A transcrição autobiográfica em livros ou filmes é uma tendência subgenérica acometida por uma ambigüidade essencial, no sentido de que os responsáveis por esse tipo de obra podem incorrer na condescendência ou no punitivismo em relação a fatos da própria vida. E, de fato, isso também ocorre neste filme, em que a diretora e roteirista - estreante em longas-metragens - projeta dramas pessoais na concepção da protagonista, vivida com corajosa entrega por Manoela Aliperti. Se os tormentos anoréxicos (e extensivamente depressivos) experimentados por ela asseguram a identificação com quem padece de transtornos semelhantes, pela intensidade com que são retratados, os elementos circundantes engendram a impressão oposta, o afastamento subjetivo, visto que os privilégios classistas da família em pauta podem desencadear interpretações malogradas, em âmbito político. Um ponto de partida interrogativo: por que o enredo faz tanta questão de reforçar que os eventos ocorrem durante a aplicação ministerial do Plano Real, de 1995 em diante? Considerando-se que a protagonista Liz é aburguesada, a insistência desse elemento histórico-econômico soa problemático em relação à fruição dramática do filme...
Apaixonada por Literatura e pelas artes em geral (e também por Matemática), Liz viaja para a Irlanda, a fim de realizar um intercâmbio estudantil pouco explorado nas interações posteriores, exceto no que diz respeito ao interesse platônico da protagonista por Lucas (Daniel Botelho). Sentindo-se malquista pelos colegas de classe, ao ganhar um caderno de seu pai (Eucir de Souza), Liz resolve redigir as suas inquietações, de trás para a frente, a fim de metonimizar um processo similar ao de transformação de lagarta em borboleta. Na narração em 'off' que conduz o filme, Liz confessa-se para este diário, a quem chama de "Pupa". Em sua precocidade adolescente, ela compara-se indiretamente a Anne Frank [1929-1945], mas seu pai faz questão de estabelecer uma distinção fundamental: "enquanto ela viveu sob a guerra, tu desfrutas de paz e abundância". Repentinamente Liz decide parar de comer, submetendo-se a uma rotina violenta de supressão alimentar, que causa-lhe também amenorréia, automutilações e os tiques involuntários. Isso faz com que ela distancie-se cada vez mais dos poucos amigos e da família. Muitas garotas passam por esse mesmo tipo de sofrimento juvenil, de modo que o filme goza de uma boa comunicação com este público-alvo. Entretanto, a falta de nuanças na apresentação dos personagens secundários - principalmente a mãe de Liz (numa interpretação deveras inexpressiva da mui talentosa Virgínia Cavendish) - expõe as múltiplas fraquezas do filme, que levam-nos a julgar a protagonista quase da mesma maneia cruel com que ela trata a si mesma!
Não ignorando a gravidade dos temas abordados, lamenta-se que a indefinição do enfoque narrativo prejudique a nossa empatia em relação à personagem principal. Na maioria das vezes, claro, torcemos para que ela se recupere, sendo dignos de menção os esforços apresentados no desfecho elíptico do filme, em que a personagem demonstra-se disposta à recuperação, alguns anos depois que os seus distúrbios são diagnosticados. Porém, a maneira passivo-agressiva com que ela se relaciona com as pessoas ao redor beira a inverossimilhança reconstitutiva, como quando, na Irlanda, Liz reclama que algumas brasileiras que estavam consigo no avião não são suas amigas ou na cena em que uma garota se oferece para assinar em um curativo em seu pulso. O comprometimento actancial da jovem atriz com a sua personagem é aplaudível, mas o processo de construção tramática da mesma é incoeso - para além do que é permitido pelo registro da rebeldia adolescente. Trata-se de um filme que merece ser aproveitado para finalidades terapêuticas, por causa da maneira acessível [leia-se: previsível] com que ele é montado, mas que talvez funcionasse melhor como trama seriada, em que os desleixos ideológicos (vide a maneira como a empregada doméstica da família é tratada) tornar-se-iam menos evidentes. Em conjunto com o 'site' sobre "realidade prejudicada" idealizado pela diretora, "Diário de Viagem" é exitoso nalguns objetivos, mas nem sempre se sustenta enquanto peça cinematográfica. Vale pelo esforço compartilhado: ainda que não sejam suficientes, boas intenções importam!
Wesley Pereira de Castro.
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