Na história da Matemática, o conceito de zero aparece em pelo menos três situações distintas: num sentido mais geral, diz respeito à representação numérica cardinal da ausência de elementos em um conjunto; na geometria, corresponde à intersecção dos eixos das abscissas e das ordenadas, indicando o ponto central numa reta, em que os números se tornam positivos ou negativos quando se distanciam deste ponto, que é, portanto, a origem do sistema cartesiano; enquanto sinônimo de raiz numa equação polinomial, equivale a todo número complexo cuja substituição algébrica obtenha zero como resposta, o que explica a noção de “zero da função”.
Descontadas as simplificações intentadas na abordagem destas definições, zero é um conceito matemático que se aplica muito bem numa análise extensiva dos méritos cinematográficos de “Faroeste Caboclo”: no sentido cardinal, diz respeito à nota que ele merece, caso a sua avaliação qualitativa precise ser numerada; enquanto origem de um sistema, representa a completa nulidade vinculada ao filme em seu aspecto narrativo, tamanha a quantidade de artifícios contraproducentes que negam a validade emocional de qualquer componente elementar do mesmo; e, enquanto raiz de uma determinada função, assume um infinitésimo de complexidade, visto que se coaduna à higiene demográfica genocida, já que instala defensivamente uma sanha honorífico-assassina que, do modo como foi apresentada e apregoada, não se encontra na extraordinária canção que deu origem ao entrecho.
Inicialmente roteirizado por Paulo Lins, mas finalizado por Marcos Bernstein e Victor Atherino, este filme gaba-se de converter em imagens e sons a saga narrada pela banda Legião Urbana na canção homônima que corresponde à sétima faixa do disco “Que País É Este”, lançado em 1987. Tendo pouco mais de nove minutos de duração, a canção é uma brilhante descrição das desventuras de um anti-herói nordestino e negro, que, após uma adolescência de delitos e contingências, torna-se um traficante de drogas na cidade de Brasília e, em razão dos desencontros típicos da vida criminal, vê-se traído, aprisionado e, por fim, morto num duelo trágico, onde o seu opositor e a mulher que ama também são chacinados.
No filme, tudo que se mostrava como reivindicatório ou marginal (no sentido político do termo) na canção é desfigurado numa historieta pífia, repleta de comiseração espúria e circundada desde o início por uma lógica interna deletéria que consolida o acerto armado de contas como legítimo. Longe de ser exigida rigorosa fidelidade à canção que inspirou o enredo (liberdades poético-narrativas são esperadas até mesmo em biografias de personalidades reais, que dirá numa translação musical), o que mais incomoda negativamente neste roteiro é a radical inversão de valores morais, relacionais e motivacionais do personagem muitíssimo bem-construído pelo compositor Renato Russo. Além de fatos essenciais da arregimentação de caráter do protagonista serem suprimidos ou modificados, a inverosimilhança actancial é a tônica onipresente no filme, culpa menos do elenco que tenta ser eficiente apesar de tudo que da péssima direção, da montagem execrável e dos demais componentes técnicos que se perdem na obsessão por parecerem demasiadamente estilosos.
Se Fabrício Boliveira e Ísis Valverde não são oficialmente responsáveis pela vacuidade de suas interpretações – visto que eles até que tentam se entregar aos seus personagens, mas os mesmos são absolutamente inconsistentes – Marcos Paulo, Felipe Abib, Antônio Calloni e César Troncoso estão absolutamente caricaturais como o pai de Maria Lúcia, o bandido Jeremias, o policial corrupto Marco Aurélio e o traficante peruano Pablo, respectivamente. Por mais desprovidos de algo parecido com alma fílmica que os personagens sejam, a situação fica ainda mais agravante diante da edição frenética (no pior sentido do termo) e desnorteadora de Márcio Hashimoto, que, no afã por imitar os assistentes dos imitadores de Quentin Tarantino, transforma a conjunção de imagens e sons desta obra numa verdadeira demonstração do que é disritmia, hipertrofiando a mínima duração dos planos e desperdiçando-se em seqüências desprovidas de interesse emocional como as dilaceradas cenas de sexo entre João e Maria Lúcia ou o momento em que esta última ensina o primeiro a dirigir um automóvel.
No que tange ao conluio com a trilha sonora, o resultado só não é exageradamente catastrófico nos instantes em que canções clássicas da referida banda Legião Urbana e da Plebe Rude, também brasiliense, são executadas em festas juvenis, a fim de aproveitar a relevância histórica da efervescência cultural roqueira que estava acontecendo na cidade na transição da década de 1970 para 1980. Porém, não apenas as composições originais de Philippe Seabra (membro da citada Plebe Rude) são ruins em sua emulação insistente dos acordes da canção original, como a introdução de “These Boots Ser Made for Walkin’”, cantada por Nancy Sinatra, na situação em que João de Santo Cristo é mostrado iniciando a sua plantação de maconha é absolutamente inexplicável em termos estruturais, o mesmo quase podendo ser dito sobre “Dancing With Myself”, do Billy Idol, ao menos justificada pela execução diegetizada.
A pretendida diferenciação dos comportamentos de Maria Lúcia e seu pai através das músicas que ambos escutavam (“Ever Fallen in Love?”, do The Buzzcocks, no primeiro caso, e um jazz refinado no segundo) denota um cuidado quase pré-escolar por parte dos responsáveis pelo filme em relação à já mencionada precária construção dos personagens, o que se evidencia também na relação pretendida entre a letra da canção anglofílica que Maria Lúcia ouvia quando o criminoso protagonista invade o seu quarto e a faz se apaixonar por ele ou no modo idiotizado como Jeremias tenta resgatar os sacos de cocaína que João de Santo Cristo estoura na seqüência final.
Não obstante seu estímulo subdiscursivo à cólera vingativa e as soluções balísticas autojusticeiras, “Faroeste Caboclo” não é sequer exitoso em instigar involuntariamente a revolta em espectadores mais conscientizados ou apaixonados pela integridade reclamante da canção original, de modo que, ao final da sessão, tudo se esvai como os péssimos ‘flashbacks’ que pontuam alguns momentos da narrativa, vergonhosamente infecundos em sua tencionada associação mnemopulsional. A direção de fotografia de Gustavo Hadba parece atuar à revelia do restante do filme, exibindo planos à contraluz ou rigorosamente divididos e focalizados (vide o momento em que João de Santo Cristo e Maria Lúcia são refletidos no capô de um carro ou quando o casal faz sexo ao mesmo tempo em que o pai da moça lê um livro, sendo ambos mostrados em janelas contíguas), mas disfuncionais em sua concatenação formal, tamanha a nocividade da montagem hiperativa ainda não suficientemente denegrida nesse texto.
Definitivamente, “Faroeste Caboclo”, o filme, é uma aplicação abominável da noção dos zeros matemáticos no cinema, aqui correspondentes à nugacidade, à letalidade propagandística e à traição ostensiva de uma verdadeira obra-prima do repertório musical brasileiro. Dizer qualquer coisa a mais seria legar ao filme uma (des)importância que sequer ele merece, erca!
Wesley Pereira de Castro.
segunda-feira, 10 de junho de 2013
FAROESTE CABOCLO (Brasil, 2013). Direção: René Sampaio.
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