quarta-feira, 27 de setembro de 2023

NOSSO SONHO (2023, de Eduardo Albergaria)


Quando se dispõe a mostrar os intérpretes da dupla Claudinho & Buchecha nos palcos e/ou gravações, este filme mostra-se contagiante e bem-sucedido. Entretanto, o roteiro escrito pelo diretor e mais três colaboradores deixa-se contaminar pelas recorrências ideológicas da produtora Globo Filmes, que, em seu esforço por libertar a emissora televisiva parônima de seus vínculos anteriores com a ditadura militar, comete pecadilhos reconstitutivos que, em sua aparente banalidade, dizem muito enquanto intenção culposa de reescritura da História. Vide o cartaz que menciona a entrada de um Real (R$ 1,00) num baile 'funk', em 1993, quando os protagonistas se reencontram, ou a oportuna exibição de "Central do Brasil" (1998, de Walter Salles), no canal fechado Telecine, quando os personagens compram uma casa. Não são erros circunstanciais na direção de arte, mas situações que, em seu bojo, trazem discursos reforçadores da importância dos Aparelhos Ideológicos de Estado - entre eles, a família. 


Não é por acaso, portanto, que o percurso de sucesso dos dois cantores seja progressivamente sufocado, em seu elã tramático, pela dificuldade de Claucirlei/Buchecha (Juan Paiva) em perdoar o pai alcoólatra, seu Souza (Nando Cunha), de modo que a parceria quase fraternal com Claudinho (Lucas Penteado) é essencial nesta reiteração discursiva, visto que é ele quem sempre traz o parente rejeitado para os eventos comemorativos. O que é ainda mais suspeitoso neste processo é que, sobre a família de Claudinho, nada sabemos: no filme, ele vive em função do acolhimento parental de seu parceiro. E, obviamente, sendo esta uma biografia cinematográfica validada por um dos personagens retratados - que ainda está vivo e é apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro -, o delineamento moral dos protagonistas é ilibado: eles se casam com mulheres que conhecem desde a adolescência, são monogâmicos e mui tolerantes, e demonstram-se alheios à violência do tráfico, característica de muitas comunidades cariocas, e até mesmo ao consumo recreativo de substâncias viciantes. Não chega a ser de todo inverossímil, visto que o comportamento público/midiático dos artistas diferenciava-se de outros representantes do 'funk' justamente por conta de sua ingenuidade exacerbada, mas o roteiro do filme é ideologicamente exaustivo, em sua unilateralidade, do meio para o final. 


Como "Nosso Sonho" é um exemplar sobremaneira simpático do cinema brasileiro contemporâneo, intencionalmente voltado para as camadas mais populares da audiência, é mister ressaltar algumas de suas qualidades, que são notáveis: os dois protagonistas juvenis, por exemplo, estão muito bem, ao representarem a espontaneidade histriônica e a timidez obediente de Claudinho e de Buchecha, respectivamente. A utilização das canções dos referidos artistas dota o filme de uma benfazeja nostalgia, ainda que acompanhemos pouco sobre os processos compositivos das mesmas. Pena que, apesar de Buchecha ser o narrador, é a lógica comportamental do senhor Souza que impregna a narrativa, não sendo casual a quantidade de vezes em que se repete o mantra "quem é talentoso não tem patrão" ou, menos ainda, que os patrões de Buchecha sejam mostrados tão benevolentes quanto aos seus anseios musicais. 



As homenagens derradeiras são emocionantes, inclusive no que diz respeito ao caráter profético de Claudinho (falecido em 13 de julho de 2002, num acidente automobilístico), identificado em várias de suas composições e declarações pessoais - vide o pedido que faz para o amigo, a ser atendido no aniversário de quinze anos de sua filha Andressa. Nos créditos finais, o subtítulo "a História de Claudinho e Buchecha" aparece modificado na tela, pois Buchecha é o verdadeiro biografado, sobrevalorizado em sua definitiva reconciliação paterna, de modo que o longa-metragem é também dedicado a "Buchechão", apelido de seu progenitor. Tudo muito direcionado em seus prognósticos institucionais, como a produção não faz a mínima questão de disfarçar! 



Wesley Pereira de Castro. 

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