O interrogatório em ‘close-up’ a que o personagem Juliano (Juliano Cazarré) é submetido no plano que antecede o crédito de abertura deste filme promete interessantíssimas reviravoltas no roteiro escrito pelo próprio diretor, em colaboração com Vera Egito: quando perguntado acerca de sua filiação, Juliano declara que é filho de pai desconhecido; insiste para o interrogador que a sua profissão é a de garimpeiro; e, quando lhe questionam se ele já assassinou alguém ou se está envolvido com tráfico de drogas, ele silencia, somente voltando a se expressar verbalmente quando defende energicamente a honra de um amigo hospitalizado, acusado de também estar envolvido em esquemas criminosos. Surge, então, o título do filme, entremeado por recortes telejornalísticos sobre a febre do ouro na região de Serra Pelada, situada no município paraense atualmente batizado como Curionópolis. Daí por diante, o vigoroso potencial sociológico, dramático e eminentemente cinematográfico que poderia emergir a partir desta premissa inicial é, infelizmente, acometido por uma vacuidade atroz...
Narrado pelo personagem Joaquim – chamado apenas de Professor ao longo do filme – da mesma forma jargonada e onisciente que caracteriza “Cidade de Deus” (2002, de Fernando Meirelles & Kátia Lund) e “Tropa de Elite” (2007, de José Padilha), “Serra Pelada” (2013) tem na composição deste protagonista um de seus defeitos mais evidentes, no sentido de que, para além dos esforços actanciais de Júlio Andrade, sua vivência é completamente inorgânica num cotejo com os demais elementos contextuais do filme: não apenas sua amizade de infância com o turrão Juliano é inverossímil como as suas reações desenxabidas tornam praticamente nula a sua presença em cena, sendo desprovidas de veemência emotiva as agruras em que ele se envolve, como ser traído por causa de dinheiro pelo melhor amigo e ter corpo e alma vilipendiados por uma jornada de trabalho inglória.
O que justifica a incoerente perspectiva deste personagem, já que tudo o que acontece recebe o seu crivo analítico, é precisamente a competência dos atores que o circundam, destacando-se a breve e desperdiçada aparição de Matheus Nachtergaele como o ambicioso Carvalho, o sutil cerceamento do vilanaz Lindo Rico (numa surpreendente e espetacular atuação de Wagner Moura), e a consistência compositiva do personagem Juliano, cujo intérprete homônimo dota-o da rudeza imediatista associada ao apelido Grandão desde a supracitada seqüência do interrogatório, que, quando reinserida linearmente na narrativa, não possui o mesmo ímpeto. O motivo: a cadência de eventos enredisticamente atrelados aos efeitos psicologicamente destrutivos da “febre do ouro” é frouxa, o que desencadeia um desfecho absolutamente anticlimático, em que, depois de enviar ao atabalhoado Joaquim um cheque e uma fotografia do momento feliz em que “bamburraram” (ou seja, encontraram uma larga quantidade de ouro, segundo a gíria local), Juliano invade a sede das atividades de Lindo Rico com a intenção de assassiná-lo vingativamente. No auge do que seria mais uma pretensa seqüência de ação, o filme acaba!
A conformação gangsterista das atividades criminais que balizam o roteiro de “Serra Pelada” distancia-no até mesmo do impactante viés telejornalístico apresentado no início e faz com que ele se assemelhe – guardadas as devidas proporções imitativas – a filmes policiais hollywoodianos, como as sagas mafiosas conduzidas por Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese, sendo evidente o quanto Heitor Dhalia tentou estresir alguns dos cacoetes desses diretores, ignorando os próprios traços estilísticos que concatenam obras tão variegadas quanto o genial curta-metragem “Conceição” (2000), o equivocado “Nina” (2004), o pitoresco “O Cheiro do Ralo” (2006) e o ótimo “À Deriva” (2009).
Se, em suas realizações anteriores, Heitor Dhalia destacava-se por parecer (e, eventualmente, conseguir ser) um diretor modernoso, em “Serra Pelada”, as exigências produtivas tornaram-se imperativas e a obra oferece-se de maneira incompleta, amorfa e esvaziada em mais de um aspecto, principalmente no que diz respeito à intragável combinação entre a montagem de Márcio Hashimoto Soares [também responsável pela disritmia do execrável “Faroeste Caboclo” (2013, de René Sampaio)] e a direção fotográfica de Lito Mendes da Rocha, que deixam o filme negativamente evanescente: raramente consegue se perceber algo em foco durante a projeção, tamanha a constância de cortes bruscos e da câmera em perene movimento epiléptico, sendo difícil averiguar os demais elementos cênicos sob tal tremelique, o que afeta sobremaneira a interpretação de Sophie Charlotte como a prostituta Tereza, deveras caricatural em suas pretendidas nuanças emocionais. A cena em que ela tenta fugir dos perseguidores enviados por Juliano, ao som de “Eu Te Amo, Meu Amor”, de Frankito Lopes (um dos artistas que compõem a ótima seleção de canções que assessora a partitura eficiente de Antonio Pinto), é horrível em sua vacuidade efetiva: ouvimos a canção, percebemos que há pessoas correndo na tela e entendemos o contexto sarcástico da circunstância – em comunhão direta com o cinismo enumerativo da narração de Joaquim – mas, visualmente, a seqüência é pífia, um subaproveitamento dos diversos talentos envolvidos.
Para que não se diga que o filme é de todo ruim, algumas imagens fugidias de Juliano sobre um terreno arenoso plano e avermelhado e as reconstituições de fotografias antigas de Serra Pelada em pleno apogeu aurífero, misturadas a trechos de registros documentais da época, demonstram que, se não fosse por causa da montagem aceleradíssima e inconveniente, o trabalho do fotógrafo Lito Mendes da Rocha não seria tão destituído de validade estilística. O mesmo pode ser dito sobre a inculcação tramática das atividades de garimpeiros homossexuais, reduzidos a uma inimizade quase espectral com Juliano, principalmente na figura do agressivo Marcelo (Liu Arisson). As observações pontuais sobre a aceitação tangencial dos comportamentos pederásticos pelos trabalhadores desprovidos de álcool e mulheres, pelo menos até que as notícias de contaminação pela AIDS se espalhem enquanto mais um indício de periculosidade paranóica, é um detalhe bastante relevante e que poderia render uma portentosa subtrama, caso o roteiro fosse dotado de sustentáculos sociológicos consistentes, mas, infelizmente, as intervenções dos personagens homossexuais no filme reduzem-se a pendengas tão gratuitamente provocadas quanto rapidamente resolvidas (ou interrompidas).
O que sobra de realmente válido em “Serra Pelada”, em sua demonstração superficial de como milhares de homens, seduzidos pelos delírios de riqueza, “cavaram uma pirâmide ao contrário, mudando literalmente um morro de lugar”, é o vigor do elenco, formado por atores mui competentes que foram sufocados por condições técnicas que extraíram a humanidade de suas vivificações, fazendo com que o filme seja lancinantemente contaminado pela estrutura geograficamente corrosiva de sua trama. Ao final, as diluições de caráter que são mencionadas enfaticamente na narração de Joaquim impregnam o próprio filme, que é inconcluso, desalinhado, dramaturgicamente inane e contributivamente parco na filmografia dotada de personalidade de Heitor Dhalia. Por mais que seja intentada uma correlação situacional entre o que acontecia no garimpo e eventos históricos mais gerais da História do Brasil, como as lutas estudantis pelas eleições diretas, o roteiro ignora situações-chave, como, por exemplo, as intromissões diretas do governo militar sobre a exploração dos recursos minerais da região Norte da nação.
As imagens televisivas que aparecem vez por outra são desprovidas de criticidade, tanto quanto o são as tentativas insistentes dos filmes produzidos sobre a égide da Globo Filmes em demonstrar que a emissora televisiva correspondente observou de forma emergente as intensas transformações sociais brasileiras da década de 1980. Por estes e outros motivos, “Serra Pelada” é uma verdadeira ode ao desperdício!
Wesley Pereira de Castro.
domingo, 20 de outubro de 2013
SERRA PELADA (Brasil, 2013). Direção: Heitor Dhalia.
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