Um traço que se destaca positivamente nos filmes com super-heróis derivados das histórias em quadrinhos escritas por Stan Lee é que seus personagens são comumente atormentados por dilemas pessoais, por fracassos amorosos e por crises existenciais que justificam os embates com seus antagonistas, visto que os ditos vilões são igualmente atormentados por dores aparentemente incuráveis. Na cinessérie protagonizada pelos X-Men, há um diferencial ainda mais afirmativo: além das tradicionais lutas entre heróis e vilões, concede-se vital importância a uma cisão interna no primeiro grupo, já que a categoria dos mutantes é subdivida entre aqueles que apóiam a convivência com os humanos [o grupo liderado pelo Professor Xavier] e aqueles que os consideram uma ameaça [aqueles comandados por Magneto].
Em outras palavras: o que torna “X-Men: O Filme” (2000) e “X-Men 2” (2003), ambos dirigidos por Bryan Singer, tão aprazíveis é que eles recusam o maniqueísmo recorrente no gênero, de maneira que os efeitos especiais e as cenas de ação são validadas por situações eminentemente dramáticas, relacionadas a metáforas do preconceito que vitima homossexuais e negros, principalmente. Não por acaso, pode-se identificar reminiscências de assunção homoerótica nos diálogos em que os mutantes [em especial, os adolescentes] confessam-se como tais para outrem e muitos exegetas apressaram-se em identificar similaridades entres os posicionamentos divergentes de Xavier e Magneto e os discursos anti-racismo de Martin Luther King (1929-1968) e Malcolm X (1925-1965), que apregoam a não-violência e o revide, respectivamente.
Diante de tudo isso – e sabendo-se que Bryan Singer retornou à direção de um capítulo da cinessérie após os simplismos directivos de Brett Ratner em “X-Men: o Confronto Final” (2006) e a reconstituição bem-aventurada do universo dos personagens em “X-Men: Primeira Classe” (2012, de Matthew Vaughn) – tinha como “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” (2014) malograr? Infelizmente foi o que (quase) aconteceu...
Apesar dos recursos eficientes de direção [a seqüência em que acompanhamos o modo como Pietro Maximoff/Mercúrio (Evan Peters) se relaciona com sua hiper-velocidade, ao som de “Time in a Bottle” (interpretada por Jim Croce), é simplesmente antológica!] e dos desempenhos eficientes do elenco (Michael Fassbender, por exemplo, está soberbo!), o roteiro de Simon Kinberg [baseado numa trama de Chris Claremont e John Byrne] é tão prejudicial em sua obsessão anistórica que decepciona largamente quem se empolgara com o inspirado título deste novo capítulo da saga.
Se, na cinessérie iniciada por “MIB – Homens de Preto” (1997, de Barry Sonnefeld), faz sentido a menção cômica de que celebridades como Andy Warhol e Michael Jackson seriam alienígenas disfarçados, neste filme, as concatenações pretendidas entre os feitos dos personagens e eventos da história (bélica) dos EUA soam inconvincentes e negativamente problemáticas, seja no que diz respeito à suposição de que Magneto teria assassinado o presidente John Fitzgerald Kennedy (segundo o personagem, ele, na verdade, tentou salvá-lo, visto que ele também era um mutante), seja nas referências acríticas (leia-se ufanistas) à crise dos mísseis em Cuba, à Guerra do Vietnã e aos atos públicos supostamente benevolentes de Richard Nixon.
Ou seja, além de atrelar estes eventos à participação ativa dos mutantes como se fossem meros chistes [sem posicionar-se de forma ideologicamente contrária às guerras entre humanos] o roteiro ainda comete a discutível (e reprovável) opção de ignorar a continuidade com os demais filmes: toda a participação de Mística (interpretada de forma impassível por Jennifer Lawrence) neste filme vai de encontro ao que Rebecca Romijn-Stamos faz sob a pele da personagem nos capítulos anteriormente lançados, hipertrofiando o aspecto de brecha no tempo que Kitty Pryde (Ellen Page) apregoa antes de fazer com que Wolverine (Hugh Jackman) reencarne em seu próprio corpo, cinqüenta anos antes.
Num dado momento, Hank McCoy (Nicholas Hoult) insinua que a linha do tempo agiria como a movimentação de uma onda aquática, de modo que, não importa os empecilhos eventuais, esta sempre seguiria o seu curso conforme programado. Do modo precário como este filme é narrativamente conduzido, “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” seria dotado de maior significação se fosse um sonho – ou melhor, um pesadelo – de alguns dos personagens!
Ainda mencionando os defeitos do mau roteiro de Simon Kinberg, vale acrescentar que o modo como Xavier (na faceta vivificada por Patrick Stewart) lamenta que os mutantes sejam “tão poucos” em 2023 – por mais justificadamente defensável que esta lamentação quantitativa pareça frente à perseguição inclemente e letal dos Sentinelas robóticos – contradiz o seu elã integracionista, visto que este langor racialmente guetificado ignora a amplitude social das propostas educativas deste personagem nas obras anteriores.
O foco exacerbado nas pesquisas científicas de Bolivar Trask (Peter Dinklage) tem por intuito impedir que o espectador constate o quanto o enredo abole a complexidade estrutural das exigências não necessariamente vilanazes de Magneto: do jeito como aparece no filme, os temores militares envolvendo os mutantes são apartados dos clamores por convivência mútua que constituem o mote geral da saga, inclusive enquanto substrato de seus combates. O que era previamente uma imponente questão sociopolítica torna-se um tedioso (e/ou oportunista) ‘mcguffin’ de segurança nacional, de maneira que os personagens são desprovidos de motivação comunal, tornando-se pouco interessantes em sua previsibilidade de ações.
O apelo final às “escolhas que podem mudar o mundo” (quando Mística desiste de matar o anão cientista e Magneto foge, sem conseguir assassinar o presidente dos EUA, vivido por Mark Camacho) configura-se num clichê melodramático preguiçosamente defendido, cuja continuidade factual (Wolverine acordando num futuro paralelo, ao lado de seus companheiros do primeiro filme, ao som da recorrente “The First Time Ever I Saw Your Face”, interpretada por Roberta Flack) é negada pela revelação posterior de que Mística estaria disfarçada como o major Stryker (aqui vivido por Josh Helman) quando de seu resgate das águas. Isto não impediria que o mutante auto-regenerativo tivesse o seu esqueleto substituído por ‘adamantium’ e, como tal, associado às propriedades que o tornaram sumamente conhecido? Mais que isso: se as garras que atravessam as falanges do mutante, em 1973, são compostas por ossos, como ele conseguiu socar os utensílios metálicos que Magneto arremessa contra ele na luta derradeira? Tudo bem que verossimilhança não seja uma propriedade rigorosamente exigida em filmes de super-herói, mas respeito à lógica interna da obra era o mínimo que se podia esperar de um filme singeriano...
Não obstante desvirtuar lancinantemente os méritos intrínsecos do universo criado por Stan Lee e Jack Kirby, “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” não é um filme ruim: conforme dito antes, a direção é muito boa; as canções de época são apropriadamente utilizadas enquanto ‘leitmotifs’; a montagem de John Ottman, parceiro habitual do diretor (que também assina a trilha musical) é ótima; e os efeitos visuais – deveras perceptíveis na apreciação de um filme como este – são portentosos.
Pena que os ótimos atores envolvidos no projeto não tiveram a oportunidade de dotar os seus personagens com motivações que transcendessem a belicosidade (ainda que num viés reativo): Omar Sy está subaproveitado como Bishop; Ian McKellen (excelente como o envelhecido e regenerado Magneto), a pitoresca Blink (Fan Bingbing) e o recruta mutante com poderes radioativos aparecem muito pouco; e Ellen Page oferece uma interpretação apenas funcional. Apesar de serem identificados como super-humanos, os mutantes neste filme agem como versões mecanizadas dos homens, subjugados e estigmatizados por seus próprios dons.
Numa cena potencialmente vigorosa, o jovem Charles Xavier (vivido sem frescor por James McAvoy) ouve prantos multilíngües quando tenta contatar mentalmente os mutantes ao redor do mundo, no afã por encontrar a sua amada Raven/Mística. O que poderia render um ótimo momento de discursividade cinematográfica torna-se um reles pretexto para que o alegado “coração partido” do personagem seja pleonasticamente identificado. Uma lástima! E, pelo que se pôde perceber ao final dos créditos de encerramento, o filme vindouro, “X-Men: Apocalipse” (programado para ser lançado em 2016), dará continuidade aos males identificados aqui: a História dos X-Men (em letras maiúsculas mesmo) transformou-se num mero pasticho comercial.
Ao contrário do que se defende na empolgante vinheta genética de abertura, mais um típico caso de involução hollywoodiana foi posto em cena!
Wesley Pereira de Castro.
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