Depois de ter recebido um Oscar por seu curta-metragem de estréia, "Bao" (2018), a diretora sino-canadense Domee Shi concebe mais uma trama sobre sufocamento materno, deixando evidentes as conotações autobiográficas de seus roteiros: aqui, a protagonista Meilin (dublada por Rosalie Chiang, na versão original) é uma adolescente prestes a menstruar e, portanto, "tornar-se mulher". Isso é metaforizado através de sua transformação num panda-vermelho, o que ocorre sempre que ela fica emocionalmente instável (enquanto indicativo de que está sofrendo de Tensão Pré-Menstrual) e que, na diegese, diz respeito a uma chaga familiar: todas as suas parentas passaram pelo mesmo processo, em razão de um pedido mágico realizado por uma ancestral ecologista...
Esse ponto de partida titular é apenas um pretexto para que sejam abordados os estratagemas discursivos do filme, que defendem a emancipação juvenil através da capacidade de gerenciar os próprios gastos e necessidades de consumo. O conflito instaurado entre Meilin e a sua mãe controladora (dublada por Sandra Oh) serve para referendar o quão válido é o anseio da garota em conseguir os ingressos para o concerto de sua banda favorita, obviamente desaprovada por sua mãe. Não obstante a trilha musical do filme ser composta pelo mui talentoso Ludwig Goränsson, são as letras intencionalmente chavonadas, escritas por Billie Eilish & Finneas O'Connell, que chamam a atenção pelo tom reiterativo: "tu queres aqueles sapatos? Tu queres aquela camiseta? Tu queres aquele carro? Tu queres aquela bolsa? Então, eu vou precisar que tu me convenças disso!", cantarolam os cinco membros da 'boy band' 4*Town, em "U Know What's Up"!
No clímax do filme, em que Meiling, sua avó e suas quatro tias precisam arrastar a mãe transformada num gigantesco ursídeo para o meio de um círculo ritualístico, os personagens entoam juntos uma canção da supracitada banda, misturada com um cântico tradicional chinês, demonstrando que tudo pode ser assimilado pelas fórmulas do Capitalismo. Ao longo da narrativa, a venda de brinquedos e fotografias possibilita a concretização dos anseios materiais da protagonista. O templo gerenciado pela mãe de Meiling é muito mais um provedor de sustento financeiro que um lugar de devoção religiosa (ainda que a garota comemore a vasta representatividade feminina em sua árvore genealógica). Tudo o que acontece é pretexto para que a "disneyficação do cotidiano" (entendendo-se por isso a fetichização vendável do mesmo), não sendo casual o espaço-tempo escolhido para o desenvolvimento enredístico: Toronto, 2002. Algo definitivo aconteceu à diretora nessa época!
Domee Shi utiliza a celeridade da animação para acertar as contas com as próprias rusgas de seu passado. Ao final, um dos cantores pergunta aos espectadores se eles querem fazer o mesmo, explicitamente. O tom acolhedor do roteiro (em que a memória dos indígenas exterminados na América do Norte é celebrada em sala de aula e um garotinho potencialmente homossexual é rapidamente aceito pelas amigas etnicamente diversificadas de Meilin) está concatenado à lógica inclusiva das empresas contemporâneas, havendo até consultores específicos para isso, conforme lemos nos créditos de encerramento. Os acontecimentos do filme são redundantes em seus truísmos etários: o que interessa é celebrar o discurso da emancipação comercial. Nem o pai de Meilin escapa à estandardização, sendo flagrado, na derradeira cena, ouvindo o álbum de 4*Town no porão de sua casa. A que vexame a Pixar submeteu-se!
Wesley Pereira de Castro.
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