quinta-feira, 7 de outubro de 2010

GENTE GRANDE ('Grown Ups') EUA, 2010. Direção: Dennis Dugan

Se John Hughes ainda estivesse vivo e realizasse um filme sobre a maturidade etária de seus personagens, como seria o tipo de humor adotado nesta produção hipotética? O interessantíssimo roteiro de Fred Wolf e do protagonista Adam Sandler responde muito bem a esta pergunta, contando com atuações surpreendentemente maduras de um elenco acostumado a um estilo humorístico tão escatológico quanto epidérmico. Em “Gente Grande”, para nosso sobressalto, as poucas limitações actanciais ficam a cargo de David Spade, que está irritante como o solteirão Marcus Higgins, o que talvez seja um efeito proposital, que dignifica minimamente a sua função contrastante à seriedade inaudita e benfazeja dos ótimos personagens de Adam Sandler (Lenny), Chris Rock (Kurt), Kevin James (Eric) e, principalmente, Rob Schneider (Rob), que tinha tudo para recair numa interpretação caricata, mas dota seu personagem de uma verossimilhança escandalosa.

Não é por acaso, portanto, que, graças a um insulto descontrolado deste último personagem que a ótima Joyce van Patten (intérprete de Gloria, sua esposa hiponga e envelhecida) profere aquela que talvez seja a moral do filme: “do amor, vem a hostilidade”, apelo delicado à tolerância e às concessões maritais que encontra eco na convencional seqüência do jogo de basquete, que surpreende por inverter positivamente esta moral (ou seja, da hostilidade, também pode vir o entendimento) ao mostrar o protagonista errando de propósito uma enterrada a fim de permitir que seus rivais socialmente desintegrados possam ganhar ao menos um jogo em suas vidas. Quando perguntado por sua esposa sobre o porquê de ter feito isso, a resposta é taxativa: “eles precisavam ganhar ao menos uma vez. E nossa família tem que aprender a perder um pouco”. Tal qual acontecia nos bons tempos hughesianos, Hollywood voltou a enfrentar com delicadeza indisfarçada a inevitável luta de classes travestida em nostalgia. Ao final da sessão, portanto, mesmo estando diante de uma comédia que beira o pastelão, o espectador que beira os trinta anos de idade se sente tentado a derramar uma ou duas lágrimas de identificação...


A fim de que a dramaticidade elogiosa do filme pudesse ser efetivada, alguns aspectos também caros ao estilo hughesiano foram de vital importância, como o flerte com subgêneros cômicos consagrados, a observação percuciente dos costumes tipicamente norte-americanos e a trilha sonora coerente. Com exceção do pleonástico acompanhamento sonoro de Rupert Gregson-Williams, a seleção de canções deste filme é composta primordialmente por faixas setentistas ou oitentistas de bandas de ‘rock’ que, com certeza, eram apreciadas pelos personagens, merecendo destaque as execuções mui pertinentes de “Escape (The Piña Colada Song)” (de Rupert Holmes, clássico ‘kitsch’ que é reproduzido quando as belas filhas de Rob entram em cena) e de “Stan the Man” (composta e emocionalmente interpretada pelo próprio Adam Sandler durante os créditos finais, e cuja letra emula bem o clima consolador do filme).

No que tange à observação minuciosa da configuração hodierna e internamente problemática do ‘american way of life’, não somente esta última canção citada é pertinente, como a descrição de algumas cenas esquematicamente críticas e comicamente bem-sucedidas: a apresentação da abastada família Feder, quando vemos os filhos de Lenny enviarem torpedos de celular à babá da família, pedindo que a mesma traga-lhes chocolate quente; as reações de espanto que tomam os personagens sempre que o caçula da família Lamonsoff insiste em mamar no peito de sua mãe, aos quatro anos de idade; o riso não-contido quando Rob canta “Ave Maria” de forma histriônica no funeral de seu treinador de basquetebol; a graciosa seqüência em que a rica e hispânica Roxanne Chase-Feder (Salma Hayek) desiste de viajar para a Itália quando percebe que seus filhos estão a brincar no lago pela primeira vez; e o hilário momento em que os cinco amigos de adolescência são flagrados urinando numa piscina. Porém, a análise estendida de duas outras seqüências é ainda mais relevante no plano defensável da sinceridade enredística e micro-sociológica deste filme.


Num momento central do reencontro entre os amigos, eles resolvem participar de um jogo que consiste em atirar uma flecha para cima e depois verificar quem permaneceria por mais tempo no local em que a mesma iria cair. Enquanto o personagem de Rob Schneider queda-se no centro, orando, os demais personagens correm em várias direções, em câmera lenta e, aos poucos, passam a ser vitimados por quedas espalhafatosas (um deles bate num tronco, outro cai de cabeça num amontoado de fezes, etc.), sendo que a flecha finalmente atinge o pé do personagem que permanecera parado, ao passo em que o espectador era conduzido a se preocupar com um cachorro abandonado entre os cinco amigos. Apesar de ser destinada a provocar gargalhadas de um público acostumado a este tipo de riso humilhante, esta seqüência demorada extravasa a dificuldade em manter-se fiel a uma dada tendência genérica no atabalhoado cinema atual. Num momento posterior, vemos os personagens estendendo uma bandeira estadunidense à contraluz (afinal, é 4 de julho!) e o personagem de Adam Sandler aproveita a oportunidade para pedir à sua filha que liberte um pássaro convalescente, dizendo que este seria o momento ideal para celebrar a liberdade do mesmo, discurso este que não soa de todo pedante, ao contrário do que sói acontecer com qualquer citação democrática no cinema após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Com apenas estas duas seqüências-chave, “Gente Grande” promulgaria um regresso benévolo à simplicidade temática dos velhos tempos, mas ele é ainda mais agradável e comovente em seus 102 minutos de projeção...


Apesar de seus evidentes defeitos (a saber, a já citada trilha sonora redundante de Rupert Gregson-Williams, a forçação de barra envolvendo a doçura da pequena Alexys Nycole Sanchez e a incômoda presença em cena, intra e extra-diegeticamente, de David Spade), “Gente Grande” possui virtudes tão efetivas e em franco e lamentável desaparecimento no atual gênero cômico hollywoodiano que o diretor Dennis Dugan merece ser aqui redimido dos péssimos exemplos morais que levara a cabo em filmes como “O Pestinha” (1990), “Um Maluco no Golfe” (1996) ou “O Paizão” (1999) e ser merecedor de atenção redobrada em filmes sinopticamente espirituosos – mas ainda não-vistos – como “Mulher Infernal” (2001), “Eu os Declaro Marido e... Larry” (2007) e “Zohan – O Agente Bom de Corte” (2008).

Um elogio sincero e repetido deve ser direcionado ao roteiro, que evita os clichês do gênero com louvor (tudo bem, os flatos e infecções podológicas da sogra do personagem de Kurt são uma exceção!) e consegue emocionar o espectador de forma inesperada, num filme que, se olharmos bem, é até discreto diante da responsabilidade grandiloqüente a que se submeteu: retratar os ‘kidults’ como sendo conseqüências de um contexto socioeconômico irregularmente bem-sucedido, que tem na própria configuração sistemática e empresarial deste tipo de filme – do qual o protagonista é mais do que um simples alter-ego – um dos principais culpados.

Wesley Pereira de Castro.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

NOSSO LAR. Brasil, 2010. Direção: Wagner de Assis.

Existe uma crônica de Akira Kurosawa em que este conceituado diretor japonês vale-se das especulações de seu neto infantil sobre a similaridade do cachorro da família com vários animais (mas que, afinal de contas, parece mesmo com um cachorro!) para defender que, apesar de mesclar características concernentes às demais artes, cinema é sempre Cinema, por mais tautológica que esta (in)definição pareça.

Pois bem, diante de “Nosso Lar”, os questionamentos advindos de tal confusão conceptual assumem a gravidade de um oxímoro: o que é realmente um filme? Onde termina um aspecto fílmico e começa o discurso religioso propagandístico? É lícito adotar este tipo de questionamento numa crítica cinematográfica genérica? Um cotejo imediato com experiências mais gritantes no plano ideológico-discursivo – a saber, o cinema socialista soviético das décadas de 1920 e 1930 e os filmes anti-semitas produzidos sob o jugo do ministro alemão Joseph Goebbels – possibilita que identifiquemos nesta mais recente superprodução da Globo Filmes um grave déficit técnico-narrativo: se aqueles beneficiavam-se de ricas experiências envolvendo montagem de fotogramas ou decodificação simbólica de metáforas preconceituosas, respectivamente, este peca pela completa subsunção à doutrina kardecista, repleta de contradições discursivas que, para além de serem credíveis ou não, esbarram na acepção mais essencialmente bíblica do termo dogma, entendido como sendo uma explicação mitológica para as dúvidas eternas da Existência, ostensivamente embasada em lacunas incapazes de serem julgadas pelos esquemas científicos tradicionais.

Em outras palavras: “Nosso Lar” é um filme que vai de encontro a ideais pretensamente analíticos de apreciação cinematográfica, relacionados ao arcabouço referencial do espectador e à sua disponibilidade em acompanhar uma simples estória humana, e depende justamente da apreciação subjetiva e aderente do mesmo aos caracteres dogmáticos ali apresentados. Não quer ser filme, quer ser doutrina. E isto é, definitivamente, um problema!


No plano narrativo primário, “Nosso Lar” conta a história real (ou assim apresentada como tal) do médico André Luiz (Renato Prieto), que falece devido a complicações cardíacas e acorda num umbral para pecadores, onde é submetido a todo tipo de provações e sofrimentos, até ser resgatado por figuras iluminadas, que o conduzem ao recanto curativo do título, um paliativo celestial em que as almas dos falecidos aguardam o momento de reencarnarem na Terra, enquanto amadurecem seus desígnios morais e aprendem a esquecer as pendências de vidas passadas.

Se o roteiro do próprio diretor, baseado num livro comercialmente bem-sucedido psicografado pelo médium Chico Xavier, estivesse efetivamente focado nesta condução tramática, o filme seria assaz interessante e entretido, mas, no plano narrativo secundário (e dominante), frases de efeito enaltecendo o kardecismo são despejadas segundo após segundo, muitas vezes associadas a contradições gritantes e racionalmente inaceitáveis. Senão, vejamos: se as almas que estão voluntariamente confinadas no paraíso reconstituído no filme abandonam quaisquer resquícios de suas vidas anteriores, porque permanecem com seus formatos terrenos no local representado?

Se a vida na Terra é que é uma “cópia” daquele lugar, porque os hospitais precisam ser identificados com placas que indicam o número da ala em que os internos se encontram? Se, oficialmente, o conhecimento teológico é onisciente e a bondade é universalmente disseminada, qual a necessidade de tantos sub-ministérios ou de tantas minúcias burocráticas no retorno para a Terra ou na comunicação com os parentes mortos ou ainda vivos? Talvez estas respostas dependam de uma profissão de fé que transcende – e muito! – as especificidades desta resenha.


Apesar de a direção de arte ser um digno chamariz e de a trilha sonora de Philip Glass adotar os acordes ‘in crescendo’ que o tornaram célebre e atrelado a um estilo facilmente reconhecível de composição erudita, a direção do filme é frouxa, o roteiro é infiel aos seus próprios parâmetros e o elenco é ruim, não porque os atores assim também o sejam, mas porque estes mais recitam uma planilha moralizante do que efetivamente atuam, visto que eles comportam-se como se estivessem num púlpito midiático e não num cenário cinematográfico.

No que tange à demonstração destes defeitos, um exemplo singular permite a fácil constatação: quando André Luiz chega a Nosso Lar, ele é obrigado a ficar completamente dependente das respostas e admoestações concedidas pelo diligente Lísias (Fernando Alves Pinto, numa das poucas interpretações inicialmente convincentes do filme), bastante firme em suas pregações, aliás, mas, quando a mãe deste último (vivida por Ana Rosa, convincente como de costume) emigra novamente para a Terra, é ele quem depende do auxilio consolador e aconselhador de André.

Porém, vários são os clichês bem-aventurados que saturam este filme, dado que podemos enumerar também: a pletora suspeita, oportunista e não necessariamente inclusiva, de ícones religiosos na sala do Governador (Othon Bastos), a estereotipia indumentária dos judeus que chegam a Nosso Lar depois que são mortos por causa da II Guerra Mundial, a impostação supra-caridosa e xaroposa que satura os pronunciamentos vocais dos personagens e a montagem um tanto equivocada – em razão de seu pretenso julgamento avaliativo de caráter – entre os vários estágios da(s) vida(s) de André Luiz.


Para além, portanto, da modorra ou do bem-estar de recepção narrativa que este filme possa causar a diferentes tipos de espectadores, é patente no mesmo o desejo de convertê-los ao espiritismo e não somente mantê-lo entretido por 102 minutos. Ou seja, apesar de ser virtuoso em mais de um aspecto relacionado à sua própria constituição cinematográfica (fotografia, linearidade enredística, trilha sonora), “Nosso Lar” não ultrapassa seus direcionamentos hagiográficos forçosos e, como tal, soçobra esteticamente em razão de sua assunção extremada de propósitos. Pena... Mas, definitivamente, é mui válido (e carente de observação cuidadosa) enquanto tentativa!

Wesley Pereira de Castro.

sábado, 2 de outubro de 2010

O ÚLTIMO EXORCISMO ('The Lst Exorcism') EUA, 2010. Direção: Daniel Stamm

Para além de ser um filme bom ou ruim (e ele é quase unanimemente péssimo), “O Último Exorcismo” é um filme que escancara uma crise. Uma crise que, na verdade, é um somatório de várias crises globalizadas e manifesta-se no cinema enquanto estertor ideológico, tendo em “A Vila” (2004, de M. Night Shyamalan) o seu pólo positivo e neste filme mais recente o nadir decadente. Dizendo de outra forma: ambos os filmes abordam um tema similar, os questionamentos metalingüísticos acerca da necessidade que alguns indivíduos demonstram no que tange à retroalimentação de um medo sentido por algo que, oficialmente, não deve causar medo, por ser esquemático e artificial, mas, ainda assim, não somente causa como é também repassado a outrem. E, por desafiar até mesmo as convenções mais descaradas da irracionalidade, este medo estimulado com base em artifícios devidamente anunciados serve a interesses específicos de uma classe em voga ou de algum indivíduo em posição de poder, que assim visa manter a sua superioridade simbólica embasada no terror.

Se, em “A Vila”, a manutenção deste poderio simbólico estava atrelado aos anseios de uma comunidade de intelectuais traumatizados com o excesso de violência urbana que, como tal, forjam a existência de violentas entidades que circunvizinhavam o vilarejo propositalmente anacrônico em que residiam a fim de impedir que as gerações futuras desvendem a farsa utópica que engendrou a construção do reduto, em “O Último Exorcismo”, as intenções são bem menos nobres. São vergonhosamente oportunistas, aliás, tanto na forma quanto no conteúdo, o que torna imprescindível uma avaliação mais detida e, pelo caráter avassaladoramente formulaico do filme, paralelamente dispensável.


Tal qual acontecera em sucessos recentes de bilheteria como “A Bruxa de Blair” (1999, de Daniel Myrick & Eduardo Sánchez), “Mar Aberto” (2005, de Chris Kentis), “[REC]” (2007, de Jaume Balagueró & Paco Plaza) e “Atividade Paranormal” (2007, de Olen Peli), para ficar em apenas quatro exemplos conhecidos, “O Último Exorcismo” pretende extrair seu charme da simulação aterrorizante de que as imagens videográficas apresentadas enquanto filme seriam reais. Ao contrário dos quatro exemplos mais célebres, porém, “O Último Exorcismo” é uma lamentável coleção de equívocos. Para começar, a opção por ceder a “narração” do filme a um religioso que duvida de sua própria fé, transmitida para ele através de gerações, faz com que suspeitemos de imediato dos intentos anticlericais tendenciosos do roteiro, que, à medida que se aproxima do final, mostra-se mais e mais crédulo e subserviente aos ditames supersticiosos que fingiu combater no início, ao caracterizar o exorcista como sendo um homem espirituoso e com habilidades de prestidigitador, sendo que a evidenciação de alguns destes truques durante o processo de catarse psicológica das farsas exorcizantes revelam-se como alguns dos aspectos mais contraditórios e efetivamente falhos do filme. Contraditórios porque abrem espaço para o absoluto desbunde narrativo que se manifesta na meia-hora final, e efetivamente falhos porque, apesar de se mostrarem uma ótima idéia no momento em que o revoltado Caleb (Caleb Landry Jones) percebe que o reverendo Cotton Marcus (Patrick Fabian) pusera alguma substância que fez a água de uma bacia ferver quando entra em contato com os pés da suposta endemoniada Nell (Ashley Bell), chafurdam na inverossimilhança (leia-se traição) formal do próprio estilo supra-realista a que o filme pretendia se vincular. Afinal de contas, se o filme primava pela fidedignidade videográfica, para que a montagem esquemática entre causasefeitos e a execrável trilha sonora climática de Nathan Barr se dispuseram à sabotagem exibicionista constatada em cenas-chave desta obra ridiculamente desleixada? Para quê?!


Ainda que as atuações do elenco soem bastante firmes – com exceção da pusilânime Iris (Iris Bahr) – a equipe técnica de “O Último Exorcismo” recicla/plagia da pior forma possível os estratagemas já clicherosos deste tipo de produção, conforme se percebe em cenas simplesmente inverossímeis e vergonhosas como aquela em que Iris é freneticamente perseguida pela câmera quando corre no motel em que Nell repentinamente aparece ou toda a visualmente impressiva seqüência final (ponto para a fotografia de Zoltan Honti!), que imputa chavões ritualísticos/premonitórios de clássicos do cinema como “O Bebê de Rosemary” (1968, de Roman Polanski) ou “A Profecia” (1976, de Richard Donner). Além disso, a cena em que Iris doa suas botas vermelhas estilosas para a retraída Nell, a lascívia pretensamente demoníaca (e lésbica) que Nell demonstra quando surge no quarto de motel e a entrevista com “um rapaz obviamente ‘gay’”, acusado de engravidar a rapariga possuída, são mais alguns dos momentos desagradáveis e ideologicamente suspeitos deste filme ostensivamente partidário, que seja ao cúmulo de inserir o símbolo da anarquia entre os ícones satânicos que são pintados nas paredes da residência da família Sweetzer.


Em linhas gerais, portanto, “O Último Exorcismo”, francamente desinteressante enquanto cinema, revela-se (mas não necessariamente assume-se) como uma tentativa mentirosa e monetifágica de Hollywood em estrebuchar genericamente a fim de manter cativa e voluntariamente aliciada a fatia juvenil de seu público-alvo amplificado e desmemoriado no que diz respeito ao abarrotamento de fórmulas enredísticas entupidas de gritos e acordes musicais agudos, fatia de público esta que chega a se demonstrar incomodada quando é surpreendida por alguma reviravolta mais inventiva, contentando-se apenas com os sobressaltos somáticos dos sustos fáceis.

Exposta a consciência deste incômodo, fica aqui um dilema irresolvível: a culpa estaria somente nas mãos de técnicos politicamente medíocres como este tal de Daniel Stamm ou dos roteiristas Huck Botko & Andrew Gurland ou é impossível atribuir a culpa a alguém, dada a situação calamitosa do contexto aluído de produção e recepção pretensamente hipodérmica das ramificações incontroláveis do que conhecemos como Indústria Cultural? Eu que não me atrevo mais a aprisionar-me nesta falácia interrogativa de conformismo apocalíptico!

Wesley Pereira de Castro.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

A ORIGEM ('Inception') EUA/Inglaterra, 2010. Direção: Christopher Nolan.

A construção de um roteiro pontuado incessantemente por termos técnicos de acentuado hermetismo profissional e a adoção de uma montagem excessivamente elíptica que finge linearidade através de uma trilha sonora contínua entre seqüências passadas em ambientes espaço-temporais distintos são os dois principais estratagemas de Christopher Nolan para fisgar os espectadores, que não raro saem das sessões de seus filmes sentindo-se atordoados, tendendo a confundirem o sobejo de informações fílmicas ainda não processadas pelo cérebro e/ou pelos sentidos com a recepção de uma suposta genialidade directiva.

Neste filme, o diretor-roteirista não age diferente de como agiu noutras obras, mas o que se distingue aqui é uma maior assunção destes componentes fundamentais de seu presunçoso estilo, assunção esta que não chega a interferir na recepção estupefata daqueles que já se programaram para saírem assim da sessão. Ou seja, “A Origem” está repleto de “atos falhos” propositais, minuciosamente condizentes com o pretendido clima onírico e metalingüístico do filme, que é novamente evocado nos créditos finais, quando a canção interpretada por Edith Piaf que é convertida em “chute” para que os dormentes acordem de seus sonhos provocados é convenientemente executada, de forma a “trazer de volta à realidade” o público pagante deste filme.

Dentre os “atos falhos” supracitados, a trilha sonora de Hans Zimmer é o aspecto que mais se destaca, não necessariamente por sua qualidade musical (muito boa, como de praxe), mas por se configurar como um elemento amplamente sabotador do clima onírico, no sentido de que, até onde se sabe, não existe trilha sonora em sonhos. Assim sendo, a coesão entre imagens perpetrada pelos acordes ‘in crescendo’ de Hans Zimmer nos clímaxes do filme torna-se um elemento negativo do mesmo, deixando evidente o que ele tem de mais problemático: as cenas de ação incessante, que tendem a desperdiçar o rigor elaborativo da direção de arte, tanto no interior da diegese quanto fora dela. Em outras palavras: a entrada em cena da personagem Ariadne (interpretada com o desdém característico e convincente de Ellen Page) é deveras funcional tanto como pretexto especializado para justificar as concepções superlativas de engenharia de que o filme se vale como enquanto elemento instaurador de uma leiguice forçada por parte do espectador, que assim deslumbrar-se-á mais facilmente com o imediatismo e celeridade com que os diálogos entre a equipe do Sr. Cobb (Leonardo DiCaprio, correto apenas) serão travados.

A utilização pertinaz do termo funcional, inclusive, deixa entrever que, neste filme, o diretor e roteirista é ainda mais explícito em sua rejeição dos caracteres filosófico-existenciais possivelmente associados ao tema da extração e/ou infiltração de sonhos e fia-se no utilitarismo empregatício dos aperfeiçoamentos técnicos levados a cabo pelos personagens, o que explica o porquê da ausência de qualquer conflito ideológico, político ou moral sobre o emprego destas técnicas na disputa de interesses mercadológicos ansiada por Saito (Ken Watanabe). Convém ao Sr. Cobb apenas realizar com destreza o serviço para o qual foi contratado e ao espectador apenas desejar que ele consiga realizar o sonho de penetrar novamente nos EUA e rever seus filhos. A confusão mental indiciada pelo personagem de Cillian Murphy na cena do desembarque do avião é irrelevante para os interesses do filme.

A ausência de julgamentos morais sobre o comércio de idéias implantadas em mentes alheias denota um decréscimo qualitativo no que tange à coerência até então demonstrada pelo roteirista Christopher Nolan no que se refere à construção psicológica de seus personagens, aqui apresentados de forma mecânica, ao contrário do vigor criminal ou proto-religioso que pululava em obras interessantíssimas como “Amnésia” (2000), “Insônia” (2002) e, venhamos e convenhamos, “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008). Os únicos personagens no filme que são dotados de um rigor construtivo melhor esboçado são o transmutador Eames (Tom Hardy) e o quase onipresente Arthur (Joseph Gordon-Levitt), cujos talentos estão em flagrante competição e correspondem, sem dúvida, ao melhor atributo humano do filme. A gradual revelação da loucura de Mal (Marion Cotillard, caricata), ao contrário, é o aspecto mais clicheroso e desenxabido do roteiro, que peca ao adotar uma contestação chinfrim do conceito de realidade numa trama em que o mesmo é sublocado de forma tão potencialmente intelectual. Nesse sentido, a longa seqüência alternada entre um veículo que cai no rio em câmera lenta, a diligência de Arthur em proteger seus companheiros adormecidos de equipe num contexto agravitacional e os dois subníveis oníricos em que Cobb e Ariadne se infiltram a fim de penetrarem mais a fundo no subconsciente do milionário Robert Fischer merece encômios pelo modo como consegue fisgar o espectador (no sentido mais hitchcockiano do termo), mas, ainda assim, faz com que sejam patentes os defeitos tipicamente hollywoodianos anteriormente destacados.

Comparando-se “A Origem” com a pletora de filmes descerebrados de ação que são lançados anualmente por Hollywood, há de se convir que Christopher Nolan deve ser destacado pela sagacidade tramática e por suas habilidades firmes enquanto condutor cinematográfico, mas o que falta neste filme constitui um atestado deletério de suas intenções entreguistas, rigorosamente coadunados com os propósitos empresariais hodiernos, que ostentam de forma tão sedutora as suas realizações e assim obtêm êxito na supressão de seus rejeitos poluentes.

No caso do filme em pauta, elenco, diretor/roteirista, montador, músico e demais componentes da equipe técnica destacam-se com louvor na aplicação funcional de suas proezas pragmáticas, mas, subjacente à boa sensação de deslumbramento de sentidos que o filme instaura, ele é acrítico em relação aos questionamentos que provoca, antecipando uma nova demarcação genérica da ficção científica contemporânea [em que “Matrix” (1999, de Andy & Larry Wachowski) e “Avatar” (2009, de James Cameron) seriam os exemplos mais famosos], na qual os favorecimentos da inoculação informativa imediata de informações cerebrais seriam louvados no enfrentamento de embates falaciosos entre antagonistas incapazes de serem definidos como “maus” ou “bons”. E isto é sempre algo com que devemos não apenas nos preocupar, mas, principalmente, nos defender...

Wesley Pereira de Castro.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

O GOLPISTA DO ANO ('I Love You, Phillip Morris') EUA, 2009. Direção: Glenn Ficarra & John Requa

“Papai Noel às Avessas” (2003, de Terry Zwigoff), filme anteriormente roteirizado pelos diretores-roteiristas do filme ora analisado, apresenta o mesmo problema dominante que este em relação à sua apreciação receptiva/distributiva: a indefinição do tom moral que se sobrepõe à narrativa. Ou seja, se naquele filme havia um personagem voluntariamente marginalizado que, obrigado a enfrentar situações humanitariamente dignificantes, é privado pelo roteiro de sua propensão à regenerabilidade, o mesmo acontece neste filme mais recente, em que o personagem real biografado é anunciado como terminantemente confinado numa prisão durante os letreiros que antecedem os créditos finais. Entretanto, em relação ao filme dirigido por Terry Zwigoff, a estréia como diretores de Glenn Ficarra & John Requa beneficia-se de um detalhe qualitativo basilar, maravilhosamente destacado no título original do filme: a coerência emocional que permeia toda a trajetória de erros do protagonista.

Ou seja, por mais que as várias facetas de Steven Russell fossem pautadas pela execução progressiva de mentiras, conforme reclama o remetente Philip Morris, ele realmente amava este personagem e, como tal, o filme se sobressai como uma das mais inusitadas e irreverentes declarações de amor do cinema atual. O fato de esta declaração de amor ser correspondente a um romance homossexual é um detalhe brilhantemente normalizado pelo roteiro, que se beneficia de três estratégias geniais: primeiro, fazer questão de frisar que, não obstante haver uma radical mudança de comportamentos por parte do protagonista em relação à sua transmutação de marido heterossexual para golpista “bicha”, esta mudança comportamental é motivada bem mais pela assunção de uma tendência sexualista demonstrada desde a infância do que necessariamente por um pantim retratador; segundo, construir as práticas sexuais do protagonista e seus eventuais parceiros como sendo deveras naturalizadas, até mesmo em situações consideradas ofensivas para o público comum, como associar a ingestão de esperma depois de uma felação a uma declaração de afeto; e, terceiro, dissociar a estereotipia crível de alguns personagens da tendenciosa legitimação de preconceitos que pode ocorrer através do humor, visto que os roteiristas eram não somente plenamente cônscios de que isso poderia acontecer, como são plenamente fiéis à representação dos personagens, no sentido de que é plenamente sabido que a afetação exacerbada é, de fato, a característica mais perceptível na postura de alguns ‘gays’.


A inteligência sobressalente da seqüência que deixa explícito este terceiro estratagema merece uma descrição pormenorizada, em virtude não somente de seus potenciais narrativos básicos, mas também porque é a maior ferramenta discursiva contra espectadores precipitadamente acríticos que tendem a tachar o filme de “homofóbico”, quando ele opera justamente pela lógica inversa: a normalização impressionante dos comportamentos sexuais supostamente pervertidos dos personagens. Se eles são julgados como desviantes, isso se deve a rupturas legislativas bem mais amplas, que trazem novamente à tona a indefinição de tom moral destacada no início deste texto e que voltará na conclusão do mesmo.

Mas, antes, regressemos à descrição da cena que se configura como a mais importante para a interpretação discursivamente laudatória deste filme: num dado momento, o protagonista Steven Russell, já trabalhando como consultor financeiro de uma grande empresa, conta a uma secretária um chiste anedótico envolvendo um advogado qualquer que cobra uma grande quantia para que seu cliente possa-lhe fazer três perguntas, sendo este último lesado até mesmo neste direito numérico básico. Em seguida, vemos a mesma piada ser recontada por diversos outros personagens figurantes, até que, após várias versões levemente modificadas da mesma piada, vemos Steven Russell ouvir a mesma estrutura cômica que difundira ser-lhe devolvida pelo patrão com uma diferença crucial: os dois interlocutores da piada eram agora um negro e um judeu, ambos tipos humanos caracteristicamente vitimados por preconceitos humorísticos alheios. Detalhe: depois que acompanhamos este longo processo de demonstração de como o humor aparentemente inofensivo serve para ofender determinadas configurações humanas, descobrimos que a transmissão inicial desta blague tinha uma função deveras pragmática: distrair a secretária que a ouvia para que, assim, Steven Russell pudesse usurpar um carimbo que lhe seria bastante útil em suas futuras tramóias. Perfeito! Só esta cena preciosa justificaria todo o bem-estar intelectivo que o filme causa, mas ele é bem mais (e também menos) do que isso...


Como intérprete do protagonista real e inicialmente incredível em sua concepção, Jim Carrey não oferece uma atuação necessariamente ruim ou careteira (como estão a reclamar em alguns artigos). O maior problema de sua interpretação é um desgaste natural da figura do ator, que parece mais velho do que o personagem em diversos momentos, mas, mesmo assim, ele é bastante elogiável tanto nas cenas que amontoam inúmeros de seus golpes surpreendentes quanto naquelas em que ele evidencia o amor que sente por seu antigo companheiro de prisão. Rodrigo Santoro (que vive o antigo namorado aidético do protagonista, Jimmy) e Leslie Mann (que interpreta sua ex-esposa histericamente religiosa Debbie) têm desempenhos exagerados, mas também condizentes com o clima concomitantemente esquizofrênico e verossímil que permeia o filme, onde Ewan McGregor destaca-se pela construção detalhada, minuciosa e louvável do objeto frasal titular, Phillip Morris, numa atuação não somente ótima como também contrastante, no melhor sentido do termo, com a euforia reinante no enredo. A timidez de seu personagem, portanto, funciona como um bálsamo bem-vindo ao frenesi típico da presença em cena do dinâmico Jim Carrey, chegando ao píncaro da eficiência compositiva no empertigado percurso que ele enfrenta a fim de se despedir de seu namorado ao som de “To Love Somebody” (cantada na voz sofrida de Nina Simone), numa cena que emociona qualquer um que tenha se deixado levar pela sinceridade redentora do envolvimento romântico entre os dois.


Np plano técnico, portanto, direção, roteiro, trilha sonora, fotografia e montagem coligam-se muito bem no afã por divertir o público, ao mesmo tempo em que apresenta uma fábula amoral tipicamente contemporânea, realmente impressionante para ser verídica, conforme os letreiros de abertura fazem questão de frisar. Entretanto, conforme já foi anunciado, há um problema de tom geral sobre os juízos de valor destinados ao protagonista, que prejudica a sua apreensão relaxada enquanto um mero filme.

Se, por um lado, o decisivo julgamento do protagonista, aquele que o manteve peremptoriamente preso por pelos menos 23 horas diárias a uma cela, é criticado como sendo dominando por interesses vergonhosos pessoais de membros do júri, a separação física definitiva dos dois apaixonados ganha ares socialmente preventivos demasiado oportunistas, o que impede que, mais do que classificar este filme num dado gênero distributivo específico, não saibamos se ele serve mais aos ímpetos libertinos do cinema independente ou ao conservadorismo pseudo-embaçado por breves concessões temáticas que impera no dominante cinema de estúdios. Este pode parecer um problema menor – e é até interessante que assim pareça – mas limita os vôos ideológicos mais arrojados que este filme poderia alçar, mas deve-se ficar bem claro que isto não é um empecilho para o inusitado bem-estar que ele causa, tanto no plano do entretimento quanto da dignidade personalística: por mais estranho que pareça, as pessoas aqui retratadas são mostradas como reais, até mesmo em situações absurdas ou socialmente proibitivas. E, num contexto em que qualquer simples ato cômico pode retroalimentar um preconceito, isto é digno de menção elogiosa extra-filmica!

Wesley Pereira de Castro.

domingo, 20 de junho de 2010

O ESCRITOR FANTASMA ('The Ghost Writer' - Alemanha/França/Inglaterra, 2010) Direção: Roman Polasnki

Num dos primeiros encontros que trava com o personagem real que ajudará a autobiografar, o protagonista afirma que, em sua narração, este deve destacar os fatos mais românticos de sua vida, visto que “os leitores se identificam com situações que evocam o coração”. Ao se pensar na biografia do diretor Roman Polanski, esta dramaticidade pretendida não tem como ficar em segundo plano: perseguido pelos nazistas durante a infância, testemunha do assassinato público de sua esposa grávida em 1969, acusado de pedofilia no final da década de 1970 e preso na Suíça em 2009 por este mesmo crime do passado, a vida pessoal do diretor polonês é sempre permeada pela polêmica e pela necessidade de fuga, o que explica os temas recorrentes do confinamento ostensivo e da claustrofobia instituída em sua obra absolutamente autoral.

Cada um de seus filmes, seja ele de qualquer gênero ou produzido em qualquer época, traz no bojo um protagonista perseguido pela culpa, não necessariamente comprovada, que, como tal, precisa executar medidas extremas para declarar sua inocência ou permanecer íntegro diante de situações-limite. No filme ora analisado, muito superior em qualidade e autenticidade ao longa-metragem anterior do diretor [“Oliver Twist” (2005)], o que mais surpreende é como o roteiro, escrito pelo próprio diretor e por Robert Harris (autor do livro que deu origem ao filme), mescla com sagacidade denuncista elementos que já foram trabalhados em obras como “O Inquilino” (1976), “Busca Frenética” (1988) e “O Último Portal” (1999), a fim de metaforizar emoções persecutórias que têm a ver com o mal-estar público do cineasta. Nesse sentido, as opressões xenofóbicas tangenciais, o perene desconforto advindo da constatação de que não se pode mais confiar em ninguém e as ambíguas exigências profissionais da carreira de escritor são circunstâncias fílmicas que só dignificam esta obra, asfixiante ao extremo, que deposita no espectador uma impressão de desconforto pretendido tão eficaz quanto aquela que pulula nas obras-primas literárias escritas pelo tcheco Franz Kafka. Comparando-se, portanto, os componentes tramáticos do filme com as fortes divergências hermenêuticas envolvendo o julgamento do diretor acerca do crime que cometera há mais de 30 anos, não tem como não se perguntar: diante dos interesses oportunistas de políticos corruptos e influentes, ainda é possível depositar confiança nas representações estatais de poder?


No plano directivo, Roman Polanski é digno de elogios pela agilidade que instaura no ritmo frenético do filme, de maneira que, se por vezes ele parece mais extenso do que os 128 minutos de sua duração, isso se dá justamente pelo efeito bem-sucedido de dilatação temporal decorrente da sensação de perseguição que acomete o protagonista durante toda a sua estada na ilha em que se passa o enredo, sensação esta que manifesta-se tanto no coincidente disparar de alarmes na cena em que o protagonista tenta descobrir a senha que protege o conteúdo de um arquivo de computador quanto na observação dos automóveis à espreita quando ele se locomove de um local para outro, passando também pelos estranhos contatos que ele trava com a população local, como os empregados chineses da residência de seu patrão britânico, a atendente solitária do hotel em que se instala e o velhinho (magnificamente interpretado pelo lendário Eli Wallach) que lhe confessa as incongruências de um assassinato encoberto sabe-se lá por quem.

O único desvio rítmico digno de destaque no filme diz respeito justamente ao final, que parece um tanto precipitado, tamanha a cautela com que foram construídos os eventos prévios à sua execução. Algo soa forçado na bazófia vingativa do protagonista quando este escreve um bilhete para Ruth Lang (Olivia Williams, muito mais imponente do que de costume), anunciando que descobrira um importante acróstico preparado por seu antecessor empregatício, e logo é atropelado quando tentava fugir com o manuscrito original das memórias do ex-primeiro-ministro inglês, a fim de descobrir novos mistérios escondidos em códigos de escrita naquelas páginas. Talvez o filme não precisasse desta cena de impacto fácil para se manter significativo em seu potencial de suspense, como efetivamente já o fazia até então. Mas, venhamos e convenhamos, até este é um mal menor.


No plano técnico, merecem destaque a extraordinária trilha sonora de Alexandre Desplat, que pontua muito bem o estado contínuo de aflição do protagonista, e a direção de fotografia eficiente do colaborador habitual dos filmes recentes do cineasta, Pawel Edelman. Encabeçando o elenco, Ewan McGregor oferece uma atuação contida muito condizente com os anseios de discrição do personagem, enquanto Pierce Brosnan desempenha o seu papel com perdoável estardalhaço, Kim Cattrall o faz com firmeza engenhosidade de coadjuvante e Tom Wilkinson impõe-se nos poucos minutos em que contracena como o enigmático professor universitário Paul Emmett. Algumas das cenas mais intrigantes do filme, porém, dão-se entre o protagonista e Olivia Williams(que interpreta a esposa do ex-primeiro-ministro), personagens que fazem sexo num contexto atribulado e muito tenso, depois de travarem um contundente diálogo em que, quando ele pergunta a ela porque a mesma nunca foi uma candidata política de verdade, ela retruca, imponentemente: “e tu, por que nunca foste um escritor de verdade?”. A ele, só resta apenas emitir uma interjeição de descontentamento impotente e permitir que a mesma divida a cama com ele.


Analisando-se o filme como portador de mensagens subliminares em relação às insatisfações do diretor e de seus fãs ao modo como são conduzidos os inquéritos de acusação contra ele, pode-se dizer que o mesmo é deveras exitoso em seus intentos. Não somente “O Escritor Fantasma” diverte bastante enquanto ‘thriller’ e enquanto filme político, como o mesmo pode ser interpretado por vários vieses para quem conhece a fundo as idiossincrasias e obsessões temáticas do seu realizador, que, conforme visto, sabe lidar muito bem, no plano artístico, com a tragicidade ostensiva de sua vida real. As divergências de princípios morais entre o protagonista e seus empregadores numa das seqüências iniciais, o mistério crescente das motivações políticas dos personagens que transitam em torno do ex-primeiro-ministro Jack Lang (Pierce Brosnan), a própria assunção do mesmo em relação aos crimes de guerra que cometera e as tramóias militares que emergem à medida que a trama se desenvolve são elementos que deixam a nu os intentos questionadores e críticos do filme, que vão muito além de sua argúcia genérica no patamar cinematográfico, o que, seja dito novamente, o filme faz com presteza admirável. Tanto é que só se percebe que o protagonista é inomeado depois que o filme acaba e ele supostamente está morto.

No auge de seus 76 anos de idade e enfrentando fortes restrições no seu direito de ir e vir, Roman Polanski, realiza, portanto, um arrojado filme de autor no costumeiramente formulaico panorama anglofílico hodierno de cinema. Que venham outros!

Wesley Pereira de Castro.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

QUINCAS BERRO D'ÁGUA(Brasil, 2010). Direção: Sérgio Machado

Um dos comentários mais generalizados sobre este filme é o de que o ator Paulo José insistiu em estar presente em todas as situações em que seu personagem morto estaria em cena, salvo duas situações de perigo em que, obviamente, seria necessária a utilização de um boneco, a fim de preservar a integridade física do ator. Tal atitude revela que este dedicado intérprete estava preocupado com um detalhe essencial do roteiro: o de que a perspectiva condutiva dominante acerca do mesmo seria justamente a do cadáver, algo que, infelizmente, nem sempre pôde ser respeitado pelo diretor e roteirista Sérgio Machado, que comete um dos pecados mais recorrentes nos filmes da Globo Filmes locados em cidades nordestinas: convidar atores do sudeste brasileiro para vivificarem pessoas que falam com sotaques demasiado carregados, o que, para além dos méritos actanciais dos profissionais envolvidos, descaracterizam a configuração local dos personagens, conforme acontece aqui com Mariana Ximenes, que desempenha um papel importante – venhamos e convenhamos, em contraponto reflexivo com o protagonista – mas tem sua presença hipertrofiada pelos produtores, que vêem na mesma um chamariz publicitário que o filme poderia muito bem dispensar, tamanho o entrosamento peculiar que atores menos conhecidos como Irandhir Santos e Frank Menezes demonstram em relação ao público, envolvendo prioritariamente o carisma carnavalesco dos baianos constantes do elenco.

Em outras palavras: o filme funciona bastante quando Paulo José está comentando sua própria trajetória de vida ou proferindo julgamentos morais nas cenas em que não está presente (visto que sua condição de morto protagonista valida a onisciência narrativa), mas as situações protagonizadas pelos demais coadjuvantes, muito numerosos – sejam na residência de Vanda, seja no terreiro da mãe Ana – falham pela precariedade concatenadora, o que não se constata, por sua vez, no bordel de Manuela, tamanha a argúcia de Marieta Severo como a espanhola que comanda o recinto e que, quando tenta se matar tomando vários comprimidos de magnésia (sem que soubesse a composição química dos mesmos), passa uma tarde inteira no banheiro, crise diarréica esta que rende um dos vários ditados populares consagrados em diálogos do filme; “cada um chora por onde sente mais saudade”. Surge aqui, outro aspecto importante na análise do filme: o modo como o mesmo se vale de dizeres característicos do povo baiano (e nordestino como um todo), o que nos leva a prestar ainda mais atenção na configuração pretensamente localista do filme.


Se o diretor Sérgio Machado goza de um bom currículo prévio enquanto diretor de um documentário sobre Mário Peixoto (ainda não-visto), alguns bons episódios da série de TV a cabo “Alice” e o sincero longa-metragem “Cidade Baixa” (2005), neste novo filme ele não parece desfrutar de liberdade criativa suficiente para explorar as nuanças soteropolitanas que tão bem conhece e que chamaram a atenção dos críticos em suas obras anteriores. Por um lado, a ótima direção de fotografia de Toca Seabra valoriza plenamente pontos turísticos como o Elevador Lacerda, sem que o mesmo pareça “artigo de exportação” ao ser percebido/destacado em meio à cuidadosa reconstituição de época, e, por outro lado, este mesmo primor técnico-reconstitutivo é desviado de nossa atenção em virtude da pletora de personagens, que se somam de forma tão alvoroçada que algumas sub-tramas ficam mal-construídas, para além das advertências sinópticas do narrador Quincas (vide os exemplos da temida e maternal prostituta que ele amparou antes de ser presa e do cafajeste mal-humorado que cria briga no cabaré de Manuela quando esbarra em alguém no balcão).

Entretanto, não se pode reclamar que a adaptação enredística engendrada pelo próprio diretor Sérgio Machado seja ruim. Pelo contrário, ele conseguiu tornar a trama suficientemente concisa para quem ainda não tenha lido a obra literária original de Jorge Amado, não obstante focar superficialmente aquele que poderia ser o ponto nodal da trama: a conversão do simplório e entediado funcionário público Joaquim Soares da Cunha no boêmio bem-dotado Quincas Berro ‘d’água. Os ‘flashbacks’ que eventualmente pontuam a trama são sempre bem-sucedidos, seja naquele em que o protagonista teme que sua filha torne-se uma cópia moral da sua flatulenta esposa, a quem ele tacha de jararaca num momento de fúria, seja quando ele é mostrado pendurando-se numa estátua e cantarolando músicas chulas, ainda na fase exordial de sua conversão à bebedeira festiva.


Em relação ao discurso moral potencialmente dramático que toma de assalto alguns trechos do filme, os mesmos foram bem-inseridos na narrativa, ainda que pareçam um tanto óbvios em sua redenção final, em que os personagens avessos à literatura do protagonista sejam mostrados acordando de práticas sexuais que, de outra forma, não seriam condizentes com seus cotidianos modorrentos e hipócritas, criticados veementemente pelo sarcástico humor de Quincas Berro d’Água, que, mesmo morto, insiste em comentar as situações ao seu redor, alegando que “não há nada demais em morrer, exceto pelo fato que há uma picada na bunda que não se consegue mais coçar”. Nesse sentido, merece um renovado elogio a insistência de Paulo José em abdicar do uso de dublês, o que valida o convencimento redentor da seqüência final, após a tempestade do mar, quando ele é finalmente sepultado “ao lado de Iemanjá”, e visa diretamente ao espectador, em sua exortação extrema de aproveitamento da vida e da morte.

Além do elenco competente e coeso (que, se não está de todo bom, é menos por deficiências actanciais do que pela imposição de estrelas reconhecíveis da televisão por parte dos produtores do filme) e do bom roteiro adaptado e compreensivamente descompassado em sua transferência de um ponto de vista mais indolente sobre a vida boêmia do falecido protagonista à sua filha quiçá também libertina em potencial, a equipe técnica do filme merece também encômios pro causa da excelente trilha sonora, que mescla os temas originais de Beto Soares a canções notáveis da era de ouro do rádio no Brasil.

Pode-se reclamar que o filme está muito mais preocupado com a disseminação popularesca de valores risórios, em que a estereotipização de modos de fala tipicamente nordestinos e as extravagâncias naturais de personagens da fauna urbana noturna como travestis, prostitutas e delegados pederastas é utilizada de forma mais comercial do que necessariamente espontânea, as gargalhadas empolgadas das pessoas – inclusive nordestinas – parecem consolidar por extensão apreciativa as opções rigorosamente planejadas para reações atreladas aos preconceitos espectatoriais, de maneira que é assaz compreensível e defensável a insistência de que o filme está bem acima da média de filmes brasileiros comerciais lançados nos últimos anos, não obstante seu roteiro está muito aquém de esboçar adequadamente os valores populares defendidos no entrecho e no livro original que lhe deu origem.


Inclusive, este embate de interesses pode ser metaforicamente ampliado a partir de uma seqüência-chave do filme, quando um dos amigos do falecido, encasquetado de que é poeta, insiste em ler um poema que escrevera para sua amada, diante do caixão. Ao perceber a insatisfação receptiva por parte de alguns dos presentes, comenta: “sei que não é um poema de qualidade superior, mas é melhor uma poesia ruim do que merda nenhuma”. Quem se vê obrigado a sucumbir à inevitabilidade crescente das concessões qualitativas da Indústria Cultural, pode se conformar com isso e fazer de conta que não ouve a imediata contestação do falecido protagonista: “ouvido de morto não é penico”. O de alguns vivos, pelo jeito, é...

Wesley Pereira de Castro.