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sábado, 2 de novembro de 2024

CORINGA: DELÍRIO A DOIS (2024, de Todd Phillips)


O segmento de abertura deste filme - um breve desenho animado, concebido pelo francês Sylvain Chomet, intitulado "Eu e Minha Sombra" - é bastante efetivo ao distanciar este segundo capítulo do anterior: além de resumir a trama, em viés simbólico, ele traz à tona a questão da disassociação de personalidade, fundamental para se curtir o musical ora apresentado, em viés depressivo e sumamente melancólico. Ao invés do pretenso denuncismo social do prévio enredo com o atormentado protagonista, temos agora um potente estudo de personagem, que atingirá em cheio quem já experimentou a solidão que ele tenta desesperadamente sufocar... 

Para que "Coringa: Delírio a Dois" (2024) seja efetivo em seu contato com o público, convém desvencilhá-lo radicalmente do personagem dos quadrinhos: Arthur Fleck (magnificamente interpretado por Joaquin Phoenix, mais uma vez) não é o Coringa arqui-inimigo do Batman, mas um dentre vários Coringas possíveis, a depender das expectativas de quem está frustrado com as condições hodiernas das instituições sociais. E, neste sentido, a patricinha filha de médico e pós-graduada em Psicologia que se apaixona por Arthur - apenas quando maquiado - também não é a infame Arlequina, mas uma delirante imitadora, mais uma fetichista na conjuntura espetaculosa dos julgamentos criminais. 


Em sua exposição inclemente de um manicômio que maltrata impiedosamente os seus internos, o diretor Todd Phillips introduz Arthur Fleck como aprisionado num inferno que só lhe permite algum respiro quando ele adere à insanidade: seja quando ela surge de maneira inevitável, enquanto conseqüência dos maus tratos que experimentou ao longo de toda a vida, e que encontra na Música, e na paixão, algum bálsamo; seja quando ela é manipulada, a fim de obter o apoio de parte indignada da opinião pública, que é chantagista, e só ficará ao lado de Arthur Fleck se ele obedecer à tipificação que eles projetam. Por isso, ainda na fase inicial de sua paixonite, o protagonista percebe que o afeto de sua amada não é tão recíproco ou inabalável quanto ela faz imaginar... 


É a deixa para que elogiemos a ambigüidade compositiva de Lady Gaga, como a alucinada Lee Quinzel, deveras funcional naquilo que a fez ser escalada enquanto coadjuvante: a sua impressionante potência vocal e a fascinante esquisitice de sua beleza. Os números musicais em que ela contracena são deveras efetivos na crítica ao 'showbiz', do qual é ela uma criação acachapante. Por isso, quanto mais a narrativa avança, mais Arthur Fleck canta sozinho, culminando no doloroso instante em que, nos créditos finais, ouvimos ele entoar os versos merencórios de "True Love Will Find You in the End", de Daniel Johnston, depois de ser esfaqueado por um interno (Connor Storrie), chateado porque o mito anárquico erigido no primeiro filme revelou-se um ser humano fraco - porque essencialmente humano -, destroçado por uma paixão que acaba bruscamente. Tem como ser mais sintomático que isso, no que tange à adesão de alguns votantes à extrema-direita?


Inevitavelmente irregular, em suas duas horas e dezoito minutos de duração, "Coringa: Delírio a Dois" conjuga as convenções de um musical neurastênico com o típico filme de tribunal, havendo a aguardada cena em que Arthur Fleck dispensa a advogada (vivida por Catherine Keener) que, por algum motivo, o defendia de maneira abnegada. O dramático interrogatório do personagem Gary Puddles (Leigh Gill) é um dos pontos altos do julgamento - tanto quanto a entrevista com o cínico apresentador de TV vivido por Stevie Coogan -, mas são as cenas de (des)amor que tornam este filme marcante: o instante em que Arthur pede que Lee conduza o ato sexual, já que ele é praticamente virgem; quando ela confessa-se grávida; quando ele deixa-lhe uma mensagem na secretária eletrônica (cantarolando "If You Go Away", versão em inglês para a antológica "Ne Me Quitte Pas", de Jacque Brel); e o diálogo próximo ao final, quando ela o dispensa, na escadaria que ela fingiu ter atravessado na juventude, a fim de conquistar seu objeto idealizado de desejo (o Coringa, não Arthur). Temos, aqui, um filme sumamente incompreendido e, como tal, vitimado pelo mesmo tormento que aflige o seu protagonista! 



Wesley Pereira de Castro. 






quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

OS MISERÁVEIS ('Les Misérables') Inglaterra, 2012. Direção: Tom Hooper

O primeiro aspecto que ascende criticamente quando nos dispomos a analisar esta versão heteróclita da obra literária de Victor Hugo (1802-1885), adaptada diversas vezes para o cinema, é a sua dúbia configuração enquanto espetáculo (no sentido debordiano do termo): segundo o autor situacionista francês, um dos aspectos trifasicamente característicos do espetáculo é que ele é, ao mesmo tempo, “parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada”.

Confirmando o acerto do aforismo de Guy Debord, por mais descritiva que seja a trama literária original no que tange à exposição minuciosa da miserabilidade dos habitantes parisienses do início do século XIX e da injustiça régio-legislativa que se impõe sobre eles, tudo neste filme é convertido em pretexto para que sejamos melodramaticamente enlevados pelas extraordinárias canções de Herbert Kretzmer, Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, em que o amor ao próximo (inclusive em seu caráter namorativo) é erigido como instância máxima de redenção, a ponto de, ao final, ser declarado que “amar outro ser humano equivale a ver a face de Deus”.

 Por mais desmesuradamente ideológica que seja a sua concepção espetaculosa, esta versão musical de “Os Miseráveis” destaca-se positiva e arrebatadoramente por suas qualidades intrínsecas e, ainda que não possa ser devidamente comparada ao livro original no caso de uma inacessibilidade provisória, sobressai-se num cotejo com as principais adaptações cinematográficas do mesmo, tendo como principal elemento dignificador não apenas a surpreendente fidelidade aos eventos descritos na trama que lhe deu origem (com algumas alterações fundamentais, como, por exemplo, as condições do encontro entre o protagonista Jean Valjean e a personagem infantil Cosette) mas também a sua adesão hipertrofiada ao celebrado romantismo do autor francês, aqui convertido na exuberante extensão de uma célebre peça musical executada com êxito comercial na Broadway ao longo de várias décadas.

 E, por mais que não faltem alvos problemáticos no filme, ele consegue ser otimamente notabilizado, visto que “Os Miseráveis” é um filme que nos obseda lacrimosamente e permite-nos vivenciar a glória de “um coração cheio de amor”, conforme cantarola alguns dos personagens do filme: caso ele tivesse sido dirigido por alguém mais consciente do poderio de suas contradições elementares, seria a obra-prima espetacular que tenciona ser em mais de um instante!

 Por motivos óbvios, a análise crítica deste filme deve levar sobretudo em consideração as convenções do gênero musical ao qual ele se submete e se converte muitíssimo bem, tendo conseguido desempenhos sobressalentes de um elenco não habituado a cantar: por mais que, de fato, a interpretação de Russel Crowe esteja aquém do que é desempenhado por seus colegas, a composição do personagem Javert é tão complexa em seu distanciamento da categoria inflexível de vilão que, pelo menos na execução da canção “Stars”, o ator neozelandês impressiona pela dramaticidade de sua inflexão; Amanda Seyfried também padece de um desempenho inferior aos demais, visto que a personagem Cosette é mal-delineada tramaticamente, mas ela é funcional quando inserida em diálogos cancionais, como, por exemplo, na magistral interação entre diversos intérpretes contida na excelente “One Day More”; Hugh Jackman declina musicalmente em um ou outro instante, mas seus desvios são rigorosamente compensados por sua incrível entrega actancial enquanto Jean Valjean, cuja efígie sofre transmutações profundas em cada fase de sua vida, o que justifica encômios não apenas para sua atuação como também para o impressionante trabalho de maquiagem do filme, também exitoso nas aparições de Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, bastante divertidos como os estalajadeiros furtadores que cuidam de Cosette na infância e que instauram um questionamento determinista de classe (a subsunção ao crime) no contexto revolucionário celebrado pelos amigos de Marius (Eddie Redmayne, magnífico). Se Aaron Tveit (Enjolras), o pequeno Daniel Huttlestone (Gavroche) e os demais entusiastas de um ataque direto ao poder constituído pelo novo governo francês erigido após a Revolução Francesa impressionam pela fidedignidade compositiva de seus papéis, esta configuração subtramática instaura a necessidade de alguns comentários adicionais.

 A extensão dos aspectos concernentes à insurreição popular mostrada neste filme em relação a outras versões cinematográficas do mesmo romance torna deveras suspeitosa a adaptação roteirística de William Nicholson (a partir do libreto composto pelos já citados autores das canções) e as opções directivas de Tom Hooper (que, apesar da opulência do filme, é tímido na demonstração de seus méritos como encenador): quais seriam os interesses que justificaram o deslindamento desta intensiva conclamação política num filme coadunado à sua delimitação enquanto espetáculo vendável? Por mais que a adesão do eu-lírico da trama ao idealismo de Enjolras pareça entusiástico (o modo sublime com que ele é focalizado ao morrer, com uma imensa bandeira vermelha estendendo-se diante de seu corpo dependurado numa janela demonstra bem isso), o sufocamento pela polícia do levante populacional contra as autoridades parisienses instiga o espectador a questionar as intenções reconstitutivas deste evento histórico, malfadado na práxis por causa da falta de colaboração dos habitantes que estavam sendo justamente defendidos pelas intenções libertárias do grupo revolucionário.

 O interessante, entretanto, é que não apenas tal suspeição é constatada no filme como também pelo filme, já que um dos momentos mais empolgantes do mesmo é a execução dialogística da canção “Red and Black”, cujas cores simbólicas do socialismo e do anarquismo são ressignificadas pelos personagens, quando a intensidade da devoção política imperativa de Enjolras e seus companheiros, que associam o vermelho ao “sangue dos homens revoltosos” e o preto à “escuridão de uma era que tende a ser derrubada”, suplantam o desejo e o desespero eróticos com que o deslumbrado Marius insistia em ressaltar o fulgor passional pela inócua Cosette. Enquanto contraponto a esta situação, a construção desencantada da maravilhosa personagem Eponine (Samantha Barks, soberba ao confessar o seu amor plangente por Marius em “On My Own”), muito menos ambígua que em qualquer uma das suas aparições noutros filmes, deixa patente que, para esta versão da obra, os lampejos afetivos anteriormente abarcados num contexto generalizado de luta emancipatória são mais importantes em sua individualização, o que justifica internamente o retorno pretensamente inquestionado de Marius à classe social privilegiada de onde proveio e em relação à qual demonstrava publicamente a sua rejeição.

Nesse sentido, as festividades aristocráticas do conchavo amoroso entre ele e Cosette só não são tendenciosas acerca da regressão política do filme porque o próprio personagem tem evidenciada a sua fraqueza militante em mais de um instante, não sendo casual o emocionado pedido de desculpas aos amigos mortos na excepcional execução de “Empty Chairs at Empty Tables”, momento mais pungente e auto-elucidativo de todo o filme, que, na contramão das demais versões, torna o personagem Jean Valjean coadjuvante de sua própria história.

 Finalmente, vale observar que, tanto na emocionante versão dirigida por Richard Boleslawski em 1935 quanto na insossa condensação tramática conduzida por Bille August em 1998 – sem esquecer a medíocre incursão de Lewis Milestone [“O Implacável” (1952)] e a ampliação metalingüística de Claude Lelouch [“Os Miseráveis” (1995), em que o romance original é citado intradiegeticamente num cotejo com as aflições de humanos bondosos durante a II Guerra Mundial] – a perseguição de Jean Valjean pelo legalista Étienne Javert é o aspecto dominante da trama, ao passo em que, na adaptação cinematográfica comandada por Tom Hooper, a perspectiva fílmica é compartilhada por mais de um personagem, malgrado se possa reclamar que as aparições da sofrida Fantine sejam demasiado reduzidas. Ainda assim, Anne Hathaway desempenha o seu papel com tamanha garra e emotividade (sua interpretação para “I Dreamed a Dream” é tão insigne quanto a sua coadjuvação sutil em “At the End of the Day” e no epílogo um tanto sobrenatural sobre a definitiva redenção de Jean Valjean) que ela domina o filme quando está em cena, ainda que apareça efetivamente pouco nos 158 minutos de projeção do filme.

A imponência vocal do já elogiado Eddie Redmayne, a aparição breve porém comovente de Colm Wilkinson como o bispo que resgata Jean Valjean no início do filme e as vigorosas demonstrações de amizade constantes entre os revolucionários em canções como “ABC Café” e “Drink With Me” são manifestações conspícuas da grandiosidade de “Os Miseráveis”, grandiosidade esta que é tanto sedutora quanto responsável pela desconfiança de muitos exegetas perante as suas exigências mercadológicas enquanto produto cultural, visto que, ainda que as mesmas não sejam escondidas, disfarçam-se comodamente sob uma eloqüência emocional perigosa em sua insistência espetaculosamente hipnótica.

Apesar de toda a capciosa inflexão política verificada no prolongamento do terço final dos eventos narrados no romance, esta versão da saga escrita por Victor Hugo prefere as lágrimas devaneadoras e individualizadas à tomada de partido em prol das barbaridades cometidas contra os cidadãos aglomerados em multidões reclamantes (efeito adotado pelo filme desde a sua impactante abertura ao som de “Look Down”). Ainda assim, ele é bastante exitoso enquanto filme musical, correspondendo a uma das melhores e mais vigorosas encenações do gênero – ao menos, em termos hollywoodianos – do ainda emergente século XXI. Que atire o primeiro seixo condenatório quem nunca chorou (e cantou) por amor...

 Wesley Pereira de Castro.