O primeiro aspecto que ascende criticamente quando nos dispomos a analisar esta versão heteróclita da obra literária de Victor Hugo (1802-1885), adaptada diversas vezes para o cinema, é a sua dúbia configuração enquanto espetáculo (no sentido debordiano do termo): segundo o autor situacionista francês, um dos aspectos trifasicamente característicos do espetáculo é que ele é, ao mesmo tempo,
“parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada”.
Confirmando o acerto do aforismo de Guy Debord, por mais descritiva que seja a trama literária original no que tange à exposição minuciosa da miserabilidade dos habitantes parisienses do início do século XIX e da injustiça régio-legislativa que se impõe sobre eles, tudo neste filme é convertido em pretexto para que sejamos melodramaticamente enlevados pelas extraordinárias canções de Herbert Kretzmer, Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, em que o amor ao próximo (inclusive em seu caráter namorativo) é erigido como instância máxima de redenção, a ponto de, ao final, ser declarado que
“amar outro ser humano equivale a ver a face de Deus”.
Por mais desmesuradamente ideológica que seja a sua concepção espetaculosa, esta versão musical de “Os Miseráveis” destaca-se positiva e arrebatadoramente por suas qualidades intrínsecas e, ainda que não possa ser devidamente comparada ao livro original no caso de uma inacessibilidade provisória, sobressai-se num cotejo com as principais adaptações cinematográficas do mesmo, tendo como principal elemento dignificador não apenas a surpreendente fidelidade aos eventos descritos na trama que lhe deu origem (com algumas alterações fundamentais, como, por exemplo, as condições do encontro entre o protagonista Jean Valjean e a personagem infantil Cosette) mas também a sua adesão hipertrofiada ao celebrado romantismo do autor francês, aqui convertido na exuberante extensão de uma célebre peça musical executada com êxito comercial na Broadway ao longo de várias décadas.
E, por mais que não faltem alvos problemáticos no filme, ele consegue ser otimamente notabilizado, visto que “Os Miseráveis” é um filme que nos obseda lacrimosamente e permite-nos vivenciar a glória de “um coração cheio de amor”, conforme cantarola alguns dos personagens do filme: caso ele tivesse sido dirigido por alguém mais consciente do poderio de suas contradições elementares, seria a obra-prima espetacular que tenciona ser em mais de um instante!
Por motivos óbvios, a análise crítica deste filme deve levar sobretudo em consideração as convenções do gênero musical ao qual ele se submete e se converte muitíssimo bem, tendo conseguido desempenhos sobressalentes de um elenco não habituado a cantar: por mais que, de fato, a interpretação de Russel Crowe esteja aquém do que é desempenhado por seus colegas, a composição do personagem Javert é tão complexa em seu distanciamento da categoria inflexível de vilão que, pelo menos na execução da canção “Stars”, o ator neozelandês impressiona pela dramaticidade de sua inflexão; Amanda Seyfried também padece de um desempenho inferior aos demais, visto que a personagem Cosette é mal-delineada tramaticamente, mas ela é funcional quando inserida em diálogos cancionais, como, por exemplo, na magistral interação entre diversos intérpretes contida na excelente “One Day More”; Hugh Jackman declina musicalmente em um ou outro instante, mas seus desvios são rigorosamente compensados por sua incrível entrega actancial enquanto Jean Valjean, cuja efígie sofre transmutações profundas em cada fase de sua vida, o que justifica encômios não apenas para sua atuação como também para o impressionante trabalho de maquiagem do filme, também exitoso nas aparições de Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, bastante divertidos como os estalajadeiros furtadores que cuidam de Cosette na infância e que instauram um questionamento determinista de classe (a subsunção ao crime) no contexto revolucionário celebrado pelos amigos de Marius (Eddie Redmayne, magnífico). Se Aaron Tveit (Enjolras), o pequeno Daniel Huttlestone (Gavroche) e os demais entusiastas de um ataque direto ao poder constituído pelo novo governo francês erigido após a Revolução Francesa impressionam pela fidedignidade compositiva de seus papéis, esta configuração subtramática instaura a necessidade de alguns comentários adicionais.
A extensão dos aspectos concernentes à insurreição popular mostrada neste filme em relação a outras versões cinematográficas do mesmo romance torna deveras suspeitosa a adaptação roteirística de William Nicholson (a partir do libreto composto pelos já citados autores das canções) e as opções directivas de Tom Hooper (que, apesar da opulência do filme, é tímido na demonstração de seus méritos como encenador): quais seriam os interesses que justificaram o deslindamento desta intensiva conclamação política num filme coadunado à sua delimitação enquanto espetáculo vendável? Por mais que a adesão do eu-lírico da trama ao idealismo de Enjolras pareça entusiástico (o modo sublime com que ele é focalizado ao morrer, com uma imensa bandeira vermelha estendendo-se diante de seu corpo dependurado numa janela demonstra bem isso), o sufocamento pela polícia do levante populacional contra as autoridades parisienses instiga o espectador a questionar as intenções reconstitutivas deste evento histórico, malfadado na práxis por causa da falta de colaboração dos habitantes que estavam sendo justamente defendidos pelas intenções libertárias do grupo revolucionário.
O interessante, entretanto, é que não apenas tal suspeição é constatada no filme como também pelo filme, já que um dos momentos mais empolgantes do mesmo é a execução dialogística da canção “Red and Black”, cujas cores simbólicas do socialismo e do anarquismo são ressignificadas pelos personagens, quando a intensidade da devoção política imperativa de Enjolras e seus companheiros, que associam o vermelho ao “sangue dos homens revoltosos” e o preto à “escuridão de uma era que tende a ser derrubada”, suplantam o desejo e o desespero eróticos com que o deslumbrado Marius insistia em ressaltar o fulgor passional pela inócua Cosette. Enquanto contraponto a esta situação, a construção desencantada da maravilhosa personagem Eponine (Samantha Barks, soberba ao confessar o seu amor plangente por Marius em “On My Own”), muito menos ambígua que em qualquer uma das suas aparições noutros filmes, deixa patente que, para esta versão da obra, os lampejos afetivos anteriormente abarcados num contexto generalizado de luta emancipatória são mais importantes em sua individualização, o que justifica internamente o retorno pretensamente inquestionado de Marius à classe social privilegiada de onde proveio e em relação à qual demonstrava publicamente a sua rejeição.
Nesse sentido, as festividades aristocráticas do conchavo amoroso entre ele e Cosette só não são tendenciosas acerca da regressão política do filme porque o próprio personagem tem evidenciada a sua fraqueza militante em mais de um instante, não sendo casual o emocionado pedido de desculpas aos amigos mortos na excepcional execução de “Empty Chairs at Empty Tables”, momento mais pungente e auto-elucidativo de todo o filme, que, na contramão das demais versões, torna o personagem Jean Valjean coadjuvante de sua própria história.
Finalmente, vale observar que, tanto na emocionante versão dirigida por Richard Boleslawski em 1935 quanto na insossa condensação tramática conduzida por Bille August em 1998 – sem esquecer a medíocre incursão de Lewis Milestone [“O Implacável” (1952)] e a ampliação metalingüística de Claude Lelouch [“Os Miseráveis” (1995), em que o romance original é citado intradiegeticamente num cotejo com as aflições de humanos bondosos durante a II Guerra Mundial] – a perseguição de Jean Valjean pelo legalista Étienne Javert é o aspecto dominante da trama, ao passo em que, na adaptação cinematográfica comandada por Tom Hooper, a perspectiva fílmica é compartilhada por mais de um personagem, malgrado se possa reclamar que as aparições da sofrida Fantine sejam demasiado reduzidas. Ainda assim, Anne Hathaway desempenha o seu papel com tamanha garra e emotividade (sua interpretação para “I Dreamed a Dream” é tão insigne quanto a sua coadjuvação sutil em “At the End of the Day” e no epílogo um tanto sobrenatural sobre a definitiva redenção de Jean Valjean) que ela domina o filme quando está em cena, ainda que apareça efetivamente pouco nos 158 minutos de projeção do filme.
A imponência vocal do já elogiado Eddie Redmayne, a aparição breve porém comovente de Colm Wilkinson como o bispo que resgata Jean Valjean no início do filme e as vigorosas demonstrações de amizade constantes entre os revolucionários em canções como “ABC Café” e “Drink With Me” são manifestações conspícuas da grandiosidade de “Os Miseráveis”, grandiosidade esta que é tanto sedutora quanto responsável pela desconfiança de muitos exegetas perante as suas exigências mercadológicas enquanto produto cultural, visto que, ainda que as mesmas não sejam escondidas, disfarçam-se comodamente sob uma eloqüência emocional perigosa em sua insistência espetaculosamente hipnótica.
Apesar de toda a capciosa inflexão política verificada no prolongamento do terço final dos eventos narrados no romance, esta versão da saga escrita por Victor Hugo prefere as lágrimas devaneadoras e individualizadas à tomada de partido em prol das barbaridades cometidas contra os cidadãos aglomerados em multidões reclamantes (efeito adotado pelo filme desde a sua impactante abertura ao som de “Look Down”). Ainda assim, ele é bastante exitoso enquanto filme musical, correspondendo a uma das melhores e mais vigorosas encenações do gênero – ao menos, em termos hollywoodianos – do ainda emergente século XXI. Que atire o primeiro seixo condenatório quem nunca chorou (e cantou) por amor...
Wesley Pereira de Castro.