patrão. Esta paixonite, aliás, será ecoada nas manifestações de homoerotismo que se intensificam quando Elias está próximo a Heraldo, que não hesita em ficar seminu, o tempo quase inteiro, mas se recusa em nadar numa piscina doméstica por "não estar de sunga".


Esplendorosamente fotografado por Hélène Louvart, que serve-se de um contraste excelente entre cores fortes como azul e vermelho, além de efeitos 'neon' e/ou fosforescentes, este filme leva a sério a sua autodefinição enquanto "'noir' equatorial": em muitas situações, as cenas são tão escuras, que percebemos sobretudo a iluminação advinda de pirilampos ou o reflexo da lua nos corpos suados dos atores. E isto é maravilhoso, tanto quanto outros aspectos formais da obra. O problema é que estes elementos técnicos estejam a serviço de uma trama insossa e mal construída, principalmente no que diz respeito ao delineamento dos personagens: vide o fascínio súbito que Dayana (Nataly Rocha) sente por Iago quando este tenta lhe estrangular por não ter dinheiro para pagar a estadia no quarto onde esteve com uma desconhecida, enquanto ela converte o seu marido em vilão por ele demonstrar os mesmos comportamentos violentos ou possessivos atrelados à competividade masculina. Neste sentido, o grande problema do filme é o sobejo de coincidências, como a morte do francês que Heraldo deveria ter assassinado, num quarto do Motel Destino, ou as situações que justificam a leitura romântica de uma carta, no desfecho. 



Se, em âmbito imagético, o filme é acachapante, o desenho de som revela-se exagerado ao manter uma contínua banda sonora de gritos e gemidos escandalosos no motel, como se todas as pessoas fizessem sexo de maneira radicalmente indiscreta. Os diálogos pronunciados por Heraldo e Dayana muitas vezes soam inconvincentes, em razão de ignorarem a concatenação emotiva provocada pelas situações imediatamente anteriores: é como se eles vivessem num presente perpétuo, referendando, mais uma vez, a associação com os comportamentos animalescos. Complementam os problemas do filme a reprodução caricata do ambiente criminal em que Heraldo e seu irmão interagiam e as alucinações visuais que atormentam o rapaz, ao longo da projeção. Em seu pretenso erotismo, o filme é brochante, exceto quando Fábio Assunção está em cena, dignificando um personagem ambíguo com tamanha intensidade, que, mesmo que ele não apareça nu (como foi amplamente perguntado nas redes sociais, antes do lançamento), desnuda-se impressionantemente enquanto artista, sem medo de se reinventar, após diversas atribulações em sua vida pessoal. Por ele e pelos esperados maneirismos da direção, o filme compensa a debilidade tramática e a inverossimilhança relacional que, infelizmente, atravessa toda a narrativa! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Festival de Gramado 2024 - Documentários: POEMARIA (2024, de Davi Kinski)


Que a inspiração nos filmes de Eduardo Coutinho [1933-2014] seja destacada na sinopse e no material de divulgação deste filme é algo que muito mais atrapalha do que ajuda, no sentido de que cria-se, a partir disso, uma expectativa insatisfatória: afinal, emula-se o dispositivo, mas não necessariamente o método. Registrar as falas emocionadas de várias pessoas - entre famosos e profissionais do dia a dia -, diante de uma tela negra, num palco vazio, não é o mesmo que "entender a razão do outro, sem lhe dar razão". Superada esta comparação auto-imposta, "Poemaria" (2024) cativa por aquilo que possui de tão particular: os relatos de poetas, assumidos ou não, que lidam com a beleza inequívoca de um ofício que salva vidas, como tantos concordam e ratificam, em suas lembranças. Vide o exemplo da tributarista Claire Feliz Regina que, aos oitenta anos de idade, começa a escrever poesias e compõe uma prodigiosa ode à vagina... 


Logo na abertura, o ator Gero Camilo chama a atenção para o fascínio engendrado pelos ruídos da claquete, enquanto disparo exordial da "poesia cinematográfica". Segue-se um depoimento prenhe de erotismo, em que ele destaca o processo poético como atravessado pelos mesmos mecanismos de uma trepada, em que o esperma e o óvulo a ser fecundado são as palavras, as frases e os sentimentos. Daí para a frente, todos os entrevistados trarão à tona emoções intensificadas, a partir do modo como eles lidam com definições muito pessoais que correspondem à poesia: seja quando a jornalista Marília Gabriela comenta as dificuldades inerentes à recepção artística; seja quando o estilista Fause Haten declara que qualquer ato pode ser poético, sendo expresso em palavras ou não. Ou quando Jean Wyllys relembra o verso maiakovskiano, musicado por Caetano Veloso, que ouviu enquanto comia uma macarronada, depois de uma longa privação de víveres: "gente é para brilhar, não para morrer de fome". Dá para compreender imediatamente o porquê de ele ter tatuado isto em seu peito! 


Num momento egrégio, a poetisa mineira Adélia Prado tem seu choro, manifesto enquanto lê um de seus poemas, interrompido pela montagem, a fim de se coadunar à recitação de um poema também dela, agora na voz de uma médica, que explica que a poesia a atinge "onde a ciência não alcança". Seu relato sobre uma paciente moribunda, que lacrimejava mesmo estando desidratada, é impressionante, tanto quanto a resposta da escritora Rosana Banharoli à pergunta "se a poesia fosse uma pessoa, o que tu dirias a ela?". Sem pestanejar, ela diz: "eu te amo. Obrigada por me salvar!". Isso ecoa nas contribuições de vários dos outros depoentes, como quando Alexandre Borges define o ato de ser pai como sumamente poético ou quando Ignácio de Loyola Brandão tece o máximo de elogios à capacidade sintetizadora de um 'haicai'. E é da comediante transexual Nany People que surge um dos apotegmas mais potentes, quando, ao recordar algo que a sua avó repetia, ela direciona ao espectador a seguinte lição: "não importa o prejuízo trazido pela tempestade; o que importa é a nossa capacidade de fazer a lavoura voltar a brotar". Eis a poesia em curso! 



Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Festival de Gramado 2024 - Documentários: CLARICE NISKIER - TEATRO DOS PÉS À CABEÇA (2024, de Renata Paschoal)


Mesmo quem não conhece a trajetória da atriz carioca Clarice Niskier - conquanto ela tenha dedicado mais de quatro décadas de sua vida ao teatro -, há de ficar fascinado perante a costura de entrevistas e trechos de suas atuações, neste documentário composto sobretudo por imagens pré-existentes, mas organizadas de maneira coesa através da montagem de Duda Benevides. Já que parte considerável da carreira da atriz titular é destinada aos monólogos, o tom documental é monocórdico, com muitas similaridades com o estilo telejornalístico. Ainda assim, fascinante de ser visto!



Em razão de Clarice Niskier ter mantido colaborações duradouras com três diretores específicos, estes contribuem com depoimentos valiosos sobre ela, neste filme: um deles, o saudoso Domingos Oliveira [1936-2019] permitiu que ela brilhasse em filmes como "Amores" (1998) e "Feminices" (2004); o segundo, Eduardo Wotzik, relata as importantes transformações que ela opera no palco, transcendendo, no cotejo entre personagens e intérprete, as exigências dramatúrgicas, conforme ocorreu numa encenação em que ela vivificava cinco mulheres gregas diferentes; e o terceiro, Amir Haddad, é aquele que ela mais cita, enquanto mentor, ao que ele retribui com uma brilhante citação lorquiana, dizendo que Clarice Niskier "é a poesia que levanta do livro e se faz humana"... 



Julgando o filme por seus apanágios cinematográficos, anui-se que não estamos diante de um documentário original ou inventivo, ao contrário do que faz a atriz, pessoal e profissionalmente, em gravações de períodos distintos de sua vida e carreira. Ciente de que é algo um tanto narcísico "ser homenageada ainda em vida", ela permite-se compartilhar a sua inteligência e carisma e, dessa maneira, inspirar os espectadores a não apenas pesquisarem sobre os seus antológicos trabalhos, mas também em assumirem o compromisso de serem participativos quanto aos espetáculos teatrais. Numa bela declaração, quando compara o teatro às demais artes, Clarice Niskier diz que, no cinema ou na televisão, quando falta energia elétrica, a exibição é interrompida. No teatro, não, visto que ele é "a nossa própria energia pré-histórica". Em sua modéstia formal, o filme permite que a atriz se desnude, em mais de um sentido, inspirada por aquilo que ela leu e traduziu, cenicamente, a partir de "A Alma Imoral", do rabino gaúcho Nilton Bonder. Trata-se de uma celebração merecidíssima de seu talento, portanto! 



Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Festival de Gramado 2024 - Documentários: MESTRAS (2024, de Aíla & Roberta Carvalho)

Como a direção deste documentário é compartilhada entre duas mulheres, é enfatizada a necessidade de valorizar vozes que, em conjunturas anteriores, seriam sufocadas pelos ditames estruturais do machismo. Em razão de serem realizadoras oriundas de tradições audiovisuais distintas (mas complementares), há dois diferentes tons no filme: de um lado, a narração em primeira pessoa, a cargo de Aíla, que relembra a trajetória de sua avô, que morreu afogada no Pará, Estado atravessado por muitas águas, de modo que isso faz com que ela associe a beleza do mar a uma inelutável tristeza; do outro, as homenagens a artistas maravilhosas como Dona Miloca, Iolanda do Pilão, Bigica e a maravilhosa Dona Onete - conhecida nacionalmente pela colaboração com Jaloo, na canção "Eu Te Amei (Amo!)", para ficar apenas numa das demonstrações de seus variegados talentos -, que legam-nos valiosos depoimentos. 


Não obstante haver o flerte com a linguagem da publicidade institucional, algo turística, os instantes que exibem as belezas naturais das cidades paraenses são maravilhosos, aproveitando justamente o fascínio provocado por esse tipo de produto midiático. A direção fotográfica é, portanto, excelente, tanto na captação de pôres-do-sol quanto no aproveitamento cromático das vestimentas das manifestações culturais. Para além da emoção contida na narração de Aíla, que explica que a sua mãe converteu-se numa "órfã de mãe e de pai vivo" após o falecimento da avó, o filme é abrilhantado nas situações em que as mestras supracitadas ofertam os seus saberes para os espectadores, demonstrando o porquê de ser tão importante que elas prolonguem as tradições do samba de cacete, carimbó e congêneres, a partir daquilo que foi ensinado pelas gerações mais velhas...


Viajando por cidades que "cresceram para dentro", a fim de aproveitar uma frase forte da narração, conhecemos os habitantes de Orém, Cametá e Marapanim, em suas eclosões dançantes. Conhecemos as lindas histórias de vida de mulheres idosas mas cheias de elã, que compensam a falta de alfabetização tradicional através de uma musicalidade encantatória. Infelizmente, seus méritos nem sempre são dignificados a contento, visto que apenas os homens são glorificados nas estátuas erigidas nos referidos municípios. Para compensar o esquecimento perpetrado pelas autoridades oficiais, as diretoras reproduzem, de maneira extensiva e devolutiva, a pujança da arte produzida por aquelas mulheres, através de efeitos esplêndidos, como a projeção de seus rostos nas folhagens das árvores, a ponto de uma delas comparar-se a plantas, no sentido de que, seres humanos, tanto quanto os vegetais, "precisam ser regados diariamente". É a deixa para que Aíla mencione algumas constatações cosmológicas, justificando que "mar calmo nunca fez bem a marinheiro" e que "tudo o que sai do mar retorna para ele". Em companhia da mãe, ela volta à beira-mar e faz as pazes com aquilo que sempre a machucou, dada a maneira traumática como a sua avó falecera. Fica o laudo, confirmado nos créditos finais: "as mestras da música são mestras da vida"!



Wesley Pereira de Castro. 
 

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Festival de Gramado 2024 - Documentários: TOQUINHO MARAVILHOSO (2024, de Alejandro Berger Parrado)


Que o paulistano Antonio Pecci Filho, no fulgor de seus setenta e oito anos de idade, seja um grande músico, ninguém questiona; que ele seja extremamente simpático e cordial, conforme percebemos neste documentário, idem. O problema é não permitir que o espectador tire as suas próprias conclusões ou (re)faça as suas descobertas: desde o adjetivo titular até o tom sobremaneira laudatório da integralidade dos depoimentos, tudo neste filme é sobremaneira bajulador e reiterativo, sem concessão à reflexão. Somos praticamente obrigados a aplaudir o artista de pé, ao término da sessão, dado o tom santificado com que ele é apresentado... 


Infelizmente, enquanto documentário, o filme é falho em inúmeros aspectos: seja na exigüidade de informações trazidas à tona (aquilo que vemos poderia ser lido diretamente nas capas dos discos, por exemplo), seja por conta da montagem sem inspiração, que reveza as falas mui elogiosas com imagens de concertos recentes do violonista, em que ele se dirige às platéias falando espanhol ou italiano. Nos setenta e seis minutos de duração do filme, ouvimos pouco daquilo que realmente interessa, em relação ao compositor: as suas músicas: a antológica "Aquarela", para citar um delas, aparece como uma nota de rodapé, próximo ao desfecho. Enquanto trabalho direcionado aos fãs, portanto, é decepcionante!


Obviamente, é válido testemunhar artistas como Gilberto Gil, Rolando Boldrin e Maria Bethânia tecendo comentários sobre a origem da Bossa Nova e afins, mas estes mencionam Toquinho de maneira apenas incidental. O artista porta-se de maneira bastante generosa e esforça-se para ser falante. mas os causos que ele narra são abafados pela timidez (e/ou pelo classismo) dos relatos. É oportuno saber que o seu famoso apelido adveio da maneira carinhosa de ser chamado pela mãe, a fim de distingui-lo do pai homônimo; é ótimo quando alguém o descreve como um pioneiro do 'showpapo'; e a rememoração do acidente que deixou o irmão do compositor paraplégico possui uma carga legítima de emoção. Porém, é pouco para ser vislumbrado num documentário em que falta música. Nem mesmo as múltiplas colaborações com Vinícius de Moraes [1913-1980] são devidamente exploradas: é tudo muito rápido, sem imersão. Resta-nos ouvir as preciosidades que o artista deixou gravadas! 



Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

MAIS PESADO É O CÉU (2023, de Petrus Cariry)


O filme abre com uma citação do cientista italiano Evangelista Torricelli [1608-1647]: "vivemos submersos no fundo de um oceano de ar". É a preparação simbólica para o tipo de sufocamento que aflige os dois protagonistas, Teresa (Ana Luíza Rios) e Antônio (Matheus Nachtergaele), ambos ex-moradores de uma cidade do interior cearense que foi coberta pelas águas de uma represa. Ao regressarem para Jaguaribara, quase no mesmo instante, eles percebem que têm muita coisa em comum, sobretudo na constatação de que já enfrentaram - e continuam a enfrentar - muitas dificuldades financeiras. Porém, o relacionamento entre eles demorará a ser assumido como tal. Até que, de repente, deixa de ser por completo... 


Sabemos pouco sobre Teresa: Antônio lembra dela caminhando, quando ainda era estudante de colégio, diante da borracharia onde ele trabalhara, na juventude, mas, muitos anos depois, o que se descobre é que ela "está sozinha no mundo". Seus pais aparentemente morreram e, por algum motivo, ela passa a cuidar de um bebê que encontrou abandonado numa canoa, como se fosse seu. Sobre Antônio, por sua vez, sabemos um pouco mais: ele viajara para o Sudeste, a fim de buscar novas oportunidades de emprego, mas, depois do desgoverno bolsonarista e das conseqüências da Covid-19, fia-se na esperança de poder comercializar caranguejos na Paraíba. Ambos não possuem nada, quando observam-se frente a frente, portanto. 


Auxiliados pela cordial Fátima (Sílvia Buarque, extraordinária), Teresa e Antônio passam a viver numa casinha sem mobília, onde deparam-se com os contratempos referentes à obtenção de víveres - principalmente, leite para o bebê, que virá a ser chamado Miguel. "Come-se num determinado dia, mas logo tem-se a necessidade de encontrar algo no dia posterior, e no próximo, e no próximo"... Eis o que lamenta Teresa, antes de submeter-se à prostituição na estrada, quando frustra-se diante da oferta de um subemprego aviltante, no posto de gasolina onde trabalha Letícia (Danny Barbosa). O desfecho trágico é iminente, referendando o sortilégio emulado pelo título. 



As paisagens áridas do Ceará são fotografadas de maneira sublime pelo próprio Petrus Cariry, um cineasta cuja filmografia é demarcada pela versatilidade. Não obstante as mazelas cumulativas e inevitáveis do capitalismo, por algum tempo, cremos que Teresa e Antônio serão bem-sucedidos em seu restabelecimento na terra natal, agora modificada pela implantação da represa. A conversa de Antônio com um caminhoneiro (Buda Lira), que requer que ele limpe a carroceria, antes de lhe dar carona, serve como uma espécie de corruptela discursiva sobre as teses engelsianas acerca da importância do trabalho na superação humana de um estágio inicialmente animalesco. Mesmo quando Teresa aceita receber dinheiro para ser observada nua, enquanto se banha, isso é mostrado como se fosse um acordo mútuo - malgrado humilhante para a mulher. Até que a violência irrompe, em coitos posteriores, mediante a confirmação de que "os homens são escrotos": as cenas de sexo à força (e mal remunerado) são árduas de serem assistidas! 



A trilha musical de João Victor Barroso oscila entre os acordes provenientes de sintetizadores e a utilização assertiva de canções da banda Cavalo de Pau ("Timidez" e "Brincar de Amar"). No enredo, as condições básicas de sobrevivência: é necessário comer, beber água, dormir - e, se possível, amar. A realidade estraçalha os planos de Antônio, que, numa seqüência sanguinolenta, olhando para a câmera, pergunta porque fazemos aquilo que fazemos. Nossa simpatia pelos personagens - hipertrofiada pelo fato de que eles são magistralmente interpretados - não é suficiente para assegurar-lhes um destino juntos, malogrando a bondade que tanto Teresa quanto Fátima percebem em Antônio. As privações corrompem o indivíduo, afinal? 



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

PRESENÇA (2023, de Erly Vieira Jr.)


O diretor e professor universitário capixaba Erly Vieira Jr. já havia se debruçado sobre a arte performática de um dos objetos humanos deste longa-metragem em oportunidades anteriores: ele é o autor, por exemplo, do livro "Marcus Vinícius - A Presença do Mundo em Mim", lançado em 2016, em que documenta, através de vasto material imagético, as impressionantes intervenções do artista mencionado no título, que expunha o seu próprio corpo a situações extremas, como ficar despido num pasto onde há diversas vacas ou caminhando em espaços urbanos, coberto por fitas adesivas, onde se lê, à exaustão, a palavra "Frágil". Infelizmente, ele faleceu, em decorrência de um mal súbito, numa viagem à Turquia, em 2012. Seu trabalho ficou eternizado, graças à curadoria criteriosa deste realizador, entre outros. 


Retornando aos trabalhos deste artista singular, internacionalmente conhecido, Erly Vieira Jr. coteja as suas ações com as obras de mais duas artistas radicadas em Vitória, capital do Espírito Santo, que têm em comum a característica de utilizar os seus corpos - tal como Marcus Vinícius - como palco de experimentações. De um lado, Rubiane Maia, que parte de um apotegma nietzscheano (aquele que prediz que, antes de voarmos, precisamos "aprender a ficar de pé, caminhar, correr, escalar e dançar") para realizar equiparações com plantas que se ramificam espacialmente ou efetuar movimentos que requerem extrema preparação física, como uma coreografia no topo do Pico da Neblina, ponto mais alto do Brasil, que fica no Estado de Amazonas... 


Do outro lado, temos a travesti Castiel Vitorino Brasileiro, que costuma se definir como um peixe e dança para a família, num espaço recoberto de areia, ao som dos tambores de candomblé. Movimentando-se freneticamente, ela também compõe versos poéticos, que acompanham as suas obras, tanto quanto Rubiane. Evitando ser limitada às convenções de gênero, Castiel fala que suas obras são sobre resistência e sacrifício, e, com base em suas poderosas entregas artísticas, também conseguiu projeção internacional, da mesma maneira que os demais retratados.


O filme, deveras convencional em sua exposição documental, beneficia-se de um extraordinário rigor fotográfico e das colaborações próximas, ao longo de anos, entre o diretor e os artistas em pauta. Funciona como uma espécie de catálogo expandido das manifestações performáticas dos envolvidos, além, claro, de um contundente registro identitarista, que ousa expor a pujança de artistas negros num Estado do Sudeste do Brasil, conhecido por suas manifestações de extrema-direita. Neste sentido, o filme merece ser apresentado e debatido nas salas de aula e, quiçá, em galerias. Inova pouco formalmente, deixando que isso fique a cargo dos artistas, mas os divulga de maneira tão enfática quanto carinhosa. Aplaudamo-nos, portanto! 



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 4 de agosto de 2024

O MAL NÃO EXISTE (2023, de Ryusuke Hamaguchi)


Não obstante variar radicalmente de temática de filme para filme, pode-se perceber, nos roteiros escritos por Ryusuke Hamaguchi, uma mesma orientação: o respeito pelos personagens humanos - o que não implica necessariamente na concordância em relação às suas ações -, a partir da suma valorização dos diálogos, em seqüências tão lentas quanto fascinantes. Neste sentido, se a sua mais recente produção difere bastante dos dois excelentes trabalhos lançados em 2021 ("Roda do Destino" e "Drive My Car"), o ritmo é similar, bem como a maneira quase epifânica com que o desfecho ressignifica as situações anteriores. Vide a demonstração pragmática do título do filme, em termos de exposição do Mal enquanto discurso, não como algo que existe por si mesmo... 



Dois aspectos chamam a atenção aqui: de um lado, a trilha musical, algo jazzística, de Eiko Ishibashi, que parece onipresente, mas é interrompida de modo abrupto, em momentos-chave, a fim de reverenciar o estilo godardiano; do outro, as demoradas cenas de reuniões e/ou que mostram atividades cotidianas, como cortar lenha ou preparar o almoço, em um restaurante. Enquanto síntese, a demonstração de que, para enfrentar o capitalismo especulativo, é mister recorrer à organicidade da natureza, que dispõe de um código mui particular de convivência, em que os lucros não são apenas desnecessários, mas ostensivamente rejeitados. 



Tal qual ocorre nas demais obras hamaguchianas, deve-se reverenciar o ótimo trabalho do elenco, capitaneado pelo eloqüente Hitoshi Omika, que interpreta o "faz-tudo" Takumi. Este possui uma filha pequena, Hana (Ryo Nishikawa), e é assediado por dois intermediários de uma empresa de 'glamping' ("'camping' glamoroso"), que tentam convencer os habitantes locais a aceitarem um proposta que introduzirá a poluição naquela paisagem. Ocorre que estes intermediários desconhecem a proposta que se esforçam para apresentar, pois eles, na verdade, trabalham para uma agência de talentos. Nas entrelinhas, uma denúncia ao esvaziamento proposicional (e ao desconhecimento das responsabilidades ambientais) levado a cabo pelas estratégias de terceirização. 



Nos cento e seis minutos de duração, vemos as copas de árvores, em mais de um instante, e aprendemos sobre as características das mesmas, o que será essencial para que compreendamos o impacto da derradeira seqüência, em que Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani) lidarão com os ônus da falta de contato com os ambientes naturais: ele, que sequer sabia como cortar lenha, constatará que instalar um acampamento na trilha de cervos possui conseqüências que podem ser trágicas, enquanto ela sofrerá um ferimento profundo, quando sua mão toca os espinhos de um ginseng siberiano. Para o espectador, a conclusão reitera aquilo que já testemunhamos em contatos prévios com a filmografia do realizador: conversar, sem omitir aquilo que efetivamente se sente, é essencial! 



Wesley Pereira de Castro. 

AINDA TEMOS O AMANHÃ (2023, de Paola Cortellesi)

A primeira imagem do filme dá o tom: a protagonista Delia (interpretada pela própria diretora, Paola Cortellesi), ainda na cama, deseja “bom dia” ao seu marido Ivano (Valerio Mastrandea) e, em resposta, recebe um tapa inesperado. Perplexa e sentindo dor, mas aparentemente acostumada a esse tipo de violência, ela levanta para executar as suas tarefas habituais. Na banda sonora, o clássico italiano “Aprite le Finestre”, na voz de Fiorella Bini, começa a ser executada. Inusitadamente, o otimismo da canção é contraposto à rudeza do cotidiano de Delia: a letra fala “abra as janelas para o novo sol”; ela obedece, mas, como mora num piso abaixo do nível da rua, alguém joga poeira dos sapatos dentro do seu lar e, além disso, um cachorro urina. A cada verso feliz da letra, uma imagem triste. Quem chegou a este filme através do anúncio de que se trata de uma “comédia feminista”, tomará um grande susto!



Não que o rótulo seja inadequado: há alguns toques efetivamente cômicos (quando Delia pisa num rato, ao descer da cama, logo no início) e um inequívoco pendor feminista (o desfecho, por exemplo), mas estes são abafados pelos maus tratos recorrentes a que a personagem principal é submetida. Proveniente de uma carreira enquanto atriz – de filmes medíocres mas bem-sucedidos comercialmente, em sua maioria –, Paola Cortellesi parece ter se inspirado em “Wanda” (1970, de Barbara Loden) e “Feios, Sujos e Malvados” (1976, de Ettore Scola) para conceber o roteiro (escrito em parceria com mais dois colaboradores): no segundo caso, por conta de uma acepção tipicamente italiana da miséria enquanto algo capaz de fazer rir; no primeiro, pela constatação de um pujante discurso fílmico, que independe do sobejo de passividade da protagonista.



Diferentemente da dona-de-casa estadunidense setentista, que era ostensivamente desnorteada e, por isso mesmo, mais sujeita às descobertas imediatas e releituras posteriores, a personagem central de “Ainda Temos o Amanhã” (2023) possui planos e esperanças. Só desperdiça as oportunidades para executá-los, exceto por algo que adia até o instante final, e que é corroborado por filmagens da época, em que acompanhamos a primeira eleição ocorrida na Itália, desde a derrota do fascismo, em que as mulheres tiveram participação definitiva. Mas voltemos ao começo…



A trama deste filme passa-se em meados da década de 1940, imediatamente após o término da II Guerra Mundial. A fotografia de Davide Leone serve-se de um belíssimo preto-e-branco como estratagema para a reconstituição de época: as ruas italianas estão repletas de soldados norte-americanos, que assediam as mulheres com presentes (chocolates e cigarros, sobretudo) e ajudam a população a resolver problemas relacionados à interesseira reconstrução nacional. Delia possui três filhos, sendo uma delas Marcella (Romana Maggiora Vergano), impedida de estudar pelo pai, que considera a escola muito cara. Ela está apaixonada pelo filho do dono de uma sorveteria, e é nela que Delia projeta as suas esperanças de redenção: esconde dinheiro para comprar um vestido de casamento chique, a fim de que sua filha disponha de uma felicidade que ela não encontrou em seu próprio matrimônio. Algo acontecerá antes disso, entretanto.



Além de realizar algumas tarefas de costura, Delia também aplica injeções em idosos doentes, visto que possui suficiente experiência doméstica, já que cuida de seu agressivo sogro, Ottorino (Giorgio Colangeli), que alega se sentir incomodado por causa das surras freqüentes que ela leva. Não por solidariedade em si, mas porque, segundo ele, se Delia apanhar demais, “terminará se acostumando”. Ele, então, aconselha o filho a bater menos em Delia, mas que aumente a intensidade das surras. Era assim que ele tratava a sua falecida esposa, acrescenta. O corolário machista é imediato: “ela era uma santa”!



As situações supracitadas de abuso tornam muito desconfortável a audiência a este filme. Por mais que o título prometa alguma felicidade no dia derradeiro – o que também consta na letra da canção de abertura –, Delia é violentada cada vez mais, física e verbalmente: de tanto testemunhar o pai e o avô agredindo a mãe, os dois filhos mais novos de Delia a tratam de maneira desdenhosa, abusada e pouco compreensiva. Resignada, ela sequer grita quando é alvo de ofensas ou bofetadas. A seqüência em que uma das surras é encenada como se fosse a coreografia de uma canção é particularmente incômoda: original, admite-se, mas insuportável naquilo que a associação entre imagem e som traz consigo. Um detalhe: em alguns momentos, canções de The Jon Spencer Blues Explosion e Outkast surpreendentemente irrompem na trilha musical!



Terminada a sessão – após cento e dezoito minutos de duração – é difícil crer que o clímax entusiástico, mas pouco convincente, do desfecho possa redundar na melhoria das condições maritais de Delia. Ainda que seus vizinhos pareçam solidários ao seu sofrimento, o filme aborda as agressões como socialmente corriqueiras, como um rasgo de personalidade dos homens italianos – vide a cena em que Delia percebe que Giulio (Francesco Centorame), o noivo de Marcella, é tão ciumento quanto Ivano era na juventude, e constata que o casamento de sua filha pode repetir o mesmo martírio diário que ela enfrenta. Um provável ponto de fuga está no encontro com um soldado estadunidense, William (Yonv Joseph), que decide auxiliar “Preciso Ir Embora” (que ele pensa ser o nome de Delia, já que não compreende o idioma local), depois que ela recupera uma fotografia familiar que ele havia perdido. Será que Delia obterá um final feliz e/ou a dignidade que merece? Pelo que é mostrado neste filme, só se for muito tempo depois, via descendência num contexto democrático!



Wesley Pereira de Castro.