No afã por identificar algum elemento temático recorrente na versátil e numerosa produção fílmica soderberghiana, deparamo-nos com a hipertrofia do superego como ‘leitmotiv’, o que justifica a exacerbação valorativa da ética individual que encontramos em obras tão díspares como “Kafka” (1991) e “Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento” (2000). Paralelamente a isto, o diretor especializa-se no subgênero policialesco do “filme sobre golpe”, realizando variações bastante interessantes do tema, marcadas pela simpatia incontestável de seus protagonistas, que, mesmo quando agem contra a lei, posicionam-se de forma deveras respeitosa acerca de quem a acata. É o caso do empolgante “Irresistível Paixão” (1998) e da trilogia inaugurada com o ótimo “Onze Homens e um Segredo” (2001).
Dito isto, é mister reconhecer não apenas o polivalente talento do diretor, um dos mais prolíficos da atualidade, como admitir a percepção de uma verve autoral em suas obras aparentemente tão desconexas, cuja composição do personagem que Benicio Del Toro vivifica em “Traffic” (2000), tão íntegro que beira a ingenuidade, assume-se como alter-ego idealizado do discurso que o realizador deseja transmitir, tendo aparecido de formas transmutadas desde a sua estréia em “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989) até o recente e incompreendido “Magic Mike” (2012). Em “Terapia de Risco” (2013), Steven Soderbergh efetiva peripécias cinematográficas recomendadas apenas para quem já se consolidou estilisticamente e, por conta de tudo o que foi alegado até então, ele se sai muito bem, conseguindo a proeza de fazer com que o espectador se sinta traído pelo enredo ao final da sessão e, ao mesmo tempo, incapaz de renegar a qualidade elevada do filme como um todo!
Protagonizado por uma excelente Rooney Mara, “Terapia de Risco” é um filme que, desde o início, expõe indícios da reviravolta que surge na segunda metade da trama: durante a seqüência dos créditos iniciais, um lento movimento transversal de câmera focaliza um prédio com diversas janelas pequenas, até focalizar um quarto com manchas de sangue pelo chão e optar pela narração do que ocorrera três meses antes. Acompanhamos, então, a protagonista Emily Taylor informando à sua chefa de que precisa faltar no dia seguinte por conta da soltura de seu marido (Channing Tatum, que se tornou mais um dos atores habituais de que o diretor costuma se cercar). Numa legítima demonstração da indicialidade mencionada, Emily comenta que o crime pelo qual seu marido fora preso (“insider trading”, uma espécie de fraude corporativa com efeitos diretos sobre a especulação na bolsa de valores) é desconhecido pela maioria das pessoas, exceto quando mencionado de forma noticiosamente enviesada na TV. Na cena seguinte, Emily e a sua sogra buscam o recém-libertado Martin em frente à penitenciária, sendo ostensiva a presença de um céu bastante nublado sobre eles, cujas nuvens do tipo ‘cumulus’ serão cuidadosamente mostradas em mais de um momento.
À medida que restitui o cotidiano romântico com seu marido, Emily passa a dar sinais de que é molestada por uma profunda depressão, o que redunda em tentativas de suicídio e na necessidade de uma intervenção psicanalítica, sendo responsável por seu tratamento o doutor Jonathan Banks, personagem de Jude Law, deveras benevolente acerca da sintomatologia dramática de seus pacientes (conforme percebemos na cena em que ele se comunica em francês com um imigrante exageradamente nervoso que alega ter visto o fantasma de seu pai num táxi). Daí por diante, o enredo desemboca numa tramóia repleta de mentiras e mistérios facilmente desvendados, cujo clímax é justamente a chuva torrencial anunciada nefelibaticamente desde o início. Ao final, o mesmo movimento de câmera do início é invertido, agora visando à focalização da estrada em que o psiquiatra e sua família partem em direção a uma recompensante trajetória de felicidade, enquanto Emily é confinada num manicômio.
A extensa descrição da narrativa deste filme foi requerida no parágrafo anterior por conta do sobejo de confiança que Steven Soderbergh depositou no roteiro de Scott Z. Burns, com quem já havia trabalhado em duas ocasiões anteriores. Por mais que este seja falho na exposição dos detalhes jurídicos e principalmente motivacionais dos atos criminosos perpetrados pro Emily (visto que o seu envolvimento passional com a personagem de Catherine Zeta-Jones é parco e a sua gana por dinheiro não parece convincente), a esperteza com que o roteirista se defende das acusações contra firulas e/ou inconsistências a partir da reiteração dos índices susomencionados é louvável: não é preciso rever o filme para lembrar que a seqüência em que Emily atira o seu carro contra uma parede deixava clara a sua premeditação fraudulenta, visto que não apenas vemo-la afivelar cautelosamente o cinto de segurança como acompanhamos o seu suspiro impávido antes do ato, elementos que contrariam a alegada impulsividade suicida da mesma.
Além disso, os diálogos jargonados do filme deixam evidentes as suas pretensões hermenêuticas, prontamente identificadas por aficionados dos filmes de suspense, em especial os fãs de Billy Wilder e Alfred Hitchcock, homenageados climaticamente pelo filme [que é assemelhado à feitura propositalmente indutiva de “Femme Fatale” (2002, de Brian De Palma) em sua primeira metade]: num dado momento, o psicanalista Jonathan Banks descreve a depressão como sendo “a incapacidade de construir um futuro”, com base numa definição utilizada por outro psicólogo, que será repetida e ampliada em mais de um momento da trama; mais à frente, ele ouve da vilanesca Victoria Siebert que “um cardiologista pode prever um ataque cardíaco, mas como prever mentiras e tristeza?”, encontrando a posteriori uma resposta que será cabal para o deslindamento das intenções criminais de Emily, inocentada pelo viés da alegação de insanidade, confirmando-lhe que “o melhor preditor para os comportamentos futuros é a análise dos comportamentos passados”.
Por mais que a explicação conseqüencial dos eventos que culminaram no assassinato do marido de Emily e na ascensão comercial de uma dada empresa farmacêutica seja pejorativamente súbita, as técnicas directivas de que Steven Soderbergh se encarrega para transmiti-la são excepcionais, graças sobretudo à percuciente colaboração com o músico Thomas Newman, que possibilita sutis e geniais mudanças de perspectiva narrativa, como no ‘flashback’ que justifica o fingimento prolongado de Emily e a seqüência anterior em que o seu marido a conforta quando ela desaba em melancolia (enquanto efeito colateral do remédio que ela deveria estar tomando) numa festa.
Recapitulando mentalmente o filme, a dualidade reativa entre a impressão de que se é ludibriado pelo roteiro ao mesmo tempo em que ele oferece um brilhante reaproveitamento de variegados componentes cinematográficos resvala em instantes sagazes de assimilação do ponto de vista da protagonista, como quando ela se entretém patologicamente com um lençol desfiado enquanto está no leito de hospital em que conhece o Dr. Banks ou quando se vê deformada na superfície espelhada da pilastra de um bar. Tais instantes, entretanto, podem ser atrelados à argúcia da interpretação de Rooney Mara, que se demonstra bastante convincente até mesmo quando o filme ameaça descambar para a inverossimilhança precipitada e obliterada pelas convenções do subgênero golpista ao qual Steven Soderbergh se alinha.
Porém, a colaboração pertinaz com a montadora Mary Ann Bernard (na verdade, um pseudônimo para o próprio Steven Soderbergh, que também assume a direção de fotografia, através da alcunha de Peter Andrews), que aplica eficientíssimos escurecimentos de tela após as ocasiões mais violentas do filme (o choque do carro contra a parede e o esfaqueamento do marido de Emily), transfere as reações embasbacadas dos espectadores para a categoria do reconhecimento laudatório das capacidades técnicas do cineasta, que, aqui, utiliza-se inteligentemente – enquanto lhe é conveniente, claro – dos bem-sucedidos estratagemas condutivos de tensão que adotara no extraordinário “Contágio” (2011). A insistência em mostrar o doutor Jonathan Banks como uma pessoa com problemas familiares e estresse progressivo que, a fim de se preservar mentalmente ativo, ingere diversos comprimidos com a alegação de que “é bem melhor viver através da Química” é mais um dos vários pontos positivos do filme, propositalmente dúbio em sua constituição tramática mas quase unilateral em sua crença na idoneidade de um protagonista unitário (transferido no interior da narrativa) contra a ubiqüidade malévola de um sistema, traço discursivo (deslumbrado) constante em diversas obras do realizador.
Se Steven Soderbergh continua a clamar para ser reconhecido como gênio – mas, ao mesmo tempo, submete-se a requintes formais tradicionais ou esquemáticos que podam este clamor – com este filme muitíssimo bem-acabado e indubitavelmente superior à média hodierna hollywoodiana, ele atinge o píncaro de sua maestria autoral (para além da diversidade de gêneros a que se filia). Equivoca-se ao parecer confiar mais no roteiro que em si mesmo (subdividido em diversas funções técnicas), mas, ainda assim, está de parabéns!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 26 de maio de 2013
TERAPIA DE RISCO ('Side Effects') EUA, 2013. Direção: Steven Soderbergh.
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