domingo, 31 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: MADALENA (2021, de Madiano Marcheti)


O surpreendente desfecho em aberto deste filme vem acompanhado de uma triste constatação noticiosa, que poderia estar no início ou atrelada à campanha publicitária do filme: "o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo". Isso explica muito acerca do que acontece no filme, mas não exatamente o que acontece no enredo: caberá ao espectador completar as lacunas tramáticas. Ao invés da teleologia narrativa, o diretor oferta-nos a realidade enquanto algo rizomático, o que ocorre também através da multiplicidade de gêneros cinematográficos com que o roteiro flerta.


Oficialmente, pode-se dizer que o filme possui três episódios específicos - ao mesmo tempo, isolados e interdependentes entre si, com sutis elipses temporais de um para o outro: começa-se com um drama, avança-se pelo suspense e termina nalgo semelhante à aventura de amadurecimento, havendo elementos críticos de ficção científica em cada um deles, visto que o ambiente rural em que as situações ocorrem é permeado por muitas anedotas envolvendo OVNIs. Além disso, os instrumentos e veículos que são notados na fazenda denota o uso de altíssima tecnologia agrícola: os coletores são imensos artefatos robóticos, há drones vasculhando toda a plantação e até mesmo os narguilês que Cristiano (Rafael de Bona) fuma são eletrônicos e luminosos. Nada é por acaso, afinal!


As excelentes interpretações impressionam pelo modo como delimitam as relações interpessoais em cada uma das tramas: no primeiro caso, Luziane (Natália Mazarim) é responsável pela manutenção dos cuidados familiares e pelas reflexões proletárias; no segundo, o supracitado Cristiano surge como metonímia juvenil da corrupção característica de quem é classistamente bem-sucedido; e, por fim, Bianca (Pâmela Yulle) instaura um pouco de leveza e esperança ao núcleo social diretamente afetado pela lamentável estatística que é reproduzida no letreiro final. Junto às suas amigas, ela sorri. Briga, às vezes, mas logo faz as pazes, numa desenvoltura emocional distinta dos episódios anteriores. Ainda que onipresente, Madalena não aparece: sabemos que ela está morta. Não sabemos em quais condições isso ocorreu - mas, sem dúvida, foi através da mais imperdoável e naturalizada das violências! 



Wesley Pereira de Castro. 


Mostra SP 2021: O JOELHO DE AHED (2021, de Nadav Lapid)


Mergulhar neste filme não é tarefa fácil: o protagonista age de maneira muito inconstante, os movimentos de câmera oscilam entre a hiperatividade e a esquizofrenia, e quase todos os personagens encontram-se ameaçados pelo lastro da decadência. A montagem é rápida e os diálogos são agressivos: como bem notaram alguns críticos, os diretores - tanto o do filme quanto o que aparece no filme , caso um não represente o outro - sentem muita raiva, e isso culmina na cena-chave em que Y (Avshallom Pollak) e Yahalom (Nur Fibak) conversam num deserto, concordando que, em Israel, "o Ministério das Artes não gosta de arte e o Governo não suporta a beleza humana". É um filme-denúncia, que conta uma história muito mais discernível que a do trabalho anterior do cineasta, o devastador "Sinônimos" (2019). 


Em ambos os filmes, ainda que radicalmente distintos, Nadav Lapid inclui memórias traumáticas do passado militar de seus protagonistas: aqui, Y recorda emocionado o instante em que a sua tropa foi obrigada a tomar comprimidos de arsênico - sem que soubessem que estes eram falsos - quando receberam a notícia de que as tropas sírias estavam aproximando-se. Ostensivamente iracundo, Y realiza filmes que são premiados em festivais internacionais, mas, nos debates sobre eles, apressa-se em dizer que não possui respostas acerca do que faz. Em Israel, ele é uma ameaça: a classificação etária de suas obras é mais severa que noutros países e ele é obrigado a preencher uma série de documentos que autorizam a censura estatal nas sessões de que participa. É isso ou o banimento. E ele sente muita raiva!


Este sentimento iracundo manifesta-se internamente nos ângulos inusitados de câmera e na recorrente utilização de canções de protesto como válvulas de escape: numa das cenas iniciais, num teste para o projeto de filme dentro do filme - que explica o estranho título da obra - uma atriz canta "Welcome to the Jungle", da banda Guns N' Roses. Noutra situação, soldados dançam empunhando metralhadoras, inclusive apontando entre si, de maneira intimidadora. As pessoas com quem Y interage através de seu telefone celular padecem dos mais diversos problemas: sua mãe está com câncer e a jornalista com quem desabafa está num complicado processo de divórcio. Ao final, num dos áudios que ele envia, a pergunta é direcionada a nós: "tu és suficientemente forte para resistir?". Enfrentar este filme até o final serve como reação pragmática: é necessário evadir-se para sobreviver de maneira atuante. Um petardo magistral! 



Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: O ATLAS DOS PÁSSAROS (2021, de Olmo Omerzu)


No início, o filme parece um drama corporativo tradicional: um rico empresário passa mal durante uma reunião, ao saber do acúmulo de uma dívida que pensava quitada. Sua contadora precisa tirar férias emergenciais e, no hospital, ao mexerem em seu telefone celular, os filhos do enfermo descobrem que ele foi infiel à sua esposa, nomeando as suas amantes com apelidos de pássaros. A partir desse pressuposto, já teríamos uma obra assaz contundente, sobre os tormentos normalizados como "efeitos colaterais da riqueza" - que são ignorados até que algo muito grave aconteça. Numa brilhante culminação tramática, as descobertas são bem mais chocantes do que pareciam. E, assim, o roteiro opta por uma guinada melodramática que é, no mínimo, surpreendente!


Enquanto arruma-se para exigir que seus médicos dêem-lhe alta hospitalar, ostensivamente precipitada, o bem-sucedido porém solitário Ivo (Miroslav Donutil) não prestará atenção aos conselhos ornitológicos que recebe, enquanto a sua abnegada funcionária Marie (Alena Mihulová) viaja com seu cachorrinho. Uma situação tão decepcionante quanto inusitada justificará o reencontro entre ambos, ao passo que o enredo vai desvelando uma série de intrigas típicas do cotidiano dos poderosos, que, como bem dizem os pássaros, "sentem prazer às custas das lágrimas dos pobres"... 


Os diálogos legendados dos passarinhos não se resumem às frases de efeito e aos conselhos de auto-ajuda que são colados no quarto de Marie: eles conversam sobre o derretimento das calotas polares, sobre as fusões econômicas internacionais e sobre o destino dos personagens. A direção opta por uma encenação realista, de maneira que o desfecho num tribunal assume um cariz quase novelesco, com direito a um inusitado fechamento de íris. As interpretações são ótimas e o que acontece na tela é uma potente metonímia de circunstâncias similares, diuturnamente noticiadas nos jornais sensacionalistas. Para o realizador, a vida real é uma amarga tragicomédia! 



Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: ASSIM COMO NO CÉU (2021, de Tea Lindeburg)


Apesar de ser um filme que faz uso muito expressivo das cores, trata-se de uma obra que transmite com precisão a hipertrofia acinzentada do luteranismo enquanto propósito implantado de vida em sociedade: todo lastro de rudeza, frieza e secura que associamos à "ética protestante" encontra aqui a sua contrapartida feminina, num registro muito doloroso do que já é confirmado desde o título. Na abertura, a protagonista Lise (Flora Ofelia Hofmann Lindahl, extraordinária) depara-se com nuvens avermelhadas que formam-se no céu para onde convergem as flores de dente-de-leão que ela desmancha com seu sopro. Chove sangue, abruptamente: é um prenúncio do que virá a seguir!


Num contexto em que as advertências oníricas são muito mais respeitadas que a Ciência, Lise é hostilizada por querer estudar, ainda que este anseio tenha provindo de sua mãe (Ida Cæcilie Rasmussen), que está grávida mais uma vez. Elas vivem numa comunidade rural, e os trabalhos destinados às mulheres parecem inextinguíveis. Como é a mais velha das crianças - já uma adolescente, em verdade - cabe a ela a responsabilidade de cuidar dos irmãos menores. Porém, ela começa a experimentar desejos íntimos: sente-se atraída por um rapaz criado por sua família e percebe gradualmente que as negociações com Deus, realizadas através das orações passadas de geração em geração para a sua família, são vãs: "Pai nosso que estás no Céu, (...) seja feita a Tua vontade"...


Por motivos óbvios, pensamos na filmografia de Carl Theodor Dreyer [1889-1968] durante a sessão, sobretudo em sua obra-prima "A Palavra" (1955), mas num viés que ressignifica os temores e tremores kierkegaardianos: o ritmo aqui é bem mais frenético, os gritos de dor são bem mais agudos, e os milagres são tolhidos pela realidade implacável das tarefas campesinas. A despeito disso, Lise e sua infinidade de irmãos e primos brincam avidamente, em seqüências abrilhantadas pelo uso magistral da câmera na mão. Conscientes dos males iminentes, as crianças tentam inverter a malevolência do que as circunda, imaginando até mesmo "as coisas boas que se seguem após a morte da mãe". Entretanto, é a impavidez das senhoras mal-humoradas que instala-se como regra: ao perceber que sua avó não está chorando, Lise pergunta o porquê. Ela responde sem titubear: "depois que se enterra mãe, pai, marido e dez filhos, não há mais lágrimas a verter". O que surge como consolo num contexto religioso como este?



Wesley Pereira de Castro. 



quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: SANGUESSUGAS - UMA COMÉDIA MARXISTA SOBRE VAMPIROS (2021, de Julian Radlmaier)

No segundo dos três capítulos deste filme, acontece algo muito importante, em termos narrativos: depois de ser acusado de não possuir cultura literária e, portanto, ser incapaz de julgar adequadamente os sentimentos humanos, o assistente vegetariano Jakob (Alexander Herbst) pega emprestado o romance proustiano que sua patroa - por quem é apaixonado - lia e resolve, a partir daí, contar ele próprio a sua história (e a dos outros), imitando o fluxo de consciência do personagem central do hepteto "Em Busca do Tempo Perdido". Deste momento em diante, fica evidente que ele é uma espécie de alter-ego satírico do próprio realizador, ostensivamente erudito. Convertido em "mão invisível", numa situação posterior, alguém pergunta a Jakob como é estar morto. Sua resposta: "bem melhor, pois observo as pessoas com maior atenção, por não estar mais apegado à vida". É uma piada, claro - e também uma autocrítica!


Em verdade, o filme é repleto de chistes desse tipo, incluindo aquele que aparece antes mesmo dos créditos iniciais, quando um grupo de estudos marxiano acha equivocada a associação pretendida pelo autor entre os capitalistas e os vampiros. Há um interesse escuso nesta provocação, de modo que o roteiro não esconde a sua predileção pelas contradições de classe - marca registrada da ainda breve porém chamativa filmografia do diretor. Desde o início, sabemos que a bela e generosa Octavia (Lilith Stangenberg) é, de fato, tanto uma capitalista quanto uma vampira, não sendo casual que, em dado momento, ela demonstre-se frustrada em relação ao amor, pois crê que este sentimento baseia-se na presunção de interesses, o que, paradoxalmente, é o que salva-lhe a vida, quando os moradores da região passam a suspeitar que ela seja uma hematófaga legítima. Há evidências disso, mas uma filmagem ficcional ofertada como documental faz com que um inocente seja punido em seu lugar. As autocríticas do cineasta não param!


No primeiro dos capítulos, somos apresentados ao "cavalheiro sem classe" Ljowushka (Aleksandre Koberidze), que, por estar vestindo o figurino de uma produção eisensteiniana de que participou, é confundido com um barão. Mesmo revelando a Octavia as condições de sua fuga da Rússia - e admitindo que é um proletário -, ele é acolhido por ela, o que faz com que os anseios platônicos de Jakob sejam abandonados. Ex-camponês que converteu-se em refugiado político, este personagem trai os seus próprios ideais de juventude, ao conviver prolongadamente com os pequenos-burgueses que tanto odeia. O desfecho confere melancolia à comédia até então representada, fazendo com que reflitamos sobre as incongruências da contemporaneidade. Mui provocativamente, o diretor serve-se de inúmeros recursos propositalmente anacrônicos (a abertura de uma lata de Coca-Cola, numa mesa de jantar aristocrática em 1928, por exemplo) e de cacoetes estilísticos que já foram demonstrados no curta-metragem "Um Conto de Inverno Proletariado" (2014). Os títulos de seus filmes evidenciam as suas intenções paródicas, demonstrando que ele pesquisou a fundo os livros que cita. Um gênio em formação, talvez?



Wesley Pereira de Castro. 

 

Mostra SP 2021: AMANHECER (2020, de Dalibor Matanic)


O caráter de fábula invertida deste filme requer alguma compreensão, por parte do espectador, em relação aos conflitos que ocorreram nos países da antiga ex-Iugoslávia, no sentido de que os diálogos gritados entre os personagens parecem derivados das traumáticas guerras civis da região balcânica. A origem conturbada da esposa do protagonista, Ika (Tihana Lazovic), que é cristã e está vinculada a uma conformação político-nacional oposta à de Matija (Kresimir Mikic), reforça este indício. O que fica ainda mais acentuado quando homônimos de seu marido passam a chegar ao local onde eles vivem, com a intenção de usurparem a sua residência. O roteiro não explica em minúcias a razão dessa rapacidade anunciada: cabe ao espectador interpretar!


Malgrado iniciar com uma seqüência de sexo consensual entre o casal protagonista, as tensões familiares são logo estabelecidas: a adolescente Kaja (Lara Vladovic) observa os pais transando e chama seu irmãozinho Nikola (Max Kleoncic) para que ele também assista ao coito. Quando sai de casa para respirar, Matija percebe que a sua propriedade está sendo invadida: alguém que alega possuir o mesmo nome que o seu constrói uma casa ao lado da sua. Em breve, ele exigirá também a sua família. E não será o único. Por quê? Mais uma vez, a História explica... 


Situada no ano 2021 (posterior à época de seu lançamento oficial, portanto), a trama deste filme instaura um perene clima de suspense, com traços de ficção científica: Matija trabalha como consertador de antenas, e é responsável pela programação musical que é executada nos aparelhos radiofônicos locais. Sua filha gosta muito de dançar, da mesma maneira que os jovens simpatizantes do fascismo que ela encontra numa 'rave' homicida. Há um membro desaparecido na família e uma constante troca de acusações entre Matija e Ika. O ritmo sobremaneira lento do filme retroalimenta a angústia, no que tange à falta de explicações sobre a violência iminente. Na letra da recorrente canção "Ako Je", da banda Pridjevi, a  pergunta-chave: "se a vida é um sonho, quem de nós sonha com isso?". Encontramos uma resposta possível - ainda prestando atenção à letra - nos comportamentos controladores de Kaja, que carrega seus fones de ouvido para todos os lugares, enquanto sua mãe é tachada de descrente: "talvez eu seja um deus, eu tenho que ser um deus". Ao final, o medo permanece: nos olhares de quem foge, o desespero - e também resquícios de ódio! 



Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: NA PRISÃO EVIN (2021, de Mehdi Torab-Beigi & Mohammad Torab-Beigi)


Partindo do pressuposto teórico de que a identificação primária do espectador é em relação à câmera, os realizadores deste filme utilizam um procedimento até hoje poucas vezes adotado no cinema, que é a narrativa integralmente conduzida pelo olhar subjetivo de um personagem, que é visto apenas através de relances. Levado a cabo anteriormente por cineastas tão distintos como Robert Montgomery e Walter Hugo Khouri - e, em partes, Paul Verhoeven -, este procedimento requer muita observação acerca de como os objetos e os coadjuvantes são dispostos ao redor da pessoa protagonista, que, neste caso, é refletida em mais de um espelho quebrado. Trata-se de uma metáfora óbvia para a condição da atormentada Amen (Mehri Kazemi), cuja voz ouvimos do início ao fim e que anseia por uma cirurgia de redesignação sexual... 



A audição ostensiva da voz dessa personagem é essencial para o desenvolvimento tramático, pois ela foi escolhida para uma determinada função justamente por suas características vocais: um magnata que comporta-se como gângster (Mahdi Pakdel) deseja que Amen finja ser a sua filha por algum tempo, mas não revela com sinceridade as condições embutidas nesse processo. Pouco a pouco, Amen perceber-se-á diante de um dilema sobremaneira delicado: permanecer sentindo-se presa num corpo de homem ou poder ser efetivamente uma mulher, porém reclusa numa penitenciária? O filme reforça este dilema através de metáforas visuais um pouco óbvias, como os já mencionados espelhos partidos e o documentário sobre lagartas recolhendo-se em casulos a que ela assiste na TV. O agravante: é perceptível que (quase) todos ao seu redor estão mentindo, inclusive a amiga que apresentou-lhe ao falso benfeitor!


Se, por um lado, parece inusitado que uma produção iraniana traga como temática central o transexualismo, por outro, o roteiro aborda o tema sem preconceito ou exotismo, inclusive enfatizando que há leis federais que autorizam a cirurgia hospitalar de mudança de sexo, sem que hajam reprimendas religiosas neste sentido. Para os espectadores ocidentais, isso é algo deveras inusitado, mas a trama põe este aspecto em segundo plano: o que está em evidência é a situação policialesca em que Amen se envolve, que desencadeia uma série de questionamentos morais e individuais. Sua aparência é imageticamente constituída de maneira parcimoniosa, através de 'close-ups' em sua mãos esfoliadas ou nas unhas pintadas de seus pés. O desfecho deixa em aberto a consecução da negociação-chave que parte de Amen, visto que, como diz um dos visitantes do magnata, "ela possui a resistência dos homens e a paciência das mulheres". O que ela propõe (ou a que ela se submete) é o requisito definitivo para experimentar a condição feminina em seu país? Mais uma válida metáfora é erigida, portanto. 


Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2021: LISTEN (2020, de Ana Rocha de Sousa)


Num primeiro momento, tem-se a tentação de comparar este filme com o já clássico "Ossos" (1997, de Pedro Costa), por causa das sinopses semelhantes e do enfoque nas questões (des)empregatícias. O olhar da diretora estreante em longas-metragens é bem menos sisudo, entretanto. Chega mesmo a flertar com os filmes hollywoodianos de tribunal, ao fazer-nos torcer para que a abnegada Bela (Lúcia Moniz) obtenha êxito nas declarações públicas de que seus filhos "não estão à venda". Apesar de sua simplicidade e da curta duração, o filme evita as soluções fáceis: no desfecho, o que vemos é uma porta recém-fechada.


O título original em inglês é multiplamente oportuno, pois, além de estarem na Inglaterra, o casal protagonista esforça-se para ser ouvido, ou seja, para que as suas reivindicações afetivas sejam compreendidas por um sistema burocrático que gaba-se da extrema pontualidade mas não hesita em pagar pessoas para que adotem os filhos de outras. A energia compreensivamente agressiva que Bela demonstra nas cenas em que enfrenta a rigidez das autoridades britânicas agiliza o processo de identificação emocional do espectador, mas é a garotinha Lu (Maisie Sly) quem cativa de imediato o nosso apreço. Afinal, cabe a ela o significado mais urgente do título. Deficiente auditiva após um contágio de meningite pelo qual seus pais são injustamente responsabilizados, ela reensina-nos a ver: enquanto a mãe desespera-se entre pequenos frutos e a rotina puxada como diarista, ela olha para o céu e faz uso de uma percuciente sensibilidade no modo como focaliza aquilo que lhe faz bem...



A trilha musical de Bernardo Bento é impregnada de ternura, o que manifesta-se também na belíssima canção dos créditos finais ["Hold my Hand", cantada por Nessi Gomes], que permanece muito tempo afagando-nos após a sessão. A montagem é um tanto abrupta no modo como acompanha, de maneira eventualmente distanciada, os recursos advocatícios de que Bela e seu acabrunhado marido valem-se para rever os filhos. Há algo de protocolar no desenvolvimento fílmico, como se ele obedecesse narrativamente a convenções melodramáticas dominantes. Mas tudo isso é justificado pela relevância social do enredo, que é assaz gracioso e pertinente, além de relacionado ao grande júbilo que a diretora sente por também ser mãe! 



Wesley Pereira de Castro. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: EU VEJO VOCÊ EM TODOS OS LUGARES (2021, de Bence Fliegauf)


Dando continuidade a um experimento que o próprio diretor havia realizado em 2003, este segundo exercício dramatúrgico envolvendo tramas tipicamente budapestenses impressiona pelo modo como são urdidas situações que aparentemente não possuem nenhuma conexão entre si, exceto pelo ambiente citadino: os personagens, em sua grande maioria, são aquisitivamente favorecidos e, mesmo encolerizados, retraem o tom de voz, falam baixo, ainda que não escondam o rancor. Isso é sobremaneira perceptível no primeiro dos diálogos, em que a jovem interpretada por Lilla Kizlinger apresenta um relatório de culpabilidade para o seu pai, responsabilizando-o pelo acidente automobilístico que matou a mãe dela e provocou a amputação da perna de uma jovem desconhecida. A longa seqüência é caracterizada por muitos planos e contraplanos, geralmente fora do eixo. Os 'close-ups' nas mãos são comuns, e serão reiterados ao longo das seis estórias restantes... 


Adotando uma tensão monocórdia entre os personagens - inclusive no segmento que envolve uma bruta aproximação sexual entre um usuário de cocaína (Péter Fancsikai) e a esposa de seu pai moribundo, que é interpretado pelo músico habitual dos filmes de Béla Tarr, Mihály Víg -, o diretor surpreende-nos com os estrondos vocais que ocorrem na quinta seção, em que um garoto ateu (vivido pelo filho do diretor, János Fliegauf) é confrontado por sua mãe fanaticamente cristã quando ele pede para dormir na casa de um amigo, onde pretendia participar de um jogo de representação. A mãe não aceita que o garoto demonstre interesse por seres mitológicos e fantásticos, ao que o menino rebate com um argumento genial: "Deus é um assassino tão sanguinário quanto Adolf Hitler ou Mao Tsé-Tung. A diferença é que ele não existe"!


Dentre os episódios dramáticos, o segundo (sobre uma mulher ciumenta que não aceita que seu namorado visite uma ex-amante) e o terceiro (sobre um casal que não consegue superar a falta de filhos) são os menos inspirados, no sentido de que perpetuam um tipo de contenda prioritariamente vinculado aos ressentimentos pequeno-burgueses, mas, daí por diante, o filme prossegue num crescendo de emoções, culminando no flagrante de um homicídio contratual por uma criança e na abertura de uma porta, onde o sobejo de luz que invade o ambiente propõe uma reconciliação benfazeja entre pessoas de diferentes gerações, antecipando a versão 'indie' de uma canção da banda The Cure que é executada nos créditos finais. O estranhamento intenso que o filme causa ao longo de sua duração é gradualmente sedimentado nas memórias espectatoriais, de modo que o subtítulo passa a fazer pleno sentido: como esquecer aquelas pessoas amarguradas depois de tudo o que testemunhamos?!


Wesley Pereira de Castro. 

 

Mostra SP 2021: CAPITÃES DE ZAATARI (2021, de Ali El Arabi)


Mesmo quem não aprecia futebol sentir-se-á bastante tocado pela sensibilidade com que o jornalista egípcio Ali El Arabi converte a história de dois refugiados sírios num documentário sobre a importância dos objetivos lúdicos no enfrentamento rude do dia a dia. Fawzi Qatleesh e Mahmoud Dagher são melhores amigos e ambos são exímios futebolistas. A diferença de idade entre eles é de apenas um ano, mas isso surge como impedimento inicial para que Fawzi seja selecionado para um treino decisivo no Qatar. Mahmoud vai sozinho, apreensivo e deslumbrado. Até que uma nova oportunidade permitirá o reencontro entre eles, que será televisionado e transmitido para os seus familiares, que estão no enorme campo de Zaatari, na Jordânia... 


De curta duração (apenas 73 minutos), este filme acerta ao equiparar o seu enfoque ao modo um tanto ingênuo como os dois amigos enxergam o mundo. Evita-se, portanto, as mensagens grandiloqüentes: "o que os refugiados precisam é de oportunidades, não de pena", diz Mahmoud, numa entrevista. Mas é difícil ter sonhos quando a realidade parece tão irremediavelmente opressora: ciente de que a educação pode assegurar um futuro melhor à sua família, Fawzi insiste para que sua irmãzinha Rose aprenda Inglês, enquanto pensa numa maneira de trazer seu pai para o local onde eles estão. Quando isso acontece, descobre-se que o pai dele está gravemente doente. E, no primeiro jogo profissional de que participa, o time de Fawzi e Mahmoud sofre uma goleada de 6 x 0! 


No crédito de encerramento, o diretor agradece aos rapazes que filmou tratando-os como amigos. Este é, ostensivamente, o tema do documentário: a força do companheirismo. Mesmo quando estão separados, Fawzi e Mahmoud conversam diariamente, exceto quando a internet fica indisponível no campo de refugiados ou quando possíveis namoradas requisitam atenções particulares. Na primeira parte do filme, o diretor obtém belíssimos enquadramentos crepusculares, com os meninos à contraluz, que são gradualmente substituídos por planos mais abertos, solares. "Se eu precisar voltar ao campo de refugiados, me dedicarei bem mais aos estudos", proclama Fawzi, que torna-se um esforçado treinador local de futebol. É uma conquista razoável, que comprova que a esperança dos rapazes não foi vã. Isso ilumina, transmuta em ganhos palpáveis o que é metaforizado pela ótima direção de fotografia!



Wesley Pereira de Castro. 

domingo, 24 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: O CÃO QUE NÃO SE CALA (2020, de Ana Katz)


 As esquetes que compõem o enredo deste filme contêm muita ternura e doses leves de surrealismo, e, através de saltos elípticos, apresentam-nos ao percurso de vida de Sebastián (Daniel Katz, irmão da diretora), um jovem um tanto simplório que foi considerado um escritor promissor na infância, mas que converteu-se num 'factótum' na vida adulta. Após ser demitido do emprego por não ter onde deixar o seu cão de estimação, ele descobre um novo modo de vida ao conseguir uma ocupação espontânea numa cooperativa de agricultores. Porém, uma estranha epidemia surge e obriga as pessoas a evitarem distâncias superiores a um metro e vinte centímetros de altura. Enquanto isso, a vida segue: para quem nasce depois desta epidemia, "este é o seu mundo"!


Trata-se de um típico produto argentino de orçamento doméstico, que, em seus momentos mais promissores, comenta as tentativas paranóicas de readaptação à vida, num contexto muito semelhante à atual assolação pela COVID-19. As pessoas que possuem boas condições aquisitivas compram uma espécie de capacete de astronauta, graças ao qual podem interagir em ambientes públicos. O protagonista enfrenta dificuldades para cuidar de seu filho, o que faz seu casamento chafurdar. O tom da narrativa mistura características de Carlos Sorín e Charlie Kaufman, com um estilo um tanto literário, como se cada passagem da vida de Sebastián fosse um conto humanista isolado, sobre a necessidade de estabelecermos solidariedade ao nosso redor... 


É um filme bem-intencionado, portanto. Nos créditos finais, sabemos que a diretora dedicou esta obra a um amigo falecido, o músico Nicolás Villamil [1976-2017], que deixou prontas as canções que aparecem no filme. A fotografia em preto e branco parece um artifício fortuito e a interpretação do protagonista carece de mais empatia. Se, por um lado, isso reforça o aspecto errático de sua passagem pelos ambientes, por outro, é dificultada a adesão emocional do espectador, já que as situações apresentadas - mesmo quando dotadas de apelo dramático legítimo - soam pouco expressivas, rasteiras. O que não impede que bons diálogos sejam concebidos, como na dorida apresentação de um personagem com câncer ou quando a mãe de Sebastián, na cerimônia de seu casamento, declara ter encontrado um novo amor incondicional em sua vida, além do filho. As animações que pontuam os momentos de transição no roteiro são muito singelas! 



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2021: IRMANDADE (2021, de Dina Duma)


Quem aprecia o corpus cinematográfico da cineasta norte-americana Eliza Hittman, identificará muitos pontos em comum neste filme macedônico - e, por extensão óbvia, também identificar-se-á bastante com os dilemas de consciência da protagonista Maya (muitíssimo bem interpretada por Antonija Belazelkoska). O título do filme possui um caráter quase satírico, se não fosse trágico: a sororidade anunciada redunda no abandono característico da globalização, via Instagram. Como o enredo é desenvolvido numa área metropolitana, esquecemos as complicações históricas relativas ao país que produziu o filme: a diretora centra seu olhar nos dilemas na protagonista, a quem a câmera segue de maneira tão visceral quanto apoiadora... 


Os mergulhos surgem como elemento recorrente na trama: logo no início, de brincadeira, Maya é empurrada no fundo da água por sua melhor amiga Jana (Mia Giraud). Após uma conversa sobre desejos platônicos, ambas pulam de um penhasco, obtendo a atenção de um grupo de rapazes que nadava ao lado. Após algumas frustrações pessoais, este mesmo penhasco - onde os jovens costumam reunir-se, na improvisação de luaus etílicos - servirá de cenário para uma tragédia anunciada. No desfecho magistralmente em aberto, o ato inicial é invertido: agora é Maya quem tenta afundar Jana, num exercício de natação na escola em que ambas estudam. O ciclo nem sempre fecha: é assim com quem sobrevive à adolescência! 


Muito desenvolta em seu estilo naturalista de direção, Dina Duma evita as imagens gratuitas de choque ou a comiseração forçada. Ela põe-se ao lado da protagonista, e tenta compreender os comportamentos arredios e a sua timidez induzida. Mui inteligentemente, ela evita os maniqueísmos típicos desta faixa etária: trata com muita compaixão até mesmo quem exerce funções que, segundo as convenções do gênero dramático, seriam vilanescas. A diretora observa e compartilha as suas impressões, mas não há julgamento, e sim o esforço pelo entendimento e o reencontro com as lembranças traumáticas. Neste sentido, o título é muito certeiro, pois vai além dos modismos nomenclaturais da contemporaneidade. Diz respeito ao que poderia aplacar o desamparo da protagonista (e, porventura, também dos espectadores): em sua assertividade narrativa, é um filme-manifesto!



Wesley Pereira de Castro. 

 

sábado, 23 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: LUZ NATURAL (2021, de Dénes Nagy)


O grande chamariz deste filme é anunciado em seu título, a esplendorosa fotografia, que consegue homogeneizar quase todos os elementos em razão do uniforme cáqui dos soldados húngaros. Eventualmente, há um facho ígneo ou algum raio de sol poente cruzando a tela - e enchendo-a de breve esplendor - mas a tônica dominante é a monocromia, que encontra uma poderosa rima no olhar perenemente apático do protagonista Semetka (Fernec Szabó). Quando ele decide assumir as emoções, é tarde demais: é-lhe permitido que ele volte provisoriamente para casa, e o filme acaba!


O tema do enredo, mais uma vez, é a desumanização programada e necessária à continuidade da guerra, de maneira que a conversão das pessoas em meras máquinas de tortura e assassinato é um ganho funcional, um efeito previsível. Em âmbito social, entretanto, as ações são devastadoras: morre-se por falar a verdade, por estar num lugar aleatório, por tentar ingerir um pouco de leite, por ter nascido num determinado país, etc.. O ritmo do filme é sobremaneira comedido, e não traz nenhuma novidade acerca do que já vimos noutras obras: é mais um olhar devastado perambulando pelas horríveis situações da II Guerra Mundial...


Aqui, acompanhamos os feitos equivocados de uma tropa inexperiente da Hungria, que é direcionada à União Soviética, a fim de encontrar inimigos infiltrados. Não há maiores explicações sobre quem são estes inimigos, mas eles precisam ser encontrados e destruídos - e quem estiver no caminho morre também! Como de praxe nos entrechos sobre qualquer guerra, a iminência de estupros e agressões é ubíqua, de modo que os comandantes são impotentes na tentativa de refrear os instintos ferozes de seus comandados. A narrativa é esparsa e a trilha musical é discreta, quase ausente. No mais relevante dos encontros, um amigo (e superior) de Semetka explica como seu cachorro foi morto por um urso: é um diálogo breve, mas que valida o roteiro pela crença no poder afetivo do relato!


Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: REGRESSO A REIMS (FRAGMENTOS) (2021, de Jean-Gabriel Périot)


Para que este documentário seja devidamente assimilado e compreendido, algumas informações precisam ser conhecidas previamente pelo espectador: além de saber que o que está sendo analisado é o panorama político-partidário francês, há inúmeros atravessamentos reivindicativos em pauta, no afã pela conquista de "uma sociedade justa, ecológica e durável", conforme apregoa uma militante, próximo do final. Tanto o diretor quanto o autor do livro homônimo no qual esta obra é baseada são homossexuais assumidos e combativos, assim como a narradora Adèle Haenel - e isso é muito importante para que entendamos as imbricações fundamentais entre vida privada e vida pública que o texto lido traz à tona. Política, afinal, tem a ver com tudo o que fazemos, inclusive na intimidade! 


O filósofo que escreveu o livro-base é especializado nas abordagens foucaultianas, não sendo casual que as reflexões sobre "a dominação masculina" surjam de maneira tão pungente em seu relato autobiográfico: evadido de sua residência por causa da inaceitação paterna de sua homossexualidade, Didier Eribon esforça-se para compreender como sua mãe, apesar de oprimida pela lógica da dupla jornada de trabalho, cedeu à homofobia e ao racismo. Interpretado vocalmente pela atriz supracitada, Didier investiga o poder discursivo de penetração da extrema-direita a partir da manutenção dos temores proletários: sua família era muito pobre e, como ele mesmo destaca, enfrentou as agruras do pós-guerra, cujas cobranças foram muito mais violentas para as mulheres julgadas por seus comportamentos sexuais "colaborativos". Trata-se de uma análise nacional muito específica, mas que, obviamente, pode ser estendida para diversas sociedades. Ideologicamente, os recursos de soberania assimétrica são muito semelhantes... 


Dividido em dois grandes movimentos e um epílogo, este documentário serve-se de amplo material cinematográfico no primeiro caso e de vasta pesquisa telejornalística no segundo, concluindo com um segmento mais atuante, em que os posicionamentos políticos requerem que seus agentes deixem de ser apenas espectadores e tornem-se propriamente atores. Escritor, narradora e cineasta - simbioticamente conjugados - notam a penetração de contradições sexistas e racistas nos pronunciamentos de oradores de esquerda e lamentam que isso tenha desencadeado programas governamentais cada vez mais restritivos e menos conscientes da etimologia da palavra 'democracia'. Utilizando imagens de filmes produzidos por realizadores tão diversos como Dimitri Kirsanoff, Jean Vigo, Germaine Dulac, Maurice Pialat e Jean-Luc Godard, o diretor monta uma diacronia de eventos que desemboca no processo em curso da contemporaneidade. Trata-se de um manifesto fílmico que requer continuidade por parte da audiência, sob a forma de um prolongamento operacional com vieses sociológico, bibliográfico e cinefílico acerca do que é apresentado. Amar é um verbo que se conjuga na prática: eis o que o filme grita impetuosamente em seus interstícios autorais!


Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2021: MAR INFINITO (2021, de Carlos Amaral)


O visual do filme é muito bonito, mas, infelizmente, as pretensões de ficção científica não engrenam, o mesmo sendo dito acerca dos questionamentos existenciais dos personagens: emocionalmente ocos, empregaticiamente nulos e relacionalmente opacos, o casal protagonista destaca-se pela beleza física, mas seus circunlóquios extenuam-nos rapidamente. "Encontre-me depois do mar infinito", diz ela. Ele, por sua vez, tem um sonho recorrente em que nada (e/ou se afoga). E daí?


Não sabemos direito quem é Miguel (Nuno Nolasco), mas sabemos o que ele quer, obsessivamente: realizar uma viagem interplanetária. Quando conhece a misteriosa Eva (Maria Leite) à beira de uma piscina, pergunta se ela trabalha, ao que ela responde negativamente. Diante da mesma pergunta, Miguel diz "mais ou menos": ele passa muito tempo diante da tela de um computador que decodifica sinais. "É hipnotizante", concordamos com Eva, mas tal função perde-se numa autotelia rítmica similar aos diálogos, que reapresentam as mesmas frases de formas distintas, ao longo do filme. Trata-se de uma narrativa tão cíclica quanto previsível em seu redemoinho pretensamente filosófico... 


Apesar de seus bolsões roteirísticos, o filme consegue manter-se prazenteiro durante a incitação da espera: quando consente que Eva o ensine a dormir, os sonhos de Miguel tornam-se mais claros, e ele vê-se interagindo com um colono espacial (Pedro Galiza), que morre de maneira misteriosa. Pitorescamente, este é um dos poucos personagens do filme que trabalham: os outros dois são o pai de Miguel, que é eletricista, e o preparador de lanches de rua, que também sofre de insônia. Em conversas que não delimitam a contento a função interativa de Ricardo (Paulo Calatré), Miguel e Eva tergiversam acerca da senhora que permanece solitária, numa mesa ao lado deles. Pensam em convidá-la para cear consigo, mas nunca o fazem: basicamente, eis o que o filme provoca em relação à nossa afeição!



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2021: PEDREGULHOS (2021, de P. S. Vinothraj)


É difícil reagir imediatamente a este filme: sobremaneira violento na exposição da aridez paisagística e humana, ele não abole os reflexos de ternura, ainda que estes tendam a ser atropelados pelas explosões de fúria do protagonista e pelo clima implacável da região indiana onde foi capturado. O processo de filmagem é esplêndido, sendo fascinante o modo como um diretor estreante em longas-metragens consegue extrair tamanha expressividade de um bebê chorando num ônibus, de uma serpente atravessando o chão cálido e de um cachorrinho brincando com uma garrafa plástica... 


Por um lado, é um consolo saber que estamos diante de uma obra de ficção; por outro, é aflitivo imaginar que pessoas vivam em condições tão rudes de miserabilidade. De acordo com as entrevistas, o roteiro é adaptado de uma experiência autobiográfica do realizador, que alterou alguns elementos de suas lembranças, a fim de aumentar o impacto de seu relato. O trabalho do elenco impressiona pelo extremo realismo: os olhares coléricos de Karuththadaiyaan (como o pai alcóolatra) são aterrorizantes e o desamparo transmitido pelo garoto Chellapandi é exemplar. Sobretudo porque ele é persistente na possibilidade de praticar o amor. As cenas de confronto físico impressionam pela agressividade súbita e pela naturalidade com que são esquecidas no percurso: ao final, quando o menino retira uma pedra de sua boca e a coloca numa pilha, em sua estante, sabemos que tudo aquilo aconteceu anteriormente - e vai acontecer de novo!


O realizador foi muito hábil ao evitar uma trilha musical condutiva, sob pena de incorrer numa espetacularização da crueza. O recurso à câmera lenta, na seqüência da garotinha brincando com as sementes, foi pontual e mui assertivo. A exposição não psicologizada das situações também foi um acerto: aquelas pessoas visam à sobrevivência, por mais dolorosa que esta seja. O jeito severo com que as pernas dos ratos são quebradas, com eles ainda vivos, antes de serem torrados num espeto, e a fila de mulheres que seguram pacientemente os seus baldes diante de um açude enlameado e ressequido são apenas alguns dos elementos que chocam o espectador pela brutalidade. Mas o diretor não busca escândalos catárticos: ele conta uma estória simples e recorrente, atravessada por inúmeras intersecções vitais. A câmera ora assume a visão subjetiva de algum personagem (geralmente, as crianças), ora registra objetivamente as pisadas brutas do protagonista. É realmente difícil reagir a este filme, mas o afã por aplaudi-lo é igualmente imediato! 



Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: A GAROTA E A ARANHA (2021, de Ramon Zürcher & Silvan Zürcher)


Um espectador desavisado pensará estar diante de uma regravação pós-moderna de algum enredo antonioniano, por causa dos diálogos que acentuam a incomunicabilidade entre convivas aburguesados e pelos planos que enfocam objetos destruídos ou largados por seus possuidores. Oficialmente, a trama é bastante simples, e versa sobre mudanças. O desenvolvimento do filme, entretanto, disporá estas múltiplas mudanças - tanto literais quanto metafóricas - num cabedal de 'faux raccords', de maneira que as noções de contigüidade física e temporal são contagiadas pela sensação de despertencimento que aflige Mara (Henriette Confurius), que alega ser uma mentirosa compulsiva em mais de um instante. "Eu minto sem piscar os olhos", comenta ela explicitamente; a perspectiva fílmica obedece ao seu modo mui peculiar de organizar os eventos e lembranças... 


No começo, um planta arquitetônica ocupa a tela. Sabemos que ocorrerá uma mudança de apartamento e que Mara é a responsável por este desenho, que será modificado por gravuras infantis e manchas de vinho à medida que a narrativa avança. Mara lembra do instante em que salvou este desenho em formato PDF, e ficou maravilhada diante dos números e letras que embaralharam-se num erro de visualização eletrônica. Ela nunca conseguiu repetir este efeito novamente, impressão que retorna nas historietas que ela narra: sobre crianças que aparecem repentinamente enquanto uma fonte jorrava, sobre o piano abandonado pela camareira de um navio e sobre a aranha que a visitava, quando criança, todas as noites, antes de dormir... Ficou apenas a teia, como é também a tessitura de (des)encontros que ocorre neste filme!


Em sua primeira aparição, Mara é tratada com hostilidade pela mãe de uma amiga, por estar com uma ferida de herpes evidente em seu lábio superior. Sua amiga Lisa (Liliane Amuat) está saindo do local onde residiam, pois pretende viver sozinha, deixando entrever que houve alguma desavença envolvendo Mara. Dois operários poloneses ajudam as amigas, e os gatos e cães de vizinhos invadem a casa, bem como outras pessoas que interagem confusamente com as pessoas citadas até agora. Duas músicas são recorrentemente ouvidas (seja quando tocadas no piano, assobiadas por alguém ou executadas numa festa): o hino dançante oitentista "Voyage, Voyage", cantado pela francesa Desireless, e a valsa "Gramofon", de Eugen Doga. Os personagens encaram a câmera, no afã por estabelecerem contato com pessoas por quem ficaram interessados. Quando mudamos, inevitavelmente abandonamos algo (às vezes, voluntariamente); quando mudam-se subitamente, podemos ter a impressão de que fomos abandonados. "Acima das capitais e das idéias fatais, encare o oceano", diz a letra da canção: ao final, Mara parece ter entendido o conselho... 



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2021: SR. BACHMANN E SEUS ALUNOS (2021, de Maria Speth)


Durante a audiência, uma dúvida elementar chama a atenção do espectador: como foi o processo de filmagem? Em razão de não haver nenhuma seqüência no documentário que mencione a presença de uma equipe cinematográfica no interior da sala de aula, convém pesquisar entrevistas com a diretora, a fim de compreender as circunstâncias em que, ao longo de seis meses, em 2017, ela conseguiu montar registros tão fascinantes de educação não-bancária, a partir do exemplo mui peculiar do quase aposentado Dieter Bachmann, que insere diversas atividades recreativas em meio às aulas de Matemática, Inglês ou Alemão. Responsável pelos filhos de imigrantes na sexta série de uma escola pública numa cidade fabril do interior da Alemanha, este professor precisa lidar com as diferenças identificáveis entre as culturas búlgara, turca, marroquina, russa e italiana (para ficar em apenas cinco das explicitamente citadas) e integrá-las equanimemente num projeto de sociedade em que os pontos humanistas em comum são muito mais valorizados que as notas constantes nos boletins finais. "Para mim, as avaliações dão-nos apenas uma imagem imediata", diz ele. O que interessa é que os alunos "permaneçam fiéis a si mesmos" enquanto amadurecem...



Não obstante ser definido pelo pai de uma das alunas como "um professor muito bom e afetivo", o senhor Bachmann evita o pieguismo no tratamento com os pré-adolescentes: trata-os da maneira mais igualitária possível, a despeito das distinções comportamentais mui evidentes, como a muçulmana Ferhan, que freqüentemente sente-se ofendida pelas falas de seus colegas e "retrai-se como um caracol", ou o hiperativo Cengiz, costumeiramente repreendido por não prestar atenção às aulas, ainda que demonstre ser um marceneiro mui talentoso. Alguns dos garotos convertem-se em protagonistas natos, pelo modo mui carismático como se comportam na apresentação de suas atividades, com destaque para a espirituosa Steffi, para o terno Mattia e para o garoto búlgaro Hasan, que deseja ser boxeador mas é também um perito músico. Em suas aulas, Dieter Bachmann costuma executar clássicos do 'rock'n'roll' como "Smoke on the Water", "Knocking on Heaven's Door" e "Jolene", além de canções folclóricas e composições próprias, incluindo um relato sobre um rapaz que foi enforcado pelo pai após ser flagrado nu com outro homem. Os assuntos espinhosos não são evitados, portanto: além da discussão sobre o preconceito contra homossexuais, fala-se também sobre a imposição de símbolos religiosos nas escolas, sobre as expectativas acerca do despertar da sexualidade e sobre o Nazismo, inevitavelmente. Não por acaso, uma das palavras mais pronunciadas no filme é trabalho, e o trauma do 'Arbeit macht frei' permanece como uma chaga ainda em aberto na história teutônica. 



Num dos momentos mais potentes do filme, o professor explica aos seus alunos a origem de seu sobrenome germânico, escolhido arbitrariamente a fim de apagar a ascendência polonesa de sua avó. Há diversas situações com esse tipo de intensidade emocional, como quando uma das meninas compartilha o seu véu com uma amiga e explica por que usa esta peça de vestimenta mesmo fora da mesquita ou quando as crianças eventualmente comentam seus cotidianos domésticos. Como tratam-se de imigrantes, eles lidam com variegadas restrições e discriminações, sendo as dificuldades idiomáticas quase irrelevantes, por serem pragmaticamente contornáveis. E é neste sentido que o trabalho de Dieter Bachmann é tão aplaudível: agindo como uma espécie de Paulo Freire alemão, ele também aprende com os seus alunos e ensina-nos bastante por espontânea amostragem. Cantamos juntos em suas aulas e desejamos saber mais sobre aqueles garotos tão fascinantes, que dividem-se entre os que irão para o Ensino Médio, os que irão para Escolas Técnicas e os que precisão emigrar novamente, ao lado de seus pais. Da mesma maneira que o professor sabe que seus alunos continuarão os seus destinos após o ano escolar, a diretora intui que teremos outros afazeres após as quase quatro horas de duração deste excelente documentário. Mas, enquanto estamos vendo o filme e os garotos estão em horário de aula, a educação surge em sua faceta mais orgânica, integrada à vida diária com vistas ao mais belo dos sentimentos, o amor, recitado em múltiplos idiomas ao longo do filme. Consideramo-nos parcialmente formados após aquele desfecho: que venham as próximas classes!



Wesley Pereira de Castro. 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: ATLÂNTIDA (2021, de Yuri Ancarani)


O realizador deste filme possui vasto currículo como videoartista, o que explica o cariz fascinante das suas imagens, acompanhadas de uma trilha musical eletrônica e inebriante. Às vezes, tem-se a impressão de que estamos diante de uma videoinstalação projetada numa 'rave' lacustre, com variegados momentos de celebração canabídica. O protagonista Daniele, numa irrupção telejornalística, é anunciado como morto. Estamos assistindo a uma ficção ou a um documentário? Como saber? Para que saber? O filme é sobre curtir o momento...


Nos derradeiros minutos, o título mítico deste longa-metragem assume um aspecto evocador, de modo que a câmera é propositalmente enviesada, criando imagens especulares que parecem estar conduzindo o espectador a um ambiente submarino, num percurso psicodélico. É a maneira ideal de prestar reverência 'post-mortem' ao personagem principal, um jovem marginal (em todos os sentidos do termo) que impregna a tela com seu chamariz erótico suprimido pela falta de perspectivas. Ele dorme num barco, rouba hélices de lanchas estacionadas na vizinhança e ignora os desejos sexuais de sua primeira namorada. Mas navega sempre que pode. E vende tabletes de maconha aos adolescentes festivos que passeiam pelas águas de Veneza.


Quando acostumamo-nos à percussividade somática do filme, à sua musicalidade intrínseca, o itinerário é delicioso. Mas, ao esperarmos maior definição acerca da personalidade de Daniele, decepcionamo-nos: ele permanecerá misterioso, vagando perenemente. O diretor é também responsável pela fotografia, pela montagem e por muitos outros aspectos desta obra. A trilha musical é um deleite. Mas, quando passa o efeito do delírio, pouco resta: é um filme que dedica-se persistentemente à reprodução de experiências sensórias, quase como as atrações imersivas dos parques cibernéticos. Possui os seus méritos fungíveis, portanto! 



Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2021: O COMPROMISSO DE HASAN (2021, de Semih Kaplanoglu)


Depois da sensível trilogia autobiográfica em que refletia sobre as lembranças infanto-juvenis associadas aos sabores e odores de ovo, leite e mel, o cineasta Semih Kaplanoglu parte para uma jornada audaciosa, em que questiona a progressiva instalação do Capitalismo em seu país a partir de uma premissa religiosa, no sentido mais social do termo. Como é freqüente no cinema turco contemporâneo, esse questionamento acontece através de um dilema pessoal que se ramifica em diversos outros problemas. Afinal, cada pessoa tem as suas agruras individuais: seja o garotinho que tenta pegar uma bola colorida que caiu atrás de um vão, seja a dona de casa que não consegue encontrar o seu gato castrado, passando pela esposa fiel que lida com a degeneração mnemônica de seu marido, que foi alvo de uma disputa judicial que lhe pareceu sobremaneira injusta... 



O protagonista do filme, Hasan (Umut Karadag), é um agricultor de tomates e maçãs que, numa determinada manhã, descobre que a companhia elétrica da região planeja instalar uma torre de alta voltagem no meio de sua plantação. Ele tenta convencer o funcionário a fazer um pequeno desvio, mas este recusa, exigindo que ele mergulhe numa via-crúcis burocrática, afinal facilitada pela habilidade de Hasan na concessão de uma oportuna troca de favores: leva algumas mudas de cerejeira para um juiz que ajudou-lhe numa contenda anterior, de modo que obtêm êxito em sua simples requisição. Entretanto, novas indagações morais serão cotejadas a partir do momento em que Hasan e sua esposa são contemplados no sorteio institucional de uma peregrinação à cidade de Meca: ambos são confrontados pela obrigação instituída (ou seja, não voluntária) de libertar-se de pecados acumulados. E este é apenas o ponto de partida para uma série de reconciliações pretendidas... 


Um dos grandes méritos do diretor e roteirista é evitar converter seu personagem numa pessoa completamente ilibada: conseguimos simpatizar facilmente com ele e o consideramos uma boa pessoa, ainda que ele deixe entrever alguns estratagemas para beneficiar-se do desespero econômico de outrem. Não obstante o registro fílmico ser amplamente realista, com uma direção de fotografia que extrai toda a poesia da vegetação local (inclusive, quando devastada por uma noção forânea de progresso), há instantes de sutileza onírica que metaforizam as culpas de Hasan. Vide o momento em que uma árvore sobrevoa sua cabeça ou as frutas que são atiradas com violência quando ele passeia por seu pomar. Nalguns momentos, o filme parece emular "O Espelho" (1975, de Andrei Tarkovski), numa perspectiva atualizada: aqui, as relações interpessoais são inevitavelmente determinadas pelas movimentações monetárias, o que é tão triste quanto verossímil. No desfecho, resta-nos chorar ao lado do protagonista!


Wesley Pereira de Castro. 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Mostra SP: AZOR (2021, de Andreas Fontana)


Conforme alguns críticos notaram - de maneira mui perspicaz - este filme possui muitos traços que lembram as tramas de suspense político escritas por Graham Greene [1904-1991], sobretudo o seu roteiro para "O Terceiro Homem" (1949, de Carol Reed). O modo como o personagem ausente Keys é mencionado ao longo de toda a narrativa emula justamente o tipo oblíquo de crise de consciência que aflige os protagonistas, sendo que estes, ao constatarem a onipresença do Mal, sentem nojo, mas terminam sucumbindo ao que pensavam odiar. Neste sentido, apesar de ser um banqueiro - portanto, um continuador inato da malevolência que ele tanto teme - Yvan de Wiel (Fabrizio Rongione) esforça-se para manter ativos os seus procedimentos éticos, compartilhados com sua esposa Inés (Stéphanie Cléau): a fim de não se incomodar tanto com as conseqüências de seus atos empresariais, ele prefere não saber, o que é confirmado brilhantemente no diálogo em que descobrimos o que significa o título do filme... 



Passado no final de 1980, no auge da ditadura militar da Argentina, este filme é marcado pela abundância de pseudônimos, essenciais nos conluios institucionais atravessados pela corrupção. Tendo viajado para este país sul-americano a fim de atenuar os problemas desencadeados pelo desaparecimento repentino de um sócio, Yvan conversa com as pessoas mais poderosas de Buenos Aires, enquanto Inés, por ser mulher, é excluída das negociações. Mas é ela quem tudo decifra, inclusive o aflitivo desfecho - em sentido moral - que é batizado como "Lázaro", quinto e último capítulo do roteiro. Antes dele, temos "A Volta do Camelo", que versa sobre as transações bancárias substitutivas, e os segmentos auto-elucidativos "As Visitas", "O Duelo" e "A Festa". O desenho de som é primoroso, ao fazer-nos sempre desconfiar daquilo que ouvimos, mas que é propositalmente ignorado por outrem ou sobreposto por amenidades mal-intencionadas. Mesmo que não entendamos nada sobre os interstícios ideológicos das economias nacionais, a tensão é asfixiante! 


Logo no começo, exceto pelo susto que tomam ao flagrarem soldados revistando jovens nas ruas, o refinado casal de Wiel exclama: "parece que estamos na Europa". Não obstante escutarem de seus convivas que "estamos vivendo tempos horrorosos", eles freqüentam ambientes mui luxuosos, em que todos expressam-se muito bem em francês. Pouco a pouco, Inés vai descobrindo que os sumiços e cisões familiares não são nada casuais. E Yvan insiste em chafurdar no inferno das colaborações suspeitosas, em razão da perene comparação funcional com o supramencionado Keys. Até que tudo é explicitamente decifrado, de maneira dolorosamente climática para o espectador: trata-se de um conto intemporal sobre os tentáculos inebriantes da ganância de pessoas aparentemente ilibadas. A direção de arte é esplêndida! 



Wesley Pereira de Castro. 
 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: LUA AZUL (2021, de Alina Grigore)


Antes de ser diretora, Alina Grigore era atriz - e fica evidente que este é seu trabalho de estréia: apesar das boas intenções de seu roteiro, que demonstra o quão exploradas e maltratadas são as mulheres no interior romeno, a execução é um tanto desengonçada e repetitiva. A diretora confia bastante em seu elenco, mas as situações são forçadas e os diálogos improvisados de maneira pouco espontânea. A câmera na mão nem sempre consegue captar os arroubos previsíveis de raiva e as conversas entre os parentes soam pouco verossímeis no modo como reiteram eventos ocorridos há muitos anos - vide a frustração de Irina (Ioana Chitu) ao ter sido esmurrada por seu primo Liviu (Mircea Postelnicu) quando afogava-se num lago, na pré-adolescência, ou o conselho assustado do senhor que insiste para que uma jovem que admirava a lua saísse da sacada, pois ela caíra dali aos três anos de idade...


Se, por um lado, o filme é sobremaneira esforçado ao apresentar alguns comportamentos machistas que, como exclama um determinado personagem, parecem provenientes da Idade Média, por outro, as relações entre todas aquelas pessoas soam muito artificiais. Vide a insistência da mãe de Irina em declarar que um diploma de graduação não serve para nada, as confusões e tramóias em que Liviu se mete por não saber ler, a mal-explicada relação amorosa que Viki (Ioana Ilinca Neacsu) tenta esconder de seus parentes, e as brigas persistentes que ocorrem diante dos turistas que fazem as suas refeições na hospedaria gerida pela família disfuncional de Irina. Para piorar, os quiproquós envolvendo o professor casado por quem ela aparece se apaixonar - ou em quem projeta a sua possibilidade de ir para a Universidade, em Bucareste - são tolos. Os diálogos do filme são imprecisos, vagos!


Talvez o grande problema desta produção esteja na maneira apressada com que a diretora tenta enfatizar a opressão subempregatícia de Irina, já que ela obviamente não é remunerada: o filme inicia-se com uma seqüência abrupta e mui barulhenta, na qual a protagonista é despertada subitamente, a fim de substituir algum de seus familiares, que não cumpriu uma das atividades diárias de hotelaria. Esse ritmo frenético pretende ser mantido ao longo de todo o filme, mas os atores titubeiam, parecem confusos aos externarem as suas falas. Quando podemos ouvir adequadamente os dois lados de uma contenda (o instante em que Irina e seu tio conversam sobre a necessidade de aquecer um galinheiro para proteger os pintinhos recém-nascidos, por exemplo), o enredo ganha em interesse e empatia, mas quando mostra Irina reagindo com absurda naturalidade aos constantes espancamentos públicos de Liviu, ele demonstra-se pouco contundente. Que o diga a obviedade da seqüência em que ele quebra o telefone celular dela: faltou organicidade num relato que se pretende tão denuncista quanto naturalista!


Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 16 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: AS BRUXAS DO ORIENTE (2021, de Julien Faraut)


À primeira vista, um documentário de uma hora e quarenta minutos de duração sobre a primeira equipe olímpica de voleibol no Japão, dirigido por um francês, parece um filme cansativo, não é? Procede, mas no sentido literal do adjetivo: ao ouvirmos as jogadoras idosas, hoje em dia, comentarem a rotina diária de trabalho matinal numa fábrica de algodão e treinos esportivos que começavam no período vespertino e iam até a madrugada, o espectador fica imediatamente cansado. Mas o filme é surpreendentemente delicioso!


Muitíssimo bem montado, dirigido e musicado, este relato sobre uma história de superação grupal incrivelmente pouco conhecida seduz-nos pelo modo esperto como concatena as imagens de desenhos animados celebratórios, imagens de arquivo dos eventos narrados, depoimentos contemporâneos e canções 'indie' maravilhosas, como "Machine Gun" (do Portishead) e "Honour When We Leave", composta especialmente para o filme por Jason Lytle, vocalista da banda Grandaddy. É difícil não se emocionar com a seqüência em que as jogadoras explicam os seus apelidos e com a tensão erigida durante a final das Olímpiadas de 1964. O modo agradecido com que elas referem-se ao rigoroso treinador Hirofumi Daimatsu [1921-1978] é absolutamente enternecedor. Mesmo quem não gosta de esportes pode lacrimejar sem culpa!


Oportunamente lançado num ano em que as Olímpiadas coincidiram de estar novamente sediadas em Tóquio (os jogos deveriam ter ocorrido em 2020, mas foram transferidos para 2021, mantendo o logotipo original), este documentário pode ser avaliado sob múltiplos primas: seja pelo viés exortativo da emancipação feminina, seja pelo elogio emocionado à capacidade de auto-reconstrução dos japoneses, após os ataques violentos durante a II Guerra Mundial. Pesquisador especializado no assunto, o diretor Julien Faraut torna mui aprazível e divertido o percurso documental. Torcemos juntos pelas garotas da fábrica e contentamo-nos ao percebê-las reunidas depois de tanto tempo, exercitando-se com vigor numa academia de ginástica e brincando com seus netos. Um vitorioso exemplo de reerguimento comunitário e uma poderosa demonstração de que a lógica desportiva vai muito além do que ocorre dentro das quadras! 


Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2021: UM FORTE CLARÃO (2021, de Ainhoa Rodríguez)


Filme-painel calcado pelo realismo mágico, esta obra deixa as suas intenções explícitas logo na abertura: uma vendedora de churros com deficiência intelectual grava uma mensagem telefônica para si mesma, em que, com extrema sobriedade, adverte-a que "um forte clarão ocorrerá e mudará tudo". Os espectadores ficam na expectativa, mas o ritmo do filme é muito lento: somos apresentados aos moradores de um pequeno vilarejo no interior da Espanha, onde as mulheres esforçam-se para libertar-se de suas rotinas aprisionantes. Recorrem à magia de que se serviam na infância e, como tal, são incompreendidas por seus parceiros e convivas. Antes as orgias aos suicídios!


Se a vendedora de churros é comumente assediada pelos homens bêbados da região, a despeito de seus problemas de comunicação, outra personagem foge de casa, a fim de libertar-se de seu esposo monotonamente opressor: numa cena mui inusitada, ela pede que ele lamba os fachos luminosos emitidos por um candelabro no quarto. "Tem sabor de quê?", pergunta ela. "De laranja", responde ele, enquanto adormece. Restará ao mesmo o desespero de ser entrevistado num programa sensacionalista de TV, onde suplica que sua amada retorne. O braço quebrado por causa da mesa que quebrou ao encontrar a sua carta de despedida demonstra que ela tinha razão em partir... 


Se os eventos desenvolvem-se de maneira mui plácida - e balizada pelas procissões e artefatos religiosos - a trilha musical utiliza efeitos eletrônicos e ruídos estranhos para acentuar que algo inusitado pode ocorrer a qualquer momento. E ocorre, de fato, mesmo que nem sempre vejamos. No instante mais explícito de imersão lisérgico-enfeitiçador, um grupo de senhoras refinadas experimentam um doce exótico de leite de cabra com mel e entregam-se a um sabá lésbico mui prazenteiro. O clarão transformador é a própria luz da tela, onde o filme está sendo projetado!


Wesley Pereira de Castro. 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

MOSTRA SP 2021: I COMETE - UM VERÃO NA CÓRSEGA (2021, de Pascal Tagnati)


Estruturalmente, esta obra possui vários pontos em comum com alguns filmes de Robert Guédiguian: muitos personagens numa mesma região, a ausência de um protagonista definido, situações sobremaneira dramáticas mas conduzidas de forma desdramatizada, trilha musical apenas diegética, sem algo que direcione a condução espectatorial... Vemos um grupo de pessoas interagindo num local famoso por suas belezas naturais e pelas riquezas acumuladas de alguns moradores. Demoramos a entender - quando conseguimos - as relações de parentesco e/ou afinidade existentes entre eles. Estranhamos os diálogos constantemente chulos, que acentuam o naturalismo da realização. Mas, mesmo assim, nem de longe funciona tão bem quanto em relação ao diretor cotejado: ao também ator Pascal Tagnati, falta pujança política, a escolha de um discurso direcionado a outrem. Ele apenas dispara ações inconseqüentes - muitas delas praticadas por crianças ou adolescentes. E daí?


O personagem com maior tempo em cena chama-se François-Régis (Jean-Christophe Folly) e, apesar de ser o único negro do local, não é hostilizado por conta disso. Pelo contrário, ouve calado as muitas manifestações racistas, homofóbicas, xenofóbicas e misóginas de seus amigos. Concorda com muitas delas, em verdade, principalmente quando, ao assumir-se burguês, alega que "seus peidos são mais cheirosos que os dos outros". Os dilemas recorrentes de seus convivas são banais. Exemplo: um deles morre de medo de ter um ataque cardíaco enquanto defeca; outro frustra-se ao constatar que os times de futebol europeu diferenciam-se pouco entre si atualmente; um terceiro passa quase todo o tempo chorando, provavelmente porque uma mulher o abandonou. E assim as subtramas paralelas avançam, por mais de duas horas!


Obviamente, o filme possui virtudes dignas de nota: a longa seqüência explícita em que Cindy (Maryse Miège) masturba-se num lago, diante do computador em que conversa com seu namorado à distância, é primorosa. Idem quanto aos dissabores românticos do jovem roqueiro Lisandru (Joseph Castelliti). Entretanto, é muito difícil acompanhar um enredo tão intencionalmente incoeso, sem que consigamos afeiçoar-nos aos personagens ou entender as suas motivações iracundas (vide o incêndio que mata um grupo de ovelhas). Talvez numa revisão, o filme seja mais interessante. Mas cadê motivação para conferi-lo novamente, depois do enfado inicial?! 


Wesley Pereira de Castro. 

 

MOSTRA SP 2021: MADEIRA E ÁGUA (2021, de Jonas Bak)


Tentar descobrir o que seria documental e o que seria ficcional num trabalho tão sensível como este seria uma tarefa vã - ou pior: implicaria em ignorar a grandiosidade sensorial do que o cineasta nos oferta, utilizando a sua própria família como moldura. Não se sabe qual o parentesco da protagonista com ele, visto que seu prenome não é pronunciado durante os diálogos, mas Anke Bak demonstra-se uma excelente atriz. Enquanto personagem, ela está com sessenta anos de idade e acaba de se aposentar. Vive na pacata Floresta Negra, na Alemanha, e costuma rezar diariamente, mas "nunca para que as coisas não aconteçam". Numa reunião familiar, ela sente falta do filho Maximilian, que vive em Hong Kong, e não pôde viajar por causa dos protestos políticos na região administrativa. Mesmo "não sendo um bom momento para viajar", ela dirige-se até lá, em busca dele. Hospeda-se no mesmo quarto, e espera... 


No processo de descoberta da cidade - muito diferente do lugar onde vive - Anke logo constata ser verdade o que os transeuntes lhe disseram: "as pessoas por aqui são muito gentis". Além de conseguir hospedar-se com facilidade (um quarto compartilhado, inicialmente, não é um problema), ela também encontra companhia para conversar enquanto almoça. Num dado momento, passa diante de uma manifestação de estudantes. A câmera prefere mostrar o seu olhar, o modo como ela depara-se com uma realidade completamente distinta da sua. Logo, ela estará experimentando uma máscara facial, a fim de proteger-se das contaminações viróticas em curso. Ainda que ela vá embora, não será mais a mesma: trata-se de um filme sobre o reencontro com si mesma, a partir de algo até então inaudito!


Musicado por Brian Eno e fotografado de maneira muito sensível por Alex Grigoras, as imagens e sons acentuam a impressão de solidão que pode ocorrer tanto em ambientes rurais quanto nas grandes metrópoles. Estamos diante de um testemunho do quão possível é encontrar beleza no mundo, através da interação com os seres humanos. Três momentos confirmam isso muito bem: a consulta médica na qual Anke descobre que sofre de depressão advinda da ansiedade; a conversa com o ativista social também aposentado que conhece quando resolve fazer uma consulta esotérica (e descobrimos, por extensão, o magnífico significado do título do filme); e a prática de Tai Chi Chuan, no desfecho. Um convite à meditação que não exclui o fervor participativo. Puro compartilhamento de aprendizados extrafamiliares!


Wesley Pereira de Castro. 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: PEGANDO A ESTRADA (2021, de Panah Panahi)


 Na seqüência de abertura, um garotinho toca piano nas teclas desenhadas no gesso que recobre a perna de seu pai: enquanto ele dedilha a figura, ouvimos os acordes. Com isso, fica estabelecido, desde o começo, que o diretor segue um caminho completamente distinto de seu pai, Jafar Panahi, apesar de ter realizado a montagem de "3 Faces" (2018). Se o pai é um hábil desenvolvedor da 'mise-en-abyme' no contexto metalingüístico persa, o filho assume o percurso lúdico. Tanto que, num dos diálogos deste filme mais recente, a mãe (Pantea Panahiha) pergunta ao seu filho mais velho qual o filme favorito dele. A resposta: "2001: Uma Odisséia no Espaço" (1968, de Stanley Kubrick) - e ele faz questão de descrever a meia-hora final da obra. A mãe começa a rezar. Mais à frente, o pai e o irmão mais novo deste rapaz cinéfilo mergulharão numa espécie de viagem interestelar, em pleno deserto... 


Apesar de ser magistralmente fotografado e de as comparações familiares serem desnecessárias, há algo confuso no desenvolvimento do roteiro: não compreendemos devidamente as situações - o que é muito comum no cinema iraniano - e lidamos com um entrecho inequivocamente ficcional, quase uma comédia familiar, com muitos xingamentos e reconciliações. O irmão mais velho (Amin Simiar) está prestes a fugir do país e está chateado por causa disso. Sua mãe sente falta antes mesmo que ele se vá, enquanto o pai (Hasan Majuni) comporta-se de maneira rabugenta durante a viagem. O irmão mais novo (Rayan Sarlak) é hiperativo, e não sabe que seu cachorro está doente. Quando os sentimentos afloram, as canções típicas ajudam os personagens a se expressarem!


Ao contrário da maioria dos cineastas de seu país, esse diretor estreante não obtém tanta dramaticidade dos encontros casuais - vide o diálogo pouco inspirado com um ciclista trapaceiro que o veículo da família atropela - mas o roteiro mostra aspectos mui definidores da contemporaneidade: são muitas as referências estrangeiras comentadas pelos personagens. O ciclista é fã de Lance Armstrong, a despeito das acusações de 'doping' que pesaram sobre ele, enquanto o garotinho é obcecado pelo Batman. Se nem todas as seqüências são efetivas na transmissão da emotividade, os dois números musicais contíguos que encerram o filme (um, muito alegre; outro, sobremaneira triste) merecem aplausos de pé. O filho ousa seguir seu próprio caminho, malgrado o sobrenome tão famoso e atrelado a expectativas de genialidade. Desengonçadamente, ele consegue! 


Wesley Pereira de Castro. 

Mostra SP 2021: OS INVENTADOS (2021, de Leo Basilico, Nicolás Linginotti & Pablo Rodríguez Pandolfi)


A idéia é muito boa: um retiro/oficina de interpretação, no qual os inscritos ficam tão imersos nos personagens que inventam para si mesmos que chegam a esquecer de quem são e ignoram quem desaparece ao redor. É uma sinopse que pode desencadear excelentes reflexões sobre o processo artístico e trazer embutidas algumas análises psicológicas sobre o que ocorre com os participantes de 'reality shows'. Entretanto, os três diretores preferem flertar com as convenções do suspense dramático e, ao optarem por este caminho, desperdiçam o potencial do roteiro, enquanto indutor de autodescobertas... 


Logo no começo, o idealizador deste retiro cita uma série de teorias teatrais, nas quais a busca pela entrega interpretativa completa é acompanhada de questionamentos sobre a própria realidade. "Há um telefone fixo na casa, para o caso de algum de vocês ter um ataque de esquizofrenia", complementa. Ao parecer o mais sóbrio dentre o quinteto de confinados, é justamente o protagonista quem parece esquizofrênico. E isso se deve muito à composição "privilegiada" de seu personagem, no sentido de que ele é o único que possui um passado compartilhado com os espectadores: imbuído das características chavonadas de um fracassado, ele é um ex-ator infantil que, após uma briga familiar, trabalha como atendente de telemarketing. É o clichê do solitário, do babaca carinhoso porém atrapalhado. E seu tratamento é visivelmente assimétrico em relação aos demais!


Interpretado por Juan Grandinetti, este personagem finge que é um dermatologista, de nome Matías, e compartilha morada com quatro pessoas que obedecem ao mais óbvio dos esquemas narrativos: alguém sobremaneira discreto, que é o primeiro a desaparecer; um rapaz excessivamente espirituoso porém inconveniente; uma mulher bem intencionada e tendente às bebedeiras; e a jovem mui simpática (vivida por Verónica Gerez) por quem ele está apaixonado antes mesmo de matricular-se nesta oficina de atuação. Segue-se uma cadeia de eventos previsíveis, até que algo não necessariamente surpreendente, mas positivo, acontece antes do desfecho. No letreiro final, o corolário: "não é casual que os agradecimentos ocupem a maior parte dos créditos. Muito obrigado à universidade pública, que nos uniu e demonstrou que tudo isso era possível". Que bom que, havendo o estímulo adequado - e os financiamentos decorrentes -, projetos acadêmicos como este ainda possam ser executados com confiança e zelo!


Wesley Pereira de Castro.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Mostra SP 2021: COISAS VERDADEIRAS (2021, de Harry Wootliff)


Baseado no romance de conotação erótica "True Things About Me", da autora galesa Deborah Kay Davies, este filme assume uma perspectiva equivocada logo no início: ao apresentar a protagonista Kate (Ruth Wilson) como uma funcionária relapsa e masturbadora compulsiva, o roteiro parece julgá-la (e puni-la previamente) através da maneira excessivamente pudica com que os corpos são filmados durante os coitos. O fato de ser dirigido por uma mulher justifica a cautela na exposição da nudez, evitando uma perspectiva fetichizada da sexualidade, mas a trama exige maior cumplicidade entre os seres e seus respectivos entrelaces sexuais: não há autenticidade no modo como são apresentadas as abundantes cenas lascivas, o que acentua a guinada psicótica da segunda metade do filme... 


Repetindo a mesma composição vilanaz - porém sedutora - que adotou em "The Souvenir" (2019, de Joanna Hogg), a ponto de parecer um decalque piorado, Tom Burke intimida desde a primeira aparição, tornando previsível a condução dos eventos. O que não desemboca na inverossimilhança, ao menos: sabemos o quanto histórias similares ocorrem diuturnamente, engendrando resultados bem menos emancipatórios do que aquele que é prometido no desfecho. É como se, após perceber que está aprisionada num relacionamento abusivo (ainda que sem violência física), como sua melhor amiga esforçava-se para lhe demonstrar, a personagem principal transmitisse um recado para quem identificou-se inicialmente com a sua carência afetiva: como dizem os chavões psicanalíticos vendidos aos borbotões hoje em dia, saúde mental é uma prioridade!


Costurando uma seqüência de situações caricatas, seja no que diz respeito à perseguição da funcionária por seu chefe antipático seja no que tange às acusações de "tarada" que ela ouve de paqueradores eventuais, o enredo deste filme dissipa um pouco de sua caretice após a demissão de Kate, de modo que o que ocorre na Espanha possui validade em sua exortação feminista (dançar daquela maneira ao som de "Rid of Me", de PJ Harvey, é uma declaração de libertação per si!). Isso não impede que os problemas e decepções continuem em evidência: que não saibamos o nome do personagem masculino, por exemplo - sendo que Kate teve acesso a todos os seus dados pessoais, mas prefere salvar o contato meramente como "loiro" - é mais um indicativo de como a trama parece julgar a personagem através dos pesadelos que ela experimenta. Felizmente, foi possível para todos mudar de idéia. Quem sabe o livro não é melhor?


Wesley Pereira de Castro. 

Olhar de Cinema: RIO DOCE (2021, de Fellipe Fernandes)


Para quem não conhece a conformação das regiões urbanas no Estado de Pernambuco, convém adiantar que o título deste filme faz menção ao bairro mais populoso da cidade de Olinda, onde vive o protagonista Tiago (interpretado com um olhar perenemente taciturno pelo 'rapper' Okado do Canal), o modesto trabalhador de uma loja de jogos eletrônicos com recorrentes dificuldades financeiras e uma persistente dor nas costas. Apesar disso, ele insiste em fazer horas extras, o que é desaconselhado por sua patroa (Mariah Teixeira). Como a energia elétrica de sua residência teve o fornecimento interrompido, entre outras dívidas em aberto, Tiago pede um arriscado empréstimo a agiotas, mas também precisa consertar a embreagem de sua motocicleta, passear com a filha pequena, lidar com a melancolia de seu aniversário de 28 anos... 


Percorrendo os espaços como se fosse uma bomba de sêmen e lágrimas prestes a explodir - que homem bonito, mas também tão triste! - Tiago é surpreendido pela visita de uma rapariga (Thássia Cavalcanti) que afirma ser sua irmã. De repente, descobre que seu pai esteve vivo até pouco tempo (contrariando o que alegara a sua mãe, ao longo de toda a sua existência) e que escondeu uma carta, onde havia uma fotografia dele, ainda na infância. Ao visitar a residência das irmãs, numa área privilegiada da cidade de Recife, Tiago enceta uma animada conversa com a babá da família, que morava na mesma região que ele. A luta de classes reserva os afetos para a periferia, onde acontecem os mais intensos encontros. Estes, porém, têm conseqüências!


O entrosamento entre Tiago e seus familiares recém-conhecidos é permeado por um forte desconforto, o que é confirmado pelos olhares preconceituosos de sua irmã mais velha, Catarina (Amanda Gabriel), que desaprova a conotação lúdica dos apelidos dos amigos dele. O roteiro é primoroso no modo como conduz os diálogos - vide a pujança sutil da cena em que Catarina pergunta se Tiago come carne, em sua primeira visita à casa; a situação envolvendo a conversão evangélica de uma vizinha, que precisa desfazer-se de suas queridas imagens de santos católicos; a anedota lombrada de uma prima de Tiago acerca do encontro com um peixe-boi fêmea; e a descrição pormenorizada dos surtos depressivos de Laura (Nash Laila), durante o período em que largou o Doutorado, na cidade de São Paulo. As canções que incidentalmente invadem o filme são providenciais: "A Loba", de Alcione, numa festa de aniversário na casa da mãe de Tiago; "Árvore", de Edson Gomes, numa malemolente versão 'cover' numa celebração de rua, em Olinda; e "Às Vezes, Dói Ser Forte", na voz do próprio Okado do Canal, que expõe fotos pessoais (e artísticas) ao longo da narrativa e durante os créditos de encerramento. É um filme sobre a beleza dos encontros e sobre o poder das memórias. Extraordinário em sua exaltação incisiva da simplicidade. O olhar final da filha de Tiago para a câmera - que, repentinamente, pára de segui-la - que o diga! 


Wesley Pereira de Castro.