Não obstante ser lembrado por seus temas sindicais e/ou reconstituições de episódios revolucionários internacionais, o elemento estilístico que mais se destaca no ‘corpus’ loachiano é a impressão certeira de que ele, de fato, ama os seus personagens. Desde o primevo “Kes” (1969), que retrata os abandonos vivenciados por um garoto que se afeiçoa a um falcão, até esta produção mais recente, em que um grupo de prestadores de serviços comunitários se reúne para efetuar um contrabando de uísque raro, pode-se perceber uma amabilidade desmedida por parte do diretor em relação aos protagonistas de seus dramas sociais, ainda que, ao contrário do que acontece em “A Parte dos Anjos”, raramente os desfechos de seus filmes possam ser equiparados àquilo que se convencionou chamar de “final feliz”.
Aproveitando esta amabilidade como principal elemento meritório do filme, cabe apontar a opção bem-sucedida por transferir a inimizade comumente direcionada à burocracia estatal para a violência corporal perpetrada por delinqüentes ricos e vicinais que, impetuosamente, reproduzem as condições extenuantes do determinismo vicioso que aprisiona o protagonista. Neste sentido, a determinação de Robbie (Paul Brannigan, excelente em sua estréia no cinema) em libertar-se das condições marginais que o tornam agressivo é bastante crível, o que pode ser percebido não apenas em sua reação sincera ao impressionante momento em que ele precisa confrontar a família do rapaz cujo rosto desfigurou, mas também na quantidade de vezes que os irmãos de sua namorada perseguem-no, a fim de prolongar uma rixa familiar que se estende desde que houve uma briga adolescente entre o pai dele e o pai dela, que chega a oferecer dinheiro para que ele saia da cidade.Apesar de Robbie sentir-se tentado a aceitar tal oferta, considerada humilhante por seus amigos, a veracidade do amor que ele sente por Leonie (Siobhan Reilly) e por seu filho recém-nascido leva-o a buscar um estratagema de sustentação financeira que evidencie os seus esforços pessoais, o que, num lampejo de criticidade caro ao diretor, é-lhe negado pela maioria dos empregadores por conta das cicatrizes que abundam em seu rosto.
Por mais aparentemente entusiástico que seja o parágrafo acima no que tange ao acento humanístico de “A Parte dos Anjos”, enquanto projeto cinematográfico ele é muitíssimo mais problemático, principalmente levando-se em consideração a vertente esquerdista que o diretor impinge em suas obras anteriores. Contando com ótimas interpretações (além dos atores já citados, merecem destaque John Henshaw como o benevolente Harry e Jasmin Riggins como a cleptomaníaca Mo), este filme é conduzido de forma diferenciada (para não dizer irregular) em suas duas metades: na primeira delas, os contratempos experimentados por Robbie assemelham-se deveras àqueles que são bem narrados em “Meu Nome é Joe” (1998) e equivocadamente conduzidos em “Sweet Sixteen” (2002); na segunda, o deslindamento do plano de Robbie para furtar algumas garrafas de um uísque raríssimo e vendê-lo de forma contrabandeada a um colecionador de bebidas requintadas assume uma simplicidade incomum aos filmes do cineasta, assemelhando-se inclusive a típicos filmes hollywoodianos sobre golpes perpetrados por bandidos simpáticos. O problema é que esta simplicidade converte-se também num simplismo ideológico, espelhado no personagem de Gary Maitland, o irritante Albert, que desconhece por completo quem seria Albert Einstein ou a “Mona Lisa” pintada por Leonardo da Vinci mas distingue com precisão detalhes sobre a lógica econômica da oferta e da demanda e um modo oportunista de servir-se de um vestuário tradicionalmente escocês para enganar a polícia no trafico ilícito de mercadorias. Não seria esta uma inversão do didatismo político pretendido pelo cineasta em suas obras de forte cunho sindical?
Trazendo-se à tona o tema da fraude, mencionado na seqüência de tribunal posterior aos créditos iniciais, em que um juiz condena uma ré por enganar repetidamente o sistema de concessão de benefícios sociais da cidade em que vive, a indagação anterior torna-se difícil de ser respondida imediatamente, visto que o diretor comumente recorre a expedientes enganosos para defender o direito à dignidade de seus personagens. Um cotejo direto com o decepcionante “Pão e Rosas” (2000) ou com o instigante “Mundo Livre” (2007) torna a pergunta ainda mais ambígua, pois o tom urgente e denuncista que Ken Loach imprime a seus filmes, não raro filmados com câmera na mão, desmantela a unidimensionalidade dos julgamentos morais direcionados aos personagens, conscientes de que são renitentemente levados a repetirem os mesmos erros, muitas vezes hipertrofiados pela constância do alcoolismo ou do vício em drogas que acompanha o desespero desempregatício.
Em “A Parte dos Anjos”, o modo como o culto ao uísque surge diante dos personagens – através de uma visita a uma destilaria, uma das melhores cenas do filme, na qual Robbie descobre possuir dotes olfativos úteis ao reconhecimento das características específicas de diferentes bebidas – possui um caráter muitíssimo interessante pela recusa do maniqueísmo ebriedade/sobriedade e pela exposição de um novo meandro dos sustentáculos da luta de classes em relação aos quais os roteiros filmados pelo diretor normalmente se detêm, malgrado ser demasiado condescendente à ilegalidade dos atos dos personagens (afinal recompensados pelo desfecho em que todos se dão bem – desde Robbie, que consegue um emprego valorizado numa destilaria, até seus amigos párias, que dispõem de bastante dinheiro para “encher a cara”) e à fetichização da mercadoria que é analiticamente desdenhada na consecução da artimanha concebida por Robbie para ludibriar o leilão do precioso barril de uísque (não por acaso, propenso à corrupção).
Numa análise geral, tende-se a destinar precipitadamente a culpabilidade dos defeitos abundantes deste filme ao roteiro esquemático de Paul Laverty, colaborador habitual de Ken Loach desde a segunda metade da década de 1990, mas a direção demonstra sinais de cansaço ou de inconveniência langorosa em seqüências como aquela em que Robbie e Harry adentram a maternidade depois que o primeiro é espancado por seus cunhados e o momento em que ele sai correndo de uma sala de bilhar, sob o risco de ser novamente espancado pelos mesmos, ambas as seqüências musicadas de forma melodramática ou pleonástica, respectivamente, por outro colaborador habitual do diretor, o compositor George Fenton.
Se, por um lado, é deveras aplaudível a decisão do realizador em responsabilizar-se partidariamente pela melhoria das condições de vida de seus personagens (ainda que esta seja motivada por um desrespeito legislativo bem menos justificado que em suas obras mais famosas), por outro, é lamentável que ele tenha subtraído a pujança política pela qual se tornou conhecido em prol de uma trama eventualmente cômica e tangencialmente “deseducativa” em comparação a enredos históricos (compreensivamente unilaterais) como os de “Terra e Liberdade” (1995) e “Ventos da Liberdade” (2006) e à genialidade da pequena obra-prima que é o episódio britânico (passado no Chile) do filme coletivo “11 de Setembro” (2002). Por mais sagaz que seja o seu título, “A Parte dos Anjos” se deixa contaminar por aquilo que ele expressa: o vazamento casual que acontece quando se abre o utensílio onde está acondicionado o produto de uma faina bastante diligente, no caso, a própria autoralidade da militância proletário-cinematográfica de Ken Loach!
Wesley Pereira de Castro.
quarta-feira, 24 de abril de 2013
A PARTE DOS ANJOS ('The Angels' Share') Inglaterra/Itália/França/Bélgica, 2012. Direção: Ken Loach.
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