Em defesa da subsunção de Guillermo del Toro aos arrasa-quarteirões hollywoodianos, diversos críticos definiram-no como um cineasta que se diferencia pelo humanismo. Enquanto diretores como Roland Emmerich e Michael Bay se sobressaem negativamente pelo modo como utilizam os filmes de ação (com nucléolos temáticos de ficção científica) para legitimarem discursos estatais de intervenção bélica, Guillermo del Toro e Peter Jackson seriam aqueles que se preocupam muito mais com a valorização dos personagens em suas virtudes e limitações humanas, deveras relevantes para o prolongamento de seus feitos heróicos.
De fato, “Blade II – O Caçador de Vampiros” (2002) e “Hellboy” (2004) são filmes que surpreendem pela constituição personalística, em que até mesmo os coadjuvantes desempenham funções primordiais na caracterização ativa dos anti-heróis protagonistas (respectivamente, um vampiro assassino de vampiros e um ente com aspecto demoníaco) como seres não necessariamente humanos, mas com uma índole predominante e inusitadamente bonachona. O prévio delineamento gráfico destes personagens talvez facilite os méritos desempenhados pelo diretor Guillermo del Toro, mas os acachapantes roteiros de “A Espinha do Diabo” (2001) e “O Labirinto do Fauno” (2006) denotam o quanto este cineasta é coerente em suas produções. Todos estes aspectos, portanto, são mais do que suficientes para empolgar o espectador acerca da exibição de “Círculo de Fogo” (2013), mas, infelizmente, esta homenagem pessoal aos ‘tokusatsu’ incorre em desagradáveis clichês infantilizados, sendo o roteiro escrito pelo próprio diretor e por Travis Beacham vergonhoso num cotejo com qualquer filme anteriormente dirigido pelo primeiro, incluindo o menos valorizado “Mutação” (1997).
Não obstante o interessantíssimo preâmbulo do filme, todas as seqüências posteriores ao crédito titular tornam difícil a percepção do referido humanismo do diretor, visto que a sua colaboração com o fotógrafo constante Guillermo Navarro é obnubilada pelo excesso de efeitos especiais, tão grandiloqüentes, maquínicos e altissonantes quanto automáticos em sua reiteração belicosa. No prólogo, conhecemos os dois conceitos-chave do filme: ‘kaiju’, que quer dizer ‘monstro’ em japonês; e ‘jaeger’, que quer dizer ‘caçador’ em alemão. Um narrador explica como os ‘kaijus’ surgiram a partir de uma fenda sob o Oceano Pacífico, não entra em detalhes acerca de suas motivações invasivas (definindo-os apenas como “alienígenas que nos atacaram por baixo”), enumera os efeitos devastadores dos acometimentos catastróficos destes animais e, ao final, entra em conflito sutil com o triunfalismo estadunidense contido em algumas imagens quando o tom da narração assume um aspecto melancólico e autocrítico ao afirmar que “nós nos acostumamos a vencer”, enquanto um apresentador de programa de auditório japonês brinca com alguém fantasiado de dinossauro. Dentre as minudências geniais deste prólogo, enfatiza-se o momento em que sabemos que as fezes dos ‘kaijus’ são contaminantes e que o sangue dos mesmos causaram um efeito ecologicamente devastador batizado como “kaiju blue”. Em seguida, conhecemos o vaidoso protagonista Raleigh (Charlie Hunnam), ao lado de seu irmão Yancy (Diego Klattenhoff), que falecerá de forma traumática e, assim, fundamentará a contenda familiar que Raleigh precisará enfrentar para vencer os inimigos monstruosos e elevar a um patamar coletivo – portanto, superior – a paixão que nutrirá pela também traumatizada Mako Mori (Rinko Kikuchi). Desse modo, os sentimentos humanos serão erigidos como aspectos centrais da trama. Mas... Seria isso realizado com a habilidade tipicamente associada ao diretor? A resposta: definitivamente não!
Por mais que seja assaz inteligente a elaboração enredística dos enormes robôs metálicos que só funcionam a partir da combinação neural de no mínimo duas pessoas, com base em uma fusão mnemônica bastante delicada, tal ponto de partida conceptivo é insistentemente reduzido a um elemento piegas de afetividade conjunta, o que só piora quando a trilha sonora insuportavelmente xaroposa de Ramin Djawadi se eleva em momentos pretensamente dramáticos, como, por exemplo, o constrangedor ‘flashback’ que explica a origem traumático-fetichista do sapatinho vermelho que Mako insiste em carregar, mesmo quando adulta. Os vergonhosos diálogos entre Raleigh, Mako e o comandante Stacker Pentecost (Idris Elba) deixam claro o quanto este roteiro é inferior em relação aos filmes antecedentes do diretor, visto que as frases proferidas por estes personagens são absurdamente redundantes em relação à metáfora óbvia que se estabelece entre o modo de pilotar o ‘jaeger’ e uma concepção orgânica de entrosamento social, algo que, no filme, só é relevante quando balizada por impressões emotivas arquetípicas.
Neste sentido, tanto a concepção do clicheroso personagem Pentecost é precária, já que, desde a primeira cena em que ele aparece sangrando pelo nariz, adivinhamos que ele se submeterá a um desafio combativo sacrificial (não antes de preconizar que “a vingança é uma fenda!”), quanto o surgimento dos demais coadjuvantes resistentes incomoda pela estereotipificação, tanto no que diz respeito aos trigêmeos chineses atléticos quanto aos russos que ainda carregam os cacoetes furtivos da extinta Guerra Fria, sem contar a aguardada aparição de Hannibal Chau, divertidíssimo personagem vivido por Ron Perlman, colaborador habitual do diretor.
Para fins conclusivos, cabe deter-se um pouco mais na relação compartilhada entre os cientistas Gottlieb (Burn Gorman) e Newton (Charlie Day): ambos exagerados em sua paspalhice cientificamente funcional, são eles que validam o sucesso estratégico da declaração formulada por Pentecost acerca da difícil necessidade de se lidar com as conseqüências derivadas das decisões imediatas que são tomadas durante uma batalha. Se, por um lado, o teutônico Gottlieb chama a atenção quando exclama que “política, poesia e promessas são mentiras e são os números aquilo que mais se aproximam da verdade no mundo”, por outro, o abobalhado Newton desempenha um papel fundamental na resolução da batalha entre ‘kaijus’ e humanos que se estende ao longo de doze anos através da premissa básica do entendimento das razões do oponente. É graças a este irritante personagem que o roteiro do filme faz sentido (inclusive para além de suas convenções genéricas) ao esclarecer as razões da invasão dos ‘kaiju’ à Terra, ao mesmo tempo em que os categoriza enquanto espécimes dotados de uma consciência (instintiva) coletiva, similar àquelas que os condutores de ‘jaegers’ emulam em sua defesa do compartilhamento de interesses comuns, algo que ressurge de forma ainda mais previsível e vendável na canção dos créditos finais, “Just Like Your Tenderness”, interpretada por Luo Xiaoxuan.
Ainda que isso funcione muito bem enquanto proposta moralizadora extensiva, a má direção de atores faz com que esta atualização de seriados televisivos como “O Fantástico Jaspion” e “Esquadrão Relâmpago Changeman”, produzidos entre 1985 e 1986, soçobre qualitativamente. Tal como acontece em relação aos atributos humanos em que a crítica identifica em Guillermo del Toro um artificioso defensor (vide situações pitorescas como aquela em que Gottlieb vomita num vaso sanitário em meio aos destroços de uma cidade atacada por ‘kaijus’, a percepção das gaivotas que levantam vôo quando o impacto dos golpes de ‘kaijus’ e ‘jaegers’ devasta um cais, ou o brinquedo metálico que é mostrado em câmera lenta durante um combate que atravessa destrutivamente um prédio), nem sempre as boas intenções são suficientes para sustentar um filme. A inconvincente translação da “borda pacífica” mencionada no título original deste filme que o diga...
Wesley Pereira de Castro.
terça-feira, 13 de agosto de 2013
CÍRCULO DE FOGO ('Pacific Rim') EUA, 2013. Direção: Guillermo del Toro.
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