O que faz de “Crimes e Pecados” (1989) um filme seminal na obra de Woody Allen é que, neste roteiro, ele levou a cabo uma de suas maiores obsessões temáticas: a questão da culpa persecutória, no que tange à eliminação mortífera de um desafeto. Em mais de uma produção, ele retomaria este tema, seja como pasticho dramático [“Ponto Final – Match Point” (2005)], seja como pretensão mal-executada [“O Sonho de Cassandra” (2007)].
Neste seu mais recente filme, a mesma inspiração dostoievskiana dos títulos anteriormente citados é retomada, mas de uma maneira tão simplista e redundante que prejudica o andamento até então interessante de sua trama. Em “Homem Irracional” (2015), o que mais chama positivamente a atenção são as sutilezas distintivas em relação às características formais do diretor: por exemplo, durante a seqüência dos créditos iniciais – em que, como de praxe, os atores são apresentados por ordem alfabética e no mesmo estilo caligráfico da quase totalidade de seus filmes – não se ouve música, mas sim o marulho, que reaparecerá em momentos-chave de busca de paz interior, em relação a ambos os protagonistas, masculino e feminino.
Esta cisão sexual na protagonização do filme permite, inclusive, que ele seja simultaneamente narrado por dois personagens, deixando evidente que, ao menos no início, ambos os pontos de vista são corroborados pelo roteiro: tanto o professor pessimista Abe Lucas (Joaquin Phoenix) quanto a sua desenvolva aluna Jill (Emma Stone) gozam de igual espaço discursivo para a apresentação de suas perspectivas sobre a vida, até que o filme repentinamente toma a defesa desta última em seu quartel final, o que torna o desfecho quase moralista um tanto vago nesta fase contemporânea da carreira do cineasta.
No que tange às interpretações, Joaquin Phoenix se destaca por não incorrer num pecado comum a quem se aventura a trabalhar com o cineasta nova-iorquino: ao invés de incorporar os seus tiques, o ator transpassa as angústias caras a Woody Allen a partir da placidez, expondo de maneira muito oportuna a adiposidade de seu corpo. Emma Stone, por sua vez, comprova não apenas ser uma das melhores atrizes hollywoodianas de sua geração como demonstra que a confiança depositada pelo cineasta no ótimo “Magia ao Luar” (2014) não fora vã: sua personagem é verossímil e defensável até mesmo em sua tendência à irritabilidade. Pena que o mesmo não possa ser estendido ao modo como o roteiro se subsume a um fato que poderia ser corriqueiro (e, ainda assim, muito efetivo filosoficamente) mas que é alçado à categoria gratuita de epifania invertida. Afinal de contas, se o desiludido Abe não encontrara redenção ou sentido em sua vida mesmo quando se dispusera a ajudar os favelados de Bangladesh, por que, de uma hora para outra, associara a constituição de “um mundo melhor” à eliminação do desafeto legislativo de uma ricaça divorciada que chorava num restaurante a perda judicial de seus filhos?
Além de parecer radicalmente arbitrária, a associação do juiz Spangler (Tom Kemp) ao Mal soou inconvincente e incapaz de sustentar uma comparação com o romance “Crime e Castigo” (publicado originalmente em 1866), em relação ao qual o diretor enumera similaridades quase enciclopédicas, defeito este que também se encontra nas citações a Imamnuel Kant, Hannah Arendt e Søren Aabye Kierkegaard que pululam no filme. É incrível que, num filme em que a Filosofia é abordada de maneira tão academicamente justificada, ela seja tratada de maneira tão rasteira e senso-comunal, diferentemente do que o diretor realizara em obras alegadamente casuais como “A Outra” (1989), “Neblina e Sombras” (1991) ou “Desconstruindo Harry” (1997).
Se não se pode reclamar do desempenho dos atores coadjuvantes (Parker Posey, por exemplo, está ótima como a volúvel Rita), o mesmo não pode ser dito sobre a conformação classista dos personagens: nas obras cujo cenário era a efervescência artística de Nova York, era crível e justificável a pletora de intelectuais abastados, mas, na cidadezinha em que o diretor situa este seu mais recente filme, abunda a artificialidade sempre que um personagem fala em viajar para a Europa com a mesma trivialidade com que menciona uma caminhada até a esquina. Além disso, a seqüência em que um grupo de jovens brinca com um revólver depois que a anfitriã de uma festa (Sophie von Haselberg) expõe as pinturas originais recém-adquiridas de seus pais ecoa de maneira ridícula, por mais importante que tente ser no que diz respeito à exposição da vacuidade suicida do protagonista.
Noutras palavras: malgrado os personagens serem bem construídos e os seus dilemas românticos coadunarem-se afirmativamente às demais obras do cineasta, principalmente nesta sua fase contemporânea mais “leve”, o roteiro soçobra ao confundir questionamentos morais deveras amplos com o apelo criminal jornalístico. Assim sendo, Woody Allen desperdiça o seu pertinaz talento reflexivo sobre a existência humana numa dramaturgia estereotipada, em que “os ‘insights’ mórbidos sobre a futilidade da alegria”, inicialmente perpetrados pelo protagonista, são obliterados à medida que ele se convence de que “as idéias ficam mais originais quando espremidas por um prazo limítrofe”, o que desencadeia erros crassos de execução, como aquele que levou Abe à morte. Porém, toda a seqüência prévia do parque de diversões permanece digna de elogios, sobretudo no que diz respeito à aquisição casual da lanterna que seria tão relevante no desfecho sobrevivencial de Jill.
Em relação aos demais aspectos técnicos do filme, vale a pena mencionar a fotografia idílica de Darius Khongji, repleta dos enquadramentos paisagísticos que ele ensaiara em “Magia ao Luar”, e a trilha musical contida, que repete, em mais de uma situação, a mesma versão jazzística de “The ‘In’ Crowd”, interpretada pelo Ramsey Lewis Trio, em que os gemidos e aplausos dos músicos sobrepõem-se aos acordes propriamente ditos, o que causa um efeito de estranhamento particularmente valoroso na cena em que Abe efetiva o seu plano assassino.
Em muitos aspectos, pode-se reclamar que este seja um dos menos inspirados filmes allenianos, o que se explica por seu automatismo roteirístico (à beira do autoplágio) e por seu desperdício situacional, visto que, ao invés de levar a cabo a sua experiência com os devaneios do acaso e erigir uma insuspeita história de amor, o autor cede ao conformismo num discurso final que proclama uma ode à mediocridade pequeno-burguesa. Que venha o próximo filme, a fim de que possamos compreender o que este “Homem Irracional” quis nos dizer...
Wesley Pereira de Castro.
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