segunda-feira, 8 de setembro de 2025

O ÚLTIMO AZUL (2025, de Gabriel Mascaro)


Dando prosseguimento à conjuntura distópica apresentada em "Divino Amor" (2019), o pernambucano Gabriel Mascaro apresenta-nos aos terrores de um Brasil opressor, que hipertrofia a repressão aos indivíduos "indesejados" a partir do aspecto de falso benefício: no roteiro deste filme - co-escrito pelo diretor, junto a Murilo Hauser e Tibério Azul -, os idosos são enviados, por determinação governamental, a uma colônia onde perdem o contato com seus familiares, mas, ainda assim, esta colônia é ansiada pelos menos favorecidos, em razão de uma propaganda onipresente, que divulga que "o futuro é para todos". Na prática, pessoas com mais de setenta e cinco anos de idade são transportadas num veículo conhecido como "cata-velhos" (similar às "carrocinhas" que aprisionavam cachorros de rua), quando são encontradas caminhando sem a autorização expressa de um familiar responsável, que recebe uma quantia monetária por isso... 


A protagonista Tereza (Denise Weinberg, magistral) trabalha num matadouro de jacarés e, aos setenta e sete anos, não sabia que a idade de envio dos idosos às colônias fôra reduzida: até então, o padrão era estabelecido aos oitenta anos. Que ela ainda estivesse ativa no mercado empregatício, a despeito de sua idade avançada, é algo que conjuga-se à brilhante direção de arte, demarcada por inúmeras pichações nas paredes e que denuncia um ambiente nacional em que as pessoas devem trabalhar em turnos contíguos, estando perenemente endividadas. A filha de Tereza, Joana (Clarissa Pinheiro), reclama o tempo inteiro com sua mãe, pois acompanhá-la em quaisquer atividades implica em faltar ao emprego. Restará à personagem principal empreender uma fuga, a fim de realizar o sonho de andar de avião, antes de ser confinada. 


Num entrecho intencionalmente simples - um percurso aventureiro, em que a personagem aprende algo valioso em cada um dos contatos interpessoais que lhe permitem continuar a evasão -, Tereza percebe que, diante de um governo corrupto, precisará, ela própria, ressignificar o que até então definia como "coisas erradas": com o aflito Cadu (Rodrigo Santoro), ela descobre as possibilidades alucinógenas e proféticas da baba azul de um caracol raro; com o embriagado Ludemir (Adanilo), ela é informada sobre as vantagens supersticiosas da "sorte de principiante"; com a cubana Roberta (Miriam Socarrás, soberba), ela reinventa a própria trajetória, permitindo-se inclusive aos flertes homoeróticos - deveras explícitos, ainda que não devidamente consumados. 



A esplêndida fotografia de Guillermo Garza e a ótima trilha musical de Memo Guerra (que mistura sintetizadores à colaboração de canções bregas, como "Aonde Você For, Eu Vou Também", de Reginaldo Rossi, executada num momento insigne) convertem os cenários amazonenses numa metonímia tão fascinante quanto aterradora de um país gerido pelas diretrizes excludentes da extrema-direita. A pletora de objetos eletrônicos (as bíblias digitais, vendidas por Roberta, à frente) e de luzes neon (na caixa de som ouvida por Cadu e no letreiro de um salão de massagens, entre outros detalhes) assegura o teor futurístico da obra, que atinge o apogeu num parque de diversões abandonado, no meio da floresta, ressurgindo no palco das batalhas písceas, que fundamentam as apostas de um local conhecido como Peixe Dourado. Há algo de alvoroçado na decisão de Tereza em participar desta rinha, mas isso é justificado internamente, visto que a sua adesão ao jogo de azar acontece quando ela está sob efeito da baba azul... 


Enquanto aspectos subjacentes ao roteiro, além da perene necessidade de trabalhar dos cidadãos - sendo Cadu, Ludemir e Roberta considerados párias -, destacamos o modo como o delírio induzido pelo caracol acentua a culpabilidade e os arrependimentos dos personagens, em que um se ressente de ter deixado a esposa muito tempo sozinha, por causa de suas atividades de navegação, enquanto outra confessa que agiu de má fé em relação a uma missionária, visto que sequer acredita em Deus. Quando está sob efeito da substância, Tereza apenas se frustra por ter sido abandonada pela própria filha, o que ratifica o seu caráter até então probo, mas não valorizado por uma conformação político-cívica balizada pelo oportunismo e pela ilicitude. Neste sentido, ainda que não se resolva muito bem, em termos narrativos, o que "O Último Azul" esclarece no processo é assaz sintomático, no que tange a atributos preocupantes de nossa sociedade, já suficiente perceptíveis na contemporaneidade. No desfecho, a voz de Maria Bethânia irrompe, interpretando "Rosa dos Ventos", composta por Chico Buarque no período mais árduo da ditadura militar: "numa enchente amazônica/ Numa explosão atlântica/ E a multidão vendo em pânico/ E a multidão vendo atônita/ Ainda que tarde o seu despertar". Ao recorrer a tropos de ficção científica, Gabriel Mascaro desvenda muitíssimo bem algo que nos importuna no presente! 


Wesley Pereira de Castro. 

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