terça-feira, 18 de novembro de 2014

INTERESTELAR ('Interstellar') EUA, 2014. Direção: Christopher Nolan.

Quando era apenas um argumento fílmico concebido a partir de idéias do físico norte-americano Kip Thorne – especializado em temas como os ‘buracos de minhoca’ e a teoria einsteiniana da relatividade – o projeto que veio a ser “Interestelar” foi oferecido a Steven Spielberg. Mesmo não tendo realizado o filme, o interesse deste diretor parece ter influenciado bastante o roteiro escrito inicialmente por Jonathan Nolan, que adotou em sua condução tramática motes atrelados às obsessões spielberguianas, como a ausência de um dos pais (neste caso, a mãe, falecida em decorrência de um câncer) e a inevitável necessidade de, nalgum momento, alguém ser obrigado a escolher entre a sobrevivência de um indivíduo consangüíneo e a alegada preservação da espécie humana.

 A colaboração do próprio Christopher Nolan no roteiro, por sua vez, adicionou ao mesmo um intentado preciosismo em sua denotação científica, além do despejo de pistas frasais que se revelam como camadas narrativas para antever e compreender algumas reviravoltas, incluindo a previsível e vergonhosa constatação de que o “fantasma” que tenta se comunicar com a garotinha Murph (Mackenzie Foy, insuportável) é justamente uma projeção futura de seu pai, deslocada no tempo através da gravidade.

Ao final de 169 minutos de arroubos incessantes de ação espacial e de uma trilha sonora altissonante, reitera-se que o amor é a força-motriz suprema do Universo e que os pais existem para serem memórias para seus filhos – ou “fantasmas do futuro”, como o protagonista do filme preferia dizer. Toda a propulsão científica do entrecho assume-se, portanto, como um mero pretexto para defender um formato tradicional de família heterossexual e fértil, que, a julgar pelo modelo do filme, é também possuidora de um inequívoco pendor latifundiário!

Interpretado de forma exagerada por Matthew McConaughey – cujo sobejo de emotividade chorosa beira o risível – o protagonista deste filme é apresentado [numa conveniente sucessão de depoimentos de terrestres idosos] como alguém que transita profissionalmente entre as atividades de pilotagem e a sua diligência como fazendeiro. Isso faz com que a ambivalência entre o seu inflamado desejo de viajar pelo espaço sideral e a obrigação de zelar por seu planeta natal desencadeie alguns conflitos básicos entre ele e seus parentes, principalmente em relação à sua filha de 10 anos, deveras carente e caprichosa, não obstante a sua inteligência bastante desenvolvida. Depois de um conjunto afobado de seqüências (a perseguição de um ‘drone’ indiano em meio ao milharal e um fenômeno magnético que causa pane nas máquinas de tração da fazenda, por exemplo), ele encontra uma subestação da NASA nas cercanias de sua imensa propriedade, graças a indícios cartográficos que sua filha decifrou com a ajuda do avantesma que vive em seu quarto-biblioteca.

Uma proposta bifurcada e propositalmente complicada de missão espacial [viajar até as proximidades de Saturno, a fim de mergulhar num ‘buraco de minhoca’ – que funciona como atalho intergaláctico – para investigar a possibilidade de colonização humana noutros planetas] é oferecida a Cooper, que, por conta disso, é hostilizado por sua filha, que rompe relações com a família de forma duradouramente rancorosa, até que um detalhe cronológico instigado por seu pai (ela ter a mesma idade que ele, quando partiu) possibilita a súbita extinção de se rancor. Deste momento em diante, Murphy – agora crescida e interpretada por Jessica Chastain – agirá como continuadora terrena da vigília científica e protetoral de seu pai, até que, enfim, ela ressurja (deveras envelhecida, cercada por filhos e netos, e interpretada por Ellen Busrtyn) para aconselhar o progenitor Cooper a resgatar a astronauta Amelia Brand (Anne Hathaway), confinada solitariamente num planeta distante, e assegurar a extensão de sua prole, visto que, segundo a moral enredística, a principal função do ser humano no planeta é multiplicar-se continuadamente. A família nuclear, enquanto primário aparelho ideológico de estado, é, portanto, o bem supremo, a única instituição capaz de levar à frente o poderio amoroso defendido fervorosamente pelo roteiro.

 Se não se pode reclamar dos méritos de alguns componentes técnicos desta produção – apesar de exageradamente executada, a trilha musical de Hans Zimmer é muito boa e a direção fotográfica de Hoyte Van Hoytema obtém impressionantes efeitos a partir de seus vastíssimos enquadramentos – e de ser empolgante a seqüência em que os personagens pousam numa maré planetária permeada por imensas ondas, também não se consegue aceitar de bom grado algumas estapafúrdias opções narrativas, como o sobejo de firulas, isolamentos oportunistas e coincidências forçadas do roteiro, e a edição presunçosa e equivocada de Lee Smith (colaborador habitual do diretor), principalmente no que diz respeito às inconsistentes justaposições de ações espaciais belicosas (a demorada briga entre o protagonista e o dispensável personagem de Matt Damon, por exemplo) e arroubos emergenciais terrestres, num espaço-tempo assaz distante (vide o instante em que Murphy provoca um incêndio no milharal de sua família, para permitir que sua cunhada e seus sobrinhos possam fugir do empertigamento resolutivo de seu irmão).

O que não faltam são situações que põem em xeque a concatenação dos eventos do roteiro, que é prejudicado enormemente pela construção rasa dos personagens, pelos paralelismos imediatistas e pela inserção de diálogos xaroposos e constrangedores sobre o amor (vide o momento em que Amelia declara o vigor de seu instinto afetivo, que a faz buscar incessantemente o reencontro com alguém que pode estar morto há décadas). Os embates desgastados entre pai e filha [tanto entre Cooper e Murphy quanto entre o veterano Dr. Brand (Michael Caine) e Amelia] ocupam parte considerável da trama, desembocando num anódino questionamento da validade da missão de que Cooper participa, assumida como farsesca depois que Murphy para a ser colaboradora da NASA.

Além disso, as contradições e insuficiências tramáticas são numerosas: a absoluta ausência de dados acerca de outras regiões do mundo (ou mesmo dos EUA) que justifiquem a urgência da arriscada perscrutação espacial batizada como Lazarus é apenas o mais óbvio dos defeitos do enredo, já que, se o mundo estava em acelerado estágio de degradação da natureza, como os personagens mostrados puderam passar vinte e três anos sem que hábitos de convivência rural fossem perdidos? Num dado instante, o sogro de Cooper (interpretado por um vexatório John Lithgow) descreve como inatural comer pipoca enquanto se assiste a uma partida de beisebol e, mais à frente, Murphy é mostrada ingerindo refrigerante no interior da base espacial. Malgrado as tempestades de areia causarem danos terríveis à respiração das pessoas, estas mantêm tradições elementares, como sentarem-se à mesa, em família, para comerem suflê de legumes. Se apenas o milho podia ser cultivado sob condições atmosféricas que propiciavam o aparecimento de pragas agrícolas que respiravam nitrogênio, como se sustentavam as relações econômicas que permitiam a conservação dos bens e costumes dos descendentes da família Cooper? Se a comida era um bem tão escasso, por que o protagonista se permite destruir tantos pés de milho durante a perseguição ao ‘drone’, numa das seqüências iniciais? Que circunstâncias permitiram que, entre tantos lugares do Universo, Cooper fosse confinado justamente atrás da biblioteca de sua filha? As interrogações se amalgamam, todas elas em detrimento da perspicácia roteirística dos irmãos Jonathan e Christopher Nolan, infelizmente malograda neste filme, dramaticamente conduzido de forma tão infantil...

Assumindo de forma tão ostensiva a sua filiação ideológica crassa, em prol da manutenção latifundiária de caráter familiar, este filme não goza do mesmo chamariz que obras anteriores do diretor [como o extraordinário “Following” (1998), o originalíssimo “Amnésia” (2000), o bem-sucedido “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008) e o estouvado “A Origem” (2010), para citar apenas algumas], sendo infame a comparação que sua publicidade realiza em relação a alguns clássicos da ficção científica cinematográfica. Por mais que a confecção dos robôs TARS [dublado por Bill Irwin] e CASE [Josh Stewart] seja muitíssimo valorosa, a defesa (corroborada moralmente pelo roteiro) de que a adoção de um percentual propositalmente incompleto de sinceridade [90%, no caso] é adequada perante seres tão emocionais quanto os homens tem a ver com a lógica oportuna de secretabilidade de alguns projetos governamentais, entre eles a corrida espacial que, em determinado diálogo do filme, é mencionada como sendo responsável pela ruína econômica de alguns países, comentário este que é devidamente ridicularizado pelo protagonista.

“Interestelar” surge, portanto, num momento de crise superficial da hegemonia estadunidense – no que tange à rentabilidade hollywoodiana, à mantença de algumas instituições elementares e à sua confiabilidade presidencial – que, pelo que é mostrado no desfecho (uma harmônica colônia terrestre, situada em Saturno), filia-se à cooptada escusa de que o Governo tem razão ao manter determinadas ações invasionistas em sigilo, por mais que estas digam respeito a interesses de toda a humanidade.

O tipo de amor que este filme apregoa, destarte, é tão genérico quanto a metonímia das relações interpessoais encontradas na família Cooper: um amor transferido via espólio que, por mais altruísta que finja ser, é coadunado ao que de mais individualista pode ser identificado em situações de interdependência humana. Um horrível contra-exemplo sobrevivencial, por conseguinte, sub-spielberguiano em mais de um sentido!

 Wesley Pereira de Castro.

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