segunda-feira, 2 de setembro de 2013

FLORES RARAS (Brasil, 2013). Direção: Bruno Barreto.

Graças ao poderio financeiro de sua família, Bruno Barreto tornou-se um precoce realizador de cinema: aos 17 anos de idade, dirigiu o irregular “Tati, a Garota” (1973), logo demonstrando um talento insuspeito em obras vigorosas como “Dona Flor e seus Dois Maridos” (1976), “Amor Bandido” (1978), “O Beijo no Asfalto” (1980) e o posterior “Atos de Amor” (1996), filmado nos EUA, onde se radicara na década de 1980. Na década posterior, provou que ainda era um hábil diretor, ao conduzir filmes bem-sucedidos comercialmente como “O Que é Isso, Companheiro” (1997) e “Bossa Nova” (2000), que exibiam um acabamento técnico incapaz de escamotear os seus desvios ideológicos.

Recentemente, os desconjuntados “Voando Alto” (2003), “O Casamento de Romeu e Julieta” (2005) e “Última Parada 174” (2008), além do escabroso projeto do ainda não-visto “Crô” (2013), fizeram com que fosse posta em xeque a diligência directiva outrora demonstrada por este profissional cinematográfico, que, no elogiado “Flores Raras” (2013), mistura características de todas as fases de sua carreira. Se, por um lado, a sutileza intemporal que acompanha o romance entre a poetisa Elizabeth Bishop (Miranda Otto) e a arquiteta nata Lota de Macedo Soares (Glória Pires) ao longo de quinze anos é encantadora, por outro, os descuidos referentes à evolução cronológica da trama são execráveis em sua proposital corrupção histórico-política.

 Por mais garrida que seja a interpretação de Glória Pires e por mais ternas que se mostrem as cenas de sexo entre mulheres, a composição das personagens é precária, principalmente no que diz respeito à contextualização de suas condições sociais, fazendo com que a sensualidade que baliza o envolvimento passional entre as protagonistas seja contrabalançada por uma desenxabidez tramática, realçada pela trilha musical quase redundante de Marcelo Zarvos e especialmente percebida quando a indefinida e ciumenta Mary (Tracy Middendorf) está presente.

O autodeclarado comprometimento de Elizabeth com o pessimismo redunda numa hipertrofia oportunista dos caracteres depressivos, que visam a levar o espectador a considerar o seu alcoolismo uma falha de caráter muito pior que o colaboracionismo de Lota com a primeira fase da ditadura militar brasileira. Neste sentido, o declínio rítmico que se instala após a entrada em cena da personagem infantil Clara torna ainda mais evidente a malevolência discursiva do filme em suas omissões e/ou deturpações históricas, que devem ser atribuídas ao roteiro de Matthew Chapman e Julie Sayres, precipitado em sua concatenação temporal. Se, intradiegeticamente, a rapidez com que se instaura o vínculo paramatrimonial de Elizabeth e Lota é justificada quando a primeira responde à questão “que tipo de vida é esta em que o amor vem na frente da amizade?”, no que diz respeito à reconstituição de época, o atropelamento de fatos históricos (geralmente metonimizados através de notícias de jornais ou programas radiofônicos) vai de encontro à bela fotografia de Mauro Pinheiro Jr., que tira excelente proveito das paisagens naturais cariocas.

O momento em que Elizabeth, bêbada, escandaliza os seus companheiros de refeição ao externar seu desagrado pela reação indiferente dos brasileiros que jogavam futebol na praia enquanto os militares tomavam o poder é particularmente constrangedor porque, apesar de ser provido de motivação opinativa, é desfavorecido em mais de um aspecto, seja pela exacerbação reprobatória do alcoolismo da personagem, seja pela desconsideração da subtração informativa que se instalou midiaticamente no Brasil durante o período abordado.

 Insistindo na averiguação dos componentes discursivamente negativos do filme, pode-se perceber na ausência de manifestações homofóbicas em relação às personagens lésbicas menos um adendo militante ou apoiador das causas homossexuais que uma associação perniciosa ao isolamento paisagístico proporcionado pelas benesses classistas das protagonistas. A perspectiva instável de câmera na seqüência em que Mary, financiada por Lota, visita a casa de uma mulher pobre e deveras fértil para comprar um bebê recém-nascido é outro instante de constatação do decréscimo talentoso de Bruno Barreto, repercutido nas metáforas paupérrimas que acompanham cenas de suposto impacto elevadamente emocional, como quando começa a chover, forte e subitamente, no momento em que Lota confessa a Mary seu intuito de namorar Elizabeth, ou quando esta última recita, ao lado de seu fiel amigo Robert Lowell (Treat Williams, eficiente), o célebre poema “A Arte de Perder”, num parque de nautimodelismo, e é focalizado um barco de brinquedo que afunda num lago.

Situações como esta quase dirimem a imponência de momentos grandiosos como as carícias eróticas entre as duas protagonistas e o instante em que, após ser resgatada de um porre etílico, Elizabeth Bishop sintetiza na seguinte afirmação o dilema de sua existência: “quando eu não tenho aquilo que quero, sinto-me sozinha e triste; mas, quando consigo, tenho a certeza de que perderei tudo em breve. A espera é insuportável”. Tal confissão valida o reconhecimento literário que a verdadeira personagem goza enquanto renomada poetisa, para além dos preconceitos acadêmicos contra a sua condição sexual.

 Vale acrescentar que, tal qual o título do livro de Carmen Oliveira [“Flores Raras e Banalíssimas”] em que este filme se baseia, o brilho dos cabelos negros de Glória Pires, e os paradoxos contidos nos versos premiados de “Norte e Sul – Uma Primavera Fria” (obra lançada em 1956), o filme de Bruno Barreto é tecnicamente pulcro e potencialmente muito interessante. O problema é que ele se deixa perverter por um nocivo projeto de reescritura da história brasileira levado a cabo pela Globo Filmes e manipula os altos e baixos do intenso envolvimento amoroso entre as protagonistas em prol de um recorte assaz enviesado que se associa à obnubilação política, conforme se evidencia na representação caricatural do governador Carlos Lacerda (Marcello Airoldi) e nos pantins aristocráticos das ricas personagens.

A audição de canções antológicas como “Kalu” (interpretada por Dalva de Oliveira) e “Blue Velvet” (na voz de Tony Bennett) na banda sonora é balsâmica em sua efetividade nostálgica, mas o entreguismo ideológico do filme preocupa-se sobremaneira em legitimar o elitismo pioneiro da determinada Lota de Macedo Soares, segundo se constata na exaltação sentimentalóide do Parque do Flamengo nos letreiros finais. Poeticamente falando, as flores raras que o filme tão bem modela sucumbem quando morros inteiros são explodidos apenas para assegurar visões profissionalmente confortáveis àqueles que dispõem do mesmo (desejo de) conforto luxuoso de que gozam as personagens do filme.

 É esse tipo de situação que mantém o comprometimento falacioso com o pessimismo, enquanto sentimento que assegura a lógica de consumo atrelada à divulgação desta peça fílmica tão iridescente quanto equivocadamente encenada...

 Wesley Pereira de Castro.

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