Numa das cenas que antecedem o belo plano final, Wellington (Carlos Francisco), o patriarca da família Martins, aceita a homossexualidade de sua filha Eunice (Camilla Damião) através de uma frase bastante sintética acerca do que testemunhamos até então: "tu pareces bem mais comigo do que imaginas". De fato, esta seqüência de reconciliação serve como validação de um aspecto essencial para a adesão emocional do espectador: a nuclearidade da família em pauta - composta por pai, mãe, filha mais velha e filho mais novo - é dividida em duas metades bastante definidas, complementares em suas oposições e tendentes à valorização discursiva (e intencionalmente corretiva) do matriarcado.
Ainda que a elaboração da perspectiva narrativa pertença ao garoto Deivinho (Cícero Lucas), cuja paixão por astronomia justifica o belo título do filme, é Eunice quem desencadeia uma série de pequenas rupturas, essenciais para um novo alinhamento familiar, ao instaurar a constatação de que há algo assaz problemático em meio à harmonia parental: é ela quem faz com que percebamos o quão violento é o fanatismo do pai em relação à paixão futebolística (através de um acesso de raiva desencadeado quando ela traz a sua namorada, torcedora de um time rival, para assistir a uma partida decisiva entre Cruzeiro X Atlético Mineiro); é ela quem leva sua mãe Tércia (Rejane Faria) a refletir sobre o modo como ela transmite uma forma automatizada de machismo na divisão das tarefas domésticas; e é ela quem instiga Deivinho a assumir que o sonho de ser jogador de futebol é-lhe alheio... Tudo isso ocorre ao mesmo tempo em que ela própria parece desorientada quanto ao que deseja erigir na relação amorosa com Joana (Ana Hilário)!
Se, em termos estruturais, o roteiro escrito pelo próprio diretor demonstra-se concessivo no que tange à previsibilidade factual (desde que ouvimos Wellington falar pela primeira vez sobre os Alcóolicos Anônimos, intuímos que ele recairá na bebedeira num momento melodramático), em termos humanistas, o filme resolve-se muito bem, ao enfrentar o involuntário espelhamento periférico que acontece em relação ao bolsonarismo, evidenciado continuamente em transmissões televisivas. A direção fluída de Gabriel Martins é mui eficiente nesta reiteração confortadora, o que deve-se também à espontaneidade das interpretações, que aproveita com eficácia as personalidades do ex-jogador Juan Pablo Sorín e do comediante Tokinho. O mesmo, infelizmente, não pode ser aplicado ao 'rapper' Russo APR, deveras estereotipado como o colega de trabalho pretensamente "revolucionário" de Wellington.
Estabelecidas essas oposições, o filme revela-se promissor no modo como opta por um otimismo sustentacular, necessário à conjuntura desanimadora dos dias atuais: escorando-se na bela mas excessivamente condutiva trilha musical de Daniel Simitan, "Marte Um" oferta-nos um desfecho de celebração ostensiva da vida, em meio à acumulação de tragédias cotidianas, eventualmente convertidas em brincadeiras desagradáveis, como a pegadinha audiovisual que incute a Síndrome do Pânico em Tércia. No desfecho, ela é flagrada dormindo, o que é logo imitado por seus parentes - exceto Deivinho, que teima em sonhar acordado, como exortador do público: mesmo que nossos anseios íntimos pareçam irrealizáveis, convém insistir neles, por mais que, inicialmente, isso seja incompreendido por quem amamos. A sinceridade de nossas entregas afetivas, em comunhão com a lógica de que merecemos acreditar que podemos estar sóbrios, "nem que seja por vinte e quatro horas", devolve à família à sua função original, o acolhimento. E, em seus descarrilamentos e quedas, este filme é sobre isso!
Wesley Pereira de Castro.
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