Ao final da árdua jornada – em todos os sentidos – de quase quatro horas e meia de duração concernente ao filme “Noite Obscura – Folhas Selvagens” (2022, de Sylvain George), continuamos imaginariamente o desfecho das trajetórias que acompanhamos durante a projeção do documentário. Nem sempre sabemos o que está acontecendo, mas sentimos: a câmera-cúmplice do cineasta põe-se ao lado de adolescentes marroquinos, que vivem ilegalmente nas ruas de Melilla, enquanto sonham em viajar para a França ou para a Espanha…
Antes de a fotografia assumir o seu tom estilizado de preto-e-branco, uma antecipação rubra é instalada, a fim de metonimizar a recorrência do fogo ao longo dos eventos apresentados: os rapazes cozinham em fogueiras improvisadas, acendem cigarros, se aquecem nas noites frias. Mas o fogo também diz respeito ao que eles almejam ser: cidadãos europeus. Estes adolescentes recebem a alcunha de ‘harragas’, que significa algo como “aqueles que queimam”, em referência aos documentos de identificação que eles atiram às chamas. À frente deles, o infindável mar…
Não obstante o realismo cru das imagens, que rendem longuíssimas seqüências (paradoxalmente demarcadas por ‘jumpcuts’), o ritmo deste documentário é sobremaneira experimental. A captação das ondas e do reflexo da lua nas águas do Mar Mediterrâneo rende imagens tão belas quanto abstratas. É como se compartilhássemos das lombras daqueles garotos, continuamente entorpecidos por alucinógenos improvisados, uma versão local do “loló”. Durante os devaneios provocados pela ingestão gasosa dessas substâncias, eles choram, cantarolam, lembram dos familiares que deixaram no Marrocos… E prometem que conseguirão chegar a algum país desenvolvido, a fim de se estabelecerem profissionalmente e conseguirem resgatar as pessoas que amam.
Em diversos momentos, acompanhamos estes garotos escalando muros, pulando cercas, ferindo-se nas pontas afiadas de arame farpado que circunda quase toda a região. Eles referem-se às suas atitudes conjuntas como “tomar o risco”, expressão que tem como objetivo o encaixe de ganchos nos imensos navios que aparecem eventualmente na costa. Enquanto aguardam as oportunidades ideais, que podem demorar indefinidamente, eles dormem nas cavernas da cidade litorânea, famosa por suas fortalezas com arquitetura modernista. E esperam…
No início do filme, verificamos a entrega de doações fornecidas por entidades assistenciais espanholas. Os adolescentes agrupam-se, de maneira improvisada, recebendo pão, leite e outros víveres. É um conforto benfazejo em meio à ameça dominante da fome, do abandono, do frio e dos maus tratos. As feridas e infecções são recorrentes, bem como as lágrimas, ao lembrar os entes queridos ou as histórias trágicas de infância. A longa duração do filme torna-se irrelevante perante o que eles testemunham. E esta é a intenção do diretor com essa extensão desmedida: convidar-nos a uma experiência de imersão no sofrimento daqueles imigrantes, que estão à margem das delongas infindáveis nas filas alfandegárias. Noutra seqüência mui demorada, acompanhamos os esforços de alguns homens, que prendem alguns produtos em seu corpo, com fita adesiva, no afã por deixarem-nos ocultos. Mais uma vez, aceita-se o risco (nesse caso, de aprisionamento), frente ao desespero da fuga.
Não há uma intervenção narrativa em ‘off’ no filme: no máximo, lemos alguns dizeres, correspondentes ao título poético, na abertura. Depois, somos atirados às ruas, juntos àqueles garotos, muçulmanos em sua absoluta maioria. Num instante de alívio, após nadarem e lavarem as suas vestimentas, eles recitam algumas orações, demonstrando que não rejeitam culturalmente as suas origens, apenas economicamente. Soldados desfilam, numa comemoração local que mantém uma tradição de caráter franquista. Estamos num território marroquino, colonialmente extirpado do próprio país. A reação imediata é a de chorarmos coletivamente, em apoio emocional ao desamparo daqueles jovens.
Em meio à fealdade decorrente das condições de pauperismo enfrentadas por aqueles garotos, a beleza exuberante da cidade, arquitetonicamente tombada. No esplêndido desenho de som deste longa-metragem, os ‘raps’ que eles recitam durante os seus delírios misturam-se às gargalhadas ébrias, às bravatas inconseqüentes, ao marulho contínuo e ao grasnar de algumas aves. O registro naturalista amalgama-se às intenções vanguardistas do realizador, configurando um produto fílmico de extrema singularidade. Quem enfrentar este percurso carregado de dor deparar-se-á também com uma obra de arte mui elogiável. Por vezes, questionamos algumas opções éticas do diretor (e/ou do câmera), que quedam inanes diante das agruras mostradas (vide o instante em que um garoto quase quebra as pernas, ao cair de uma parede muito alta). Mas cada segundo exibido é necessário enquanto testemunho de autenticidade documental. Aderimos ao drama destes imigrantes por dentro, no cerne mesmo de suas usurpações cotidianas!
Wesley Pereira de Castro.