sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Cannes 2021: STILLWATER (2021, de Tom McCarthy)


Num determinado momento deste filme, a adorável garotinha Maya (Lilou Siauvaud), ao ser posta na cama pelo rústico porém gentil Bill Baker (Matt Damon), diz que ele é o seu "norte-americano favorito". Parece um instante trivial na construção de afinidade entre ambos os personagens, mas também serve como um ambíguo testemunho do filme em relação ao seu protagonista: por mais comportamentalmente equivocado que ele seja, o roteiro fica ao seu lado, defende-o, insiste em torná-lo empático. O personagem retribui: esforça-se para ser carinhoso, aprende poucas palavras em francês e admite não ter votado nas eleições presidenciais de 2016. Não nega que é apoiador de Donald Trump quando é interrogado: o motivo de ele não ter comparecido às eleições é por ser um ex-presidiário que, como tal, perdeu este direito democrático. Por isso, ele consegue apenas subempregos, ao lado de imigrantes e pessoas tão broncas como ele. Acha normal ouvir (e ignorar) comentários racistas: "convivo com esse tipo de gente o tempo inteiro", grita quando questionado. E não entende por que sua interlocutora fica tão chateada ao ouvir isso... 


A descrição deste protagonista parece estender-se ao filme como um todo: não que a obra seja ostensivamente trumpista, mas filia-se a uma tradição osmótica da direita estadunidense. Aquela que insiste em orar de mãos dadas em todas as refeições, mas não hesita em seqüestrar e aprisionar um rapaz num porão, em defesa da inocência da filha aprisionada por um crime que (supostamente) não cometeu. Sem aderir ao excesso de indulgência quanto às explosões de raiva do protagonista - ele é lembrado o tempo inteiro que possui incontornáveis defeitos relacionais - o filme perdoa os "acidentes" investigativos que desembocam naquele amargo desfecho: "tudo parece diferente para mim agora", diz um caipira que contempla o lugar onde passou quase toda a sua vida. Num certo sentido, é corajoso que o roteiro assuma essa postura: afinal, ele parece enfrentar o determinismo que marca a consolidação dos valores norte-americanos. Não por acaso, a autodeclaração como "cidadão de bem" indica que a pessoa em pauta é preconceituosa - tanto lá quanto aqui!


Diante da aflição tradicional legada aos homens desta sociedade corrupta e largamente estabelecida, cabe às mulheres os papéis mais complexos: Abigail Breslin interpreta com muita sensibilidade uma rapariga lésbica, acusada de assassinar a sua namorada. Depois de cinco anos presa, ela escreve uma carta para sua advogada, que recusa incutir-lhe novas esperanças, o que faz com que seu pai realize uma violenta investigação por si próprio. Segue-se uma série de eventos um tanto inverossímeis, que permite que Bill conheça Virginie (Camille Cottin) e encare a possibilidade de um recomeço na França. Arruma um emprego como demolidor na construção civil, e ouve de sua filha uma explicação esforçadamente consoladora para a lógica árabe do 'maktoub'. Quando ele está prestes a aceitar essa idéia de Destino, algo acontece, e mergulha o filme numa delicada lida com os crimes "cometidos em nome da família". A culpa parece não permear este premissa, ainda que o sentimento de perda, sim. Uma tatuagem, uma visita ao túmulo de quem se ama e a audição de uma canção romântica ["Help Me Make It Through the Night", na voz de Sammi Smith] servem como alentos, na dura tarefa de prosseguir com a vida. Estes são apanágios da Direita política, não é?


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Netflix: RUA DO MEDO: 1666 - PARTE 3 (2021, de Leigh Janiak)


O fato de a trama do terceiro capítulo desta trilogia de terror adolescente desenvolver-se no século XVII faz com que os dois principais problemas dos filmes sejam diluídos: ao invés da saraivada de canções, temos agora uma maior participação da trilha musical de Marco Beltrami, Anna Drubich e Marcus Trumpp, composta por eficientes temas lúgubres; e, como trata-se de uma circunstância passada numa colônia de pioneiros norte-americanos, não há o determinismo chavonado que opõe uma cidade promissora a outra fadada às tragédias. O maior defeito passa a ser rítmico: no afã por denunciar a hipocrisia religiosa e erigir um panfleto 'pop' em defesa da homossexualidade juvenil, a diretora exagera nos cortes, na falta de lógica típica dos clichês de gênero. Até que as situações em aberto do primeiro filme são reconvocadas - e tudo degringola de vez: o resultado é péssimo!


Por mais que a protagonista Kiana Madeira esforce-se para transmitir credibilidade em sua saga histórica de redenção, as estratégias adotadas pelo roteiro para criminalizar os culpados são as piores possíveis: todas as gerações de uma família são condenadas a repetir uma tradição de malevolência contumaz e de invocações satânicas. A antítese óbvia é disparada, num chistoso trocadilho anglofílico: 'Goode is evil'! Ao menos, a evocação fonética do medo no sobrenome da personagem enforcada como bruxa ('Fier') mantém-se conservada, a despeito das más escolhas produtivas: quando "Come Out and Play", da banda The Offspring, é executada, o filme recusa qualquer infinitésimo de seriedade roteirística aplicado até então. É difícil suportar a sessão até o final, de tão esquizofrênico e sub-piadista que o filme se torna!


Na seqüência dos créditos finais, o mais reles dos cacoetes das estórias de terror é aplicado: as personagens esquecem o livro de feitiços no chão e alguém põe as mãos sobre ele, reiniciando fora do quadro o ciclo de feitiços e assassinatos que ocorre há mais de trezentos anos. Se a primeira metade deste filme possui alguns breves momentos de interesse denuncista, estes são malogrados pelo justiçamento 'nerd' da segunda metade. Por mais que torçamos pelo beijo lésbico no desfecho - ao som de "Gigantic", de Pixies - este filme comprova o quão desengonçado (e até mesmo perigoso) é o entulhamento de referências usurpadas pelo padrão netflíxico de narrativa esvaziada. Culpa da série literária de R. L. Stine, talvez? Não necessariamente. As más intenções dos enredos algorítmicos da contemporaneidade atingem aqui um desonroso - e mercadologicamente bem-sucedido - nadir! 


Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Berlinale 2021: ENCONTROS (2021, de Hong Sang-Soo)


O prolífico realizador sul-coreano que dirige, produz, roteiriza, monta, fotografa e compõe a trilha musical deste filme foi tão exitoso na construção de um universo próprio que o lançamento esporádico de qualquer uma de suas obras converte-se automaticamente num evento cinefílico sobremaneira badalado: especializado em enredos curtos - nos quais os personagens comem ou bebem em abundância - ele parece parodiar seu próprio estilo neste emaranhado de freqüentes recomeços. O título, neste sentido, é bastante explícito: trata-se de um filme que introduz elementos narrativos periodicamente, mas os mantém em suspensão ao longo de toda a trama, até que tudo termina de maneira inconclusiva. Os elos entre as três partes dependem da capacidade do espectador de preencher as lacunas do que é apresentado em meio a comentários recorrentes sobre a vontade de fumar e o excesso de luz...


Rodado num preto-e-branco intencionalmente estourado - que dá a impressão simultânea de excesso de sol e névoa - este filme inicia-se com o desespero de um médico (Kim Young-Ho), que reza para livrar-se de uma determinada situação, prometendo doar parte de sua riqueza para um orfanato, caso consiga "sair dessa". Não sabemos do que se trata, como também não saberemos o que seu amigo ator (Ki Joo-Bong) tem a discutir consigo. Pouco a pouco, descobrimos que o jovem Young-Ho (Shin Seok-Ho) desempenhará um papel central na obra: além de ser filho do referido médico, ele namora com a estudante de Moda Ju-Won (Park Mi-So), que muda-se para a Alemanha no segundo segmento, e tem uma relação deslumbrada com a sua mãe (Cho Yoon-He), com quem embebeda-se no terceiro. Destacado por ser muito alto, ele tem a sua beleza física ressaltada por quase todos com quem conversa, de modo que a derradeira seqüência, numa praia, é quase uma celebração homossexual de seu charme. Entretanto, esta é apenas uma dentre as inúmeras interpretações possíveis para o quebra-cabeças roteirístico entregue pelo diretor...


Se, no início, as possibilidades tramáticas são fascinantes, depois que a ação concentra-se na cidade de Berlim, o interesse é suplantado pelos apanágios classistas: viajar da Coréia do Sul para a Alemanha parece algo trivial para os personagens e, mesmo neste país estrangeiro, o único idioma ouvido é o coreano. Para piorar, os exageros ébrios do terceiro segmento pecam por certa ingenuidade na condução dos diálogos, que destacam a recusa de Young-Ho em ser ator, pois não queria "abraçar alguém por fingimento", e a doença ocular de sua ex-namorada, que parece querer suicidar-se numa praia. A atriz-fetiche do diretor, Kim Min-Hee, tem uma breve aparição como a pintora que será a colega de quarto da namorada do protagonista, mas todos os contatos entre os personagens permanecem vagos: o filme apenas introduz. Quiçá este seja o exercício cínico de um autor de cinema tão estabelecido que sabe que até mesmo a sua obra mais genérica angariará elogios apaixonados da Crítica especializada (tanto que o roteiro foi premiado no Festival de Berlim), mas que está aquém da genialidade demonstrada noutras entregas fílmicas. Trata-se de um mero esboço, portanto!


Wesley Pereira de Castro. 

Berlinale 2021: RODA DO DESTINO (2021, de Ryusuke Hamaguchi)


Num impulso exordial, o modo como os três contos deste longa-metragem são construídos tem muito a ver com o estilo de Éric Rohmer e Hong Sang-Soo: em relação ao primeiro, por causa dos percursos surpreendentes que advêm de encontros casuais; em relação ao segundo, por causa da sutileza dos diálogos, pela recorrência dos motes alimentícios (nesse caso, o chá) e pela trilha musical pianística e graciosa. Entretanto, o desenvolvimento hamaguchiano é ostensivamente literário, malgrado tratar-se de um roteiro cinematográfico original. Não que as imagens sejam dispensáveis ou desleixadas (muito pelo contrário!), mas a perversão induzida ultrapassa estes recursos audiovisuais, instalando-se na imaginação do espectador, que coteja o que é visto e ouvido com suas próprias experiências íntimas. A fantasia não aparece no título por acaso; o destino, muito menos! 


Distinguindo-se dos cineastas em relação aos quais foi comparado - e diferenciando-se até mesmo da tendência dominante no cinema de seu país - Ryusuke Hamaguchi sexualiza bastante cada detalhe de seu filme, ainda que isso não elimine a delicadeza inata do cotidiano. No primeiro episódio, cujo título emula a magia dos encontros românticos iniciais, a duração estendida de uma conversa entre amigas antecede uma revelação chocante, que conduz a um desfecho duplicado (uma reação possível versus uma contenção provável). O segundo episódio menciona portas escancaradas em seu título, e obedece a um percurso que beira a metalinguagem, ao fazer com que sua protagonista pergunte ao autor de uma passagem erótica se ele estava com o pênis ereto ao escrevê-la. Diante da resposta evasiva, um pedido: "masturbe-se quando ouvir a minha voz lendo o meu trecho favorito de sua obra". O terceiro episódio, por sua vez, é mais corriqueiro, porém sublime em seus questionamentos sobre o "lesbianismo genuíno" e sobre a reiteração de algo que teria acontecido em momentos separados das juventudes de duas mulheres: imaginar é também lembrar, no contexto platônico dos (re)encontros...


Nos três casos, o diretor acredita no poder das conversações, enquanto reparadoras dos males provocados pelo tempo, pelas ocupações empregatícias e pelas versões mal-intencionadas de enredos balizados pelas traições. A inevitabilidade dos comportamentos psicologicamente destrutivos, as armadilhas sociais oriundas dos planos rancorosos de vingança e as conseqüências fetichistas da inoculação tecnológica são alguns dos temas que motivam as ações das personagens femininas, não obstante elas seguirem rumos inesperados: seja através de um fingimento por cortesia num restaurante, do envio equivocado de uma mensagem licenciosa por e-mail ou de um vírus de computador que interdita os serviços de 'streaming'. Tudo no filme transita entre o trivial e o escandaloso, entre o que é esperado que aconteça e o que é inventado para ser revivido. Uma pequena obra-prima sobre uma necessidade humana elementar: a vontade de estar ao lado de quem amamos (e/ou de quem desejamos sexualmente)!



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Kinoforum: OLHOS LIVRES (2021, de Fábio Rogério)


Nove anos após o falecimento do imortal Carlos Oscar Reichenbach Filho [1945-2012], qualquer homenagem que seja produzida acerca de sua obra ainda é muitíssimo necessária. Ao invés de optar pela estratégia enciclopédica - válida, em mais de um sentido - o curta-metragista sergipano prefere reencarnar o diretor a quem presta reverência: no afã por demonstrar que "o desejo é um elemento fundamental em minha dramaturgia", testemunhamos seqüências de diversos filmes, que confirmam, na prática, este anseio do cineasta; como exortação imagética de que "utopia é vanguarda, utopia é vida", deparamo-nos com o próprio olhar reichenbachiano, em interpretação poética no longa-metragem "Avanti Popolo" (2012, de Michael Wahrmann). O espírito lúbrico de protesto permanece vivo!


Recomendado sobretudo a quem já possua familiaridade em relação ao universo do diretor, que faz jus à alcunha contida no título - aproveitando as palavras de um manifesto inventivo do crítico Jairo Ferreira [1945-2003] -, este curta-metragem também serve como posfácio apaixonado a uma das mais ricas filmografias do cinema brasileiro: em seus trabalhos extremamente pessoais, Carlos Reichenbach uniu cinefilia e anarquismo, numa versatilidade multifuncional que beneficia-se do apreço deste realizador pela Música, herdada de seu pai. Como tal, as contribuições de Alessandro Santana - em seu projeto Música das Cinzas - na trilha sonora são mui assertivas, enquanto ferramenta concatenadora da sinestesia militante deste curta-metragem...


Indo dos píncaros expressivos de obras-primas como "O Império do Desejo" (1980) e "Filme Demência" (1985) às profecias antibolsonaristas de "Garotas do ABC" (2003) - que encontra no personagem vilanaz de Selton Mello um proferidor de jargões excludentes como "o Brasil acima de tudo" - os trechos fílmicos que são reaproveitados neste documentário de montagem recebem nova envergadura discursiva, ao demonstrarem tanto a genialidade de seu idealizador quanto a possibilidade de enfrentamento às censuras diuturnas da extrema-direita política. O compêndio de cenas de nudez (principalmente masculina) apresentado, os gritos do poeta Orlando Parolini [1936-1991] e os berros de vitalidade que emanam do magistral "Alma Corsária" (1993) são apenas alguns dos aspectos certeiramente selecionados por Fábio Rogério, que redimensiona os variegados créditos reichenbachianos e as suas participações em filmes de outros diretores. Temos um continuador em atividade?


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: JESUS KID (2021, de Aly Muritiba)


Comparando-se as sinopses deste filme e do livro homônimo do qual ele foi adaptado, fica difícil mensurar de onde provém a maior quantidade de pastichos coenianos e piadas de metalinguagem barata, com pretenso efeito catártico. Sem que se tenha lido o romance, é evidente que o diretor Aly Muritiba forçou ainda os decalques elementais em relação a "Barton Fink - Delírios de Hollywood" (1991, do Joel & Ethan Coen), citado explicitamente em mais de um diálogo: desde o papel de parede cafona até os coadjuvantes caricatos, tudo emula aquele filme, sem o mesmo requinte paródico. Neste roteiro, tenta-se disparar algumas blagues contra o bolsonarismo, através da menção chanchadesca a alguns nomes (Sérgio Moro, Luciano Hang, Fabrício Queiroz), mas sem qualquer efetividade crítica: a catarse é frustrada no próprio tom canhestro do humor levado a cabo pelos envolvidos! 


No esforço por zombar do desgaste formulaico de alguns gêneros literários, sob a égide paraficcional de uma distopia política, este enredo chafurda na falência paródica: não é suficientemente engraçado nem atreve-se a abordar com seriedade uma situação progressiva de perseguições e perdas de direitos expressivos. Paulo Miklos atua de maneira involuntariamente cartunesca e os demais atores sequer conseguem dotar seus personagens de alguma relevância identificadora. São todos cacoetes do sistema de autômatos direitistas atualmente instalado no Brasil. As exceções pouco esforçadas são: o atendente chavonado vivido por Leandro Daniel Colombo; a enfermeira pretensamente sensual interpretada por Maureen Miranda; e o personagem-título, que merecia um pouco mais de tempo em cena, já que permite que o belo Sérgio Marone exiba-se nu... 


É até difícil enumerar as falhas produtivas deste filme, visto que o senso de ridículo parece anulado: a trilha musical de Daniel Simitan incomoda pela quase onipresença, mas possui temas assobiáveis; os efeitos especiais gerenciados por Rodrigo Aragão confirmam a sua eficiência técnica; e os trocadilhos nomenclaturais parecem retirados de um gibi infantil, não sendo casual, inclusive, que um idoso paralisado por causa de um derrame cerebral - apelidado de Fantoche (Luthero de Almeida) - tenha justamente o prenome do autor do romance original. Era para ser mais uma paródia? Pois é, não funcionou. Quase nada funciona neste filme, aliás!


Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: CARRO REI (2021, de Renata Pinheiro)


Neste filme, a direção fotográfica de Fernando Lockett tem importante função semiológica: quando percebemos que o céu é verde e que as cores da bandeira brasileira contaminam (quase) todos os ambientes, admitimos que estamos no terreno fabular. Os jargões libertários e tecnocráticos que opõem-se nos diálogos acrescentam um aspecto alegórico à trama, que é ostensivamente atravessada por firulas. O que importa no roteiro é a moral da estória, adivinhada desde o início da invasão dos carros, tal qual ocorre em qualquer enredo infantil. A cineasta obtém êxito em seu interesse primário: ela comunica, ela faz com que os espectadores torçam pela sobrevivência do protagonista, o que desemboca na associada conscientização marxista, em viés tão didático quanto simplório. Trata-se de uma fábula, insistimos!


No início, a impressão de realismo apresenta-nos ao garoto Uno (Luciano Pedro Jr.), que nasce dentro de um carro de marca homônima, depois que uma manada de vacas obstrui a estrada. Tem-se aí o primeiro dentre vários embates entre condições rurais e potencialidades urbanas, que encontrarão no tio do protagonista, Zé Macaco (Matheus Nachtergaele), um porta-voz tautológico. Espécie de caricatura engelsiana, este personagem trabalha como mecânico e vocifera declarações muito inspiradas, sobre os instrumentos e ferramentas como extensões do corpo humano. Pouco a pouco, entretanto, ele converte-se num títere robótico e, quanto mais integrado às tecnologias ele se demonstra, mais simiescos tornam-se os seus comportamentos. Eis um paradoxo basilar da contemporaneidade!


Analisando-se o filme de maneira sintagmática, são abundantes os defeitos: as interpretações são pouco expressivas (quase artificiais), a dublagem dos carros é pouco convincente, o roteiro é lacunar e as situações são desenvolvidas de maneira apressada. Mas talvez esses sejam justamente os grandes trunfos do filme, no sentido de que conferem-lhe uma aura quase brechtiana: afinal, parece apregoar que a genialidade advém da idiotia e que, à medida que ela arregimenta-se, os pólos ideológicos contrários se equanimizam...


Múltiplas referências fílmicas são identificadas, bem como menções satíricas a pronunciamentos políticos de extrema-direita. É um filme que assume a celeridade, visto que esta característica tem tudo a ver com o objeto mais recorrente no enredo, os automóveis. A denúncia central diz respeito à linha tênue que detectamos entre as proclamações de justiça social e o marketing assimilacionista. Para tal, a sensualidade surge como grito de alerta, desde a trilha musical dançante de DJ Dolores à calcinha neon da ativista Mercedes (Jules Elting), que carimba um epíteto hebraico de mortandade sobre as estruturas laudatórias do patriarcado. Para além de toda a sua esculhambação intencional, que este filme semeie e frutifique: é urgente, inventivo e muito divertido! 



Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: A PRIMEIRA MORTE DE JOANA (2021, de Cristiane Oliveira)


Em dado momento, a protagonista Joana (Letícia Kacperski) reclama que está sentindo dores recorrentes no joelho, demonstrando que adquiriu uma espécie de hipocondria somatizada, ao identificar-se com os mistérios de uma tia recém-falecida. Adolescente introspectiva de uma cidade pequena do interior gaúcho, ela insiste em perquirir os motivos de sua parenta ter morrido vitalina, visto que ninguém a viu com nenhum namorado. Sua avó é taxativa quanto ao diagnóstico: "o que tu estás sentindo são dores de crescimento". É a metáfora fisiológico-existencial que conduz o enredo até o seu desfecho anticlimático... 


Não obstante ser tecnicamente aplaudível, este filme deixa-nos com a impressão de enfado: afinal, a trama desenrola-se morosamente e é tudo muito óbvio, sobremaneira evidente. Trata-se de uma descoberta periclitante do amor lésbico, na perspectiva tímida da adolescência rural. Fica-se torcendo para que Joana declare seu amor pela amiga Carolina (Isabela Bressane), mas tudo ocorre num ritmo anacrônico, lentíssimo. Exemplo: a mãe de uma das personagens, ao chegar da Alemanha, menciona que ainda utiliza constantemente o Orkut. Seu modo de encarar a maturação da filha é igualmente deslocado no tempo: ela despe-se com naturalidade à beira de um córrego, mas desaprova a homossexualidade da garota. 


O grande problema do filme, portanto, está na imiscuição desse tipo de julgamento moral: o roteiro escandaliza-se com o que - hoje, sobretudo - é bastante comum. A ponto de recorrer a uma trilha musical de umbanda na cena em que Joana masturba-se pensando na melhor amiga. O que é absolutamente natural é apresentado como indecoroso. Noutras palavras: o filme soa desenxabido, ainda que bem-feitinho, narrado com uma cautela excessiva, sendo mui gracioso em seus intentos românticos... Fosse lançado na década de 1980, talvez se tornasse um filme de culto entre as moçoilas incompreendidas, mas, na conjuntura cultural hodierna, informativamente pornográfica, periga ser rapidamente esquecido. Que nem uma comida nutritiva, porém insossa. 


Wesley Pereira de Castro. 




segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: ÁLBUM EM FAMÍLIA (2021, de Daniel Belmonte)


Analisar uma obra de arte, para além dos aspectos (des)apreciativos mais imediatos, implica em compreender as condições em que a mesma foi desenvolvida e tentar imaginar o que ela pode oferecer de (des)construtivo para as gerações futuras. Sendo assim, por mais que tenhamos desgostado de um produto artístico, é essencial adotar uma parcela mínima de condescendência, na esperança de que este trabalho talvez esteja apresentando algo para o qual ainda não fomos devidamente preparados. É assim que as revoluções surgem, essa é a pretensão das vanguardas. O filme ora resenhado faz cair por terra toda esta introdução: é abominável sob todo e qualquer aspecto! 


Dedicando-se a um esforço hercúleo, no afã por encontrar algo que valha a pena ser mencionado neste filme, podemos deter-nos em sua possibilidades inaproveitadas: se o filme optasse por uma adaptação linear - ainda que maculada pelos problemas de distanciamento físico entre os atores e pelos apanágios da quarentena - talvez ele obtivesse alguns resultados dignos de infinitésima exaltação. Afinal, transmutar uma obra literária é algo sobremaneira válido, e as reclamações que alguns membros do elenco fazem sobre o caráter reacionário do autor Nelson Rodrigues [1912-1980] são prenhes de sentido. E até mesmo eles admitem que, a despeito de toda a misoginia, racismo, homofobia e outros deméritos imperdoáveis, o dramaturgo merece a alcunha de gênio. Custava obedecer a um projeto específico, ao invés de trair a própria lógica improvisada deste pseudo-'making-of' a todo instante?!


Se dispuséssemo-nos a enumerar as variegadas contradições (ou pior: oximoros discursivos) deste filme, a lista seria infinda, com destaque para o momento em que Kelson Succi confessa que rejeitou a validade da peça em que atua antes mesmo que tivesse encerrado a leitura do texto ou quando o diretor-protagonista Daniel Belmonte converte um catálogo de hipocrisias familiares em uma oportunidade para celebrar o mais onipresente dos Aparelhos Ideológicos de Estado, ao som de "Pai e Mãe", de Gilberto Gil. Trata-se de uma das situações mais constrangedoras e ignóbeis do cinema brasileiro, muito mais graves que a mais vilanaz das piadas (neo)pornochanchadescas! O mesmo poderia ser dito sobre as simulações de estresse actancial de Cris Larin, sobre o desejo de Dhara Lopes (a única do elenco "nascida no século XXI") em obter um 'close-up' hollywoodiano, sobre a vergonha fingida de Eduardo Speroni após cheirar uma calcinha de sua mãe ou sobre a seqüência quase criminosa em que Otávio Müller contempla as suas filhas no mar, num contexto literário de intensa descrição incestuosa. Tudo no filme é absolutamente equivocado, sem graça e lastimosamente narcisista...


Como se não fosse suficiente, o diretor tenta justificar o seu catálogo de improbidades dedicando o projeto às pessoas que sofreram perdas familiares por causa da epidemia provocada pela COVID-19. Quiçá as suas intenções humanitárias sejam sinceras - e que ele seja louvado por isso - mas a obra como um todo depõe contra qualquer gesto positivo de debruçamento artístico: o roteiro zomba da discussão necessária sobre o "cancelamento" contemporâneo de Nelson Rodrigues; a montagem é ainda mais canhestra que a de um 'vlog' pré-adolescente; as interpretações evidenciam o constrangimento da falta de perspectiva do projeto; e Renata Sorrah e Lázaro Ramos esforçam-se (em vão) para legarem alguma seriedade satírica a um engodo incontornável. Que haja a possibilidade de este filme - se é que se pode chamar isso de filme - contribuir de alguma maneira para o esclarecimento das gerações vindouras, mas, nas atuais condições avaliativas, é uma demonstração efetiva - e deprimentemente involuntária - do fracasso político absoluto em que encontramo-nos na contemporaneidade, precisamente no Brasil de 2021. Horror extremo! 



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 15 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: O NOVELO (2021, de Cláudia Pinheiro)


 Malgrado serem projetos bastante distintos, há algo que permite que estabeleçamos comparações entre este filme e duas produções recentes da dupla de cineastas baianos Ary Rosa e Glenda Nicácio, "Até o Fim" (2020) e "Voltei!" (2021). Nos casos citados, os reencontros fraternais fazem com que sejam detectadas múltiplas tendências comportamentais, engendradas num mesmo ambiente familiar, de modo que as emoções surgem a partir do embate entre discordâncias longevas e memórias sufocadas. No díptico baiano, as protagonistas são mulheres, irmãs que metonimizam tendências conflitantes (e interdependentes) da política nacional; no caso do longa-metragem paulista, deparamo-nos com um quinteto de homens, irmãos que lidam de maneiras diferentes com as lembranças traumáticas da morte da mãe e do abandono do pai. A importância dos diálogos é central em todos estes filmes, mas a versão fílmica da peça de Nanna de Castro peca pela adesão apressada a uma narrativa repleta de chavões: os 'flashbacks' enfraquecem um enredo que acerta justamente quando assume a sua procedência teatral!


Ainda que evite a definição estrita de seu tempo diegético (estamos num período em que os telefones fixos são amplamente utilizados, o que é importante para a instauração do mote que obriga os personagens a se reencontrarem), o filme evita problematizar questões nacionais mais amplas: o que interessa à diretora são os dramas envolvendo os cinco irmãos, compostos de maneira heterogênea por seus respectivos intérpretes. Rogério Brito, por exemplo, ao vivificar um bem-sucedido escritor homossexual, compõe o seu personagem de maneira quase caricatural, o que é reiterado pela insistência da direção em sempre apresentá-lo ao som de ópera e em contextos que expõem suas contradições psicanalíticas elementares. Sérgio Menezes, por sua vez, dota o advogado Zeca de todos os estereótipos de cafajeste que o seu personagem exige e, ainda que seus resultados actanciais sejam irregulares, não se pode reclamar de inverossimilhança. Nando Cunha é exitoso em evidenciar toda a fadiga que dilacera o envelhecido Mauro, enquanto os dois outros atores respondem pelos momentos mais efetivamente emocionantes do filme...


Rocco Pitanga ficou encarregado de angariar a nossa empatia em relação a alguém que padece de explosões iracundas e de um alcoolismo recorrente, dotando-o de muita ternura refreada e da fragilidade correspondente ao seu desempenho fraternal como segundo em comando, visto que demonstra-se o mais cuidadoso em questões de higiene doméstica e situações afins. Já Sidney Santiago Kuanza faz jus à responsabilidade de tornar Cacau um personagem identitariamente complexo, visto que ele traz à tona a metalinguagem teatral que serve também como comentário psicológico para assuntos não abordados (mas emulados) na trama. Tanto que, nas diversas vezes em que ele aparece ensaiando um determinado texto, parece estar desabafando acerca de questões biográficas, envolvendo a sexualidade precoce. Além disso, a sua aparência afetada contribui para um dos mais evidentes anseios discursivos do filme, que é a ressignificação dos papéis masculinos tradicionais, de modo que é precisamente Cacau quem protagoniza os dois instantes de maior interação entre os irmãos: quando os convoca para retomar, na sala de espera de um hospital, as atividades de tricô ensinadas por sua mãe moribunda (interpretada pela mui expressiva Isabél Zuaa); e quando instala um divertido desconforto fisiológico ao defecar enquanto um dos irmãos escova os dentes e o outro suporta uma cólica estomacal debaixo do chuveiro. 



Infelizmente, o filme parece descrer da potencialidade dramatúrgica de suas falas, abusando de recursos cinematográficos entulhados de pieguice, incluindo-se todas as questões referentes ao reencontro tardio com um familiar desaparecido há mais de trinta anos. Seja como for, é uma obra que beneficia-se da inevitável identificação emocional de seus espectadores, que faz com que deparemo-nos com dores recorrentes, acalentadas no desfecho um tanto súbito e a partir da canção sensível que é executada durante os créditos finais. A direção de Cláudia Pinheiro acerta muito mais quando permite-se despojar dos recursos acessórios e focalizar em seus dois grandes trunfos, oriundos do roteiro: as interpretações e os diálogos. Quando esses dois elementos são priorizados, as boas intenções do filme são concretizadas! 



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 14 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: HOMEM ONÇA (2021, de Vinícius Reis)


 Sinopticamente, este filme estréia num momento sobremaneira oportuno da História do Brasil, visto que a guinada neoliberal que o roteiro aborda encontra um momento de piora na conjuntura protofascista atual: se a situação econômica do país já era preocupante no final da década de 1990, quando ocorreram as privatizações de diversas empresas estatais, em 2021, lidamos com um retrocesso que é também moral, que flerta com a reinstitucionalização da Censura. Neste sentido, a temática do filme é providencial - enquanto advertência - para uma sensação coletiva de fracasso que instala-se a largos passos, com o apoio de parte considerável da população. Entretanto, apesar das boas intenções, o filme vagueia em torno de maus sentimentos que não são devidamente aproveitados nem em seu viés político-discursivo nem em seu potencial dramatúrgico... 


Chico Diaz demonstra a competência habitual em sua entrega actancial ao personagem-título, assim apelidado por conta de três situações comportamentalmente relacionadas: o encontro com um felino num passeio infantil pela floresta, a sagacidade de suas posturas empresariais e o surgimento de manchas de vitiligo em sua pele. Amante da natureza, o protagonista Pedro percebe-se gradualmente sufocado pela lógica dos negócios, pelas decisões indecorosas advindas de ordens multinacionais que não podem se questionadas. Numa seqüência deveras sintomática, ele discute com a sua filha, numa mesa de jantar, por causa das opiniões docentes que ela repete, no que tange à legitimação do neoliberalismo como estratégia de sobrevivência nacional. Nem mesmo os cafeeiros resistem a isso!


Se, por um lado, o ritmo lento do filme designa certa elegância no tratamento dos dilemas do personagem central, por outro, o roteiro elíptico aproveita de maneira insuficiente as mudanças de época: exceto por um instante de extrema melancolia, em que Pedro queda imóvel diante da televisão, depois que é obrigado a aposentar-se contra a sua vontade, as diferenças de convívio entre as duas esposas (Sílvia Buarque e Bianca Byington, em ordem cronológica) são apresentadas através de generalizações quase estereotípicas. O tom percuciente anunciado pelas imagens jornalísticas dos protestos de abertura recaem numa espécie de amnésia consoladora, em que o refúgio de Pedro no campo tem mais a ver com o medo de enfrentar a realidade que com o anseio ecológico que balizava algumas de suas posturas empregatícias. Ao final, a execução de "Molambo" (na voz inconfundível de Maria Bethânia) assume o aspecto de uma autocrítica involuntária: o filme expôs-se ao desprezo de todos nós. Talvez não mereça ser tão defenestrado assim: ao menos, ele tentou... 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Festival de Gramado 2021: A SUSPEITA (2019, de Pedro Peregrino)


 Desde a abertura, o roteiro pretende fazer com que o espectador sinta-se tão perturbado quanto a sua protagonista, numa dupla via entre o compêndio de informações investigativas e as elipses mnemônicas descritas pela personagem no romance autobiográfico "Enquanto Anoitece". Por motivos óbvios, o longa-metragem "Amnésia" (2000, de Christopher Nolan) serve como parâmetro comparativo, ainda que as definições profissionais de suas instâncias narrativas sejam opostas. O que, no cômputo geral, é pouco relevante, em razão da inocuidade dos dados policiais trazidos à tona: o filme passa-se no Rio de Janeiro, em 2013, mas poderia situar-se em qualquer outra cidade e em qualquer época; o principal investigado é descrito como um chefe do tráfico de drogas, mas suas ações vilanazes são genéricas; a pseudo-intricada rede de corrupção policial que desvela-se, ao final, é absolutamente previsível e formulaica; e, por mais esforçadas que sejam as interpretações do elenco, não há substrato humano na composição dos personagens. É tudo excessivamente pasteurizado, sem emoção!


Emulando a tecnicidade dos filmes policiais hollywoodianos - filiando-se ao subgênero "drama de corregedoria" - esta produção soçobra por causa de sua montagem confusa (no sentido involuntário do termo) e pelo excesso de obviedades tramáticas: a personagem principal chama-se Lúcia, e, por estar num estágio inicial do Mal de Alzheimer, é requerido que ela mantenha a sua lucidez; na seqüência inicial, quando instala uma escuta telefônica no apartamento da namorada do principal investigado, ela distrai-se diante de uma fotografia, ao lado da qual há uma citação-chave, "decifra-me ou te devoro"; num 'flashback', ela é mostrada conferindo uma palestra, na qual compara os nós de uma rede de pesca aos meandros da memória humana, o que também é reforçado nas falas do escritor Miguel Yan (Bukassa Kabenguele), especializado nas relações entre "Jornalismo e Memória". Tudo no filme é evidente demais, exposto demais, sendo nulo o impacto de qualquer revelação do desfecho: a trama é tão esquecível quanto os lamentos da protagonista, no que tange ao abandono de suas preocupações familiares por causa da dedicação intensiva ao trabalho... 


Em meio à extrema burocratização do roteiro - que faz com que os diálogos entulhados de palavrões soem artificiais, além de erigir situações vagas, como a pouca importância concedida ao personagem eclesiástico de Genézio de Barros e as relações entre o bandido Beto (Daniel Bouzas) e a Igreja Católica -, um elogio transversal deve ser direcionado ao músico Edson Secco: malgrado ele não ser exitoso na instauração do clima de suspense pretendido pelo enredo, suas composições instrumentais ficam repercutindo na mente do espectador após a sessão, dada a efetividade grave de seus acordes. Pena que soe tudo muito incoeso, o que, nalguma medida, é anunciado nos versos que a protagonista digita no rascunho digital do que seria o seu legado literário após a perda da memória: "estou mais aqui, enquanto escrevo, do que lá, quando eu leio". Ela tentou, mas foi interditada pela corrupção de lugares-comuns de sua própria equipe (intra e extra-diegeticamente). Um filme vazio, infelizmente, indigno da perquirição implantada e dos esforços produtivos de Glória Pires! 



Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 7 de agosto de 2021

Disney+ : LUCA (2021, de Enrico Casarosa)


 A seqüência de abertura permite que reconheçamos de imediato o estilo do diretor: o passeio noturno de barco possui o mesmo bucolismo do já clássico curta-metragem "La Luna" (2011). Entretanto, o enredo logo anuncia sua especificidade: o personagem-título é um garoto íctico, que vive no fundo do mar e é temido como fera pelos marinheiros que eventualmente o vislumbram, quando ele passeia pela superfície. Luca (magistralmente dublado por Jacob Tremblay) desempenha atividades como latifundiário submarino, cuidando dos peixes de sua família, mas sente-se inadequado, deseja conhecer outros lugares. Ele estranha a quantidade de objetos que caem das embarcações, mas seus pais recomendam-no enfaticamente que ele evite emergir. Até que, num encontro casual, ele afeiçoa-se ao jovem Alberto (Jack Dylan Grazer), que explica-lhe que eles são capazes de uma conveniente mutação: quando secam os seus corpos, tornam-se humanos. É a deixa que Luca precisava para pôr em prática os anseios por liberdade que sentia refreados em suas atividades diuturnas... 


Como ocorre na maioria das animações infantis dos Estúdios Disney, o desenvolvimento dos personagens principais está relacionado à desobediência das ordens paternas, geralmente condicionadas pelo medo. Da mesma maneira, a fruição espectatorial depende de uma série de convenções genéricas, que induzem-nos a ser bastante tolerantes quanto às lacunas da lógica diegética: sendo assim, não estranhamos que Luca e Alberto enxuguem-se com muita celeridade (inclusive em relação às suas vestimentas), ignoramos a facilidade com que seus pais adaptam-se aos costumes da cidade onde buscam pelo garoto e desdenhamos inúmeras contradições abundantes no roteiro. Porém, é indispensável abrirmos um parêntese acerca das conotações ideológicas da trama.


Não obstante o enredo servir como uma metáfora potente contra os preconceitos destinados a quem é diferente (seja pela aparência, pela origem social ou pelos comportamentos desviantes), há alguns problemas gritantes no modo como Alberto convence Luca a desejar os produtos humanos - inicialmente, uma lambreta; posteriormente, um telescópio, depois que ele conhece uma estudante em férias - e na naturalização da pesca enquanto atividade provedora de benesses financeiras. O modo inquestionado como os mutantes marinhos passam a auxiliar o esquartejamento de peixes insurge-se como um dilema moral: será que as crianças da platéia compreenderão a complexidade das relações de exortação capitalista ali estabelecidas? É uma dúvida que requererá um debate vindouro sobre a recepção do filme, que goza dos atributos técnicos mui elogiados da produtora Pixar. 


Musicado com muita sensibilidade por Dan Romer, esta animação possui também um senso de humor bastante inspirado, em especial na composição dos familiares de Luca. Dentre eles, merece destaque o tio Ugo, que protagoniza uma cena assaz divertida após os créditos finais, aproveitando-se do histrionismo do dublador Sacha Baron Cohen. O vilão Ercole (Saverio Raimondo) é exageradamente afetado e os costumes italianos são apresentados de maneira caricatural. Nada que atrapalhe o charme do filme, a simpatia dos personagens e a necessária exortação ao conhecimento que configura o desfecho: que as diferenças interespecistas sejam bem aceitas, como as crianças fazem questão de demonstrar a cada gesto simples de colaboração lúdica! 


Wesley Pereira de Castro