quarta-feira, 15 de maio de 2024

A NATUREZA DO AMOR (2023, de Monia Chokri)


 

Quando adentramos a sessão deste filme, parecemos estar diante de uma versão atualizada de “O Declínio do Império Americano” (1986, de Denys Arcand), uma das produções canadenses mais valorizadas internacionalmente. A estrutura fílmica é bastante similar: um retrato da ‘intelligentsia’ francófona, a partir de seus preconceitos inassumidos e contrastes idealizados. Enquanto, na TV, crianças assistem a um desenho animado antigo, seus pais e os amigos destes discutem a relevância de alguns “valores universais”, com base em argumentos antropológicos e na consideração de que “falar sobre o bem e o mal é algo bastante complicado”. Por vezes, é difícil ouvir a conversa, por causa dos gritos das crianças. Até que uma nova convidada adentra a sala…



Apresentados os créditos de abertura, sabemos que Sophia (Magalie Lépine-Blondeau) e Xavier (Francis-William Rhéaume) formam um casal. Ambos professores universitários, eles parecem combinar até mesmo na simpatia transversal por um ditador do Turcomenistão. Lêem os mesmos livros e possuem diversos amigos em comum. Mas dormem em camas separadas e há uma evidente insegurança por parte de Sophia, que, de repente, começa a ficar enciumada em relação à convidada supracitada.



Numa viagem a um chalé no interior, Sophia é auxiliada pelo empreiteiro Sylvain (Pierre-Yves Cardinal), muito bonito e prestativo, com quem ela compartilha uma lembrança de adolescência, envolvendo a canção “Still Loving You”, da banda alemã Scorpions. Algum tempo depois, ambos dançarão ao som desta canção, com Sophia pendurada nos braços de Sylvain. Ela apaixonar-se-á compulsivamente por ele, mas insiste que, em conversas com parentes e amigos, seu amado pertence a um contexto social radicalmente distinto do dela. Segundo Sophia, ele é um caipira que, mesmo apreciando poesia, flerta com a extrema-direita. Será possível erigir um relacionamento amoroso a partir disso?



Conforme se percebe nesta sinopse estendida, “A Natureza do Amor” dá continuidade aos estigmas socioculturais que seus personagens fingem desgostar. Não obstante a condução da narrativa possuir um direcionamento cômico, ao escarnecer dos pantins de professores universitários (reclamar de um gatilho de ansiedade ao perceber que a lavadora de louças está entulhada, por exemplo), a diretora não disfarça a simpatia exacerbada pela protagonista. No desfecho, sentimo-nos tão desnorteados quanto ela: por mais que estudemos e conheçamos os textos clássicos, precisamos recorrer aos instintos mais elementares para tomar algumas decisões cotidianas. É mais fácil escolher com quem casar quando se leciona sobre as obras platônicas?




Na Universidade, em Montreal, Sophia clarifica os conceitos filosóficos de autores como Arthur Schopenhauer e Bell Hooks acerca do amor. E, neste sentido, a diretora é hábil ao fazer com que intuamos os estados de espírito de Sophia, a partir da maneira como ela conduz as suas aulas. A montagem, na maior parte, é bastante acelerada, marcada por planos e contraplanos rápidos, que metonimizam as reações rápidas dos personagens ao que acontece. E o fotógrafo André Turpin obtém enquadramentos elaborados, em que a disposição dos ambientes reflete o quão distante ou próxima está Sophia, em âmbito emocional. Não é à toa que Xavier lhe presenteia com um grosso livro sobre a “Epistemologia e Estética do Espaço em Gaston Bachelard”!



Se, por um lado, o filme é assertivo e divertido em suas confusões românticas e nas desconfianças de Sophia quanto à “simplicidade” de Sylvain, por outro, ele soa caricatural ao registrar uma crise súbita de ciúmes, por parte de Sylvain, quando este encontra um casaco de Xavier no sofá de Sophia. Como a protagonista é eventualmente histriônica e a diretora adere ostensivamente ao estilo verborrágico, os deslizes tramáticos são justificados pelos comportamentos precipitados dos personagens. Mas é um filme que, mesmo assim, pode incomodar algumas platéias, em razão de suas tendências julgamentais. Vide o que ocorre em discussões familiares – num debate sobre arte contemporânea – ou quando aparece o irmão de Sophia, Olivier (Guillaume Laurin), cujas namoradas são sempre estereotipadas, em suas tendências discursivas…



Terminada a sessão, tanto quanto acontece nos melhores filmes de Denys Arcand, reconhecemos a nós mesmos – e a nossos conhecidos – na fauna intelectualóide que a diretora concebe roteiristicamente. Ela, inclusive, interpreta uma das personagens, a anfitriã Françoise, comumente às voltas com a teimosia de seus filhos e com a apatia de seu marido. Para quem convive em meios acadêmicos (e/ou academicistas), algumas piadas e dilemas funcionam melhor. Mas o grande destaque do filme é mesmo a beleza acachapante do homem por quem Sophia se apaixona: quando ela exclama que ele é lindo, o que acontece em mais de um momento, fazemos o mesmo, mentalmente. Mas será que isso é relacionalmente compensador? Eis o charme do enredo!




Wesley Pereira de Castro.

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