quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Mostra SP 2022: VOCÊ TEM QUE VIR E VER (2022, de Jonás Trueba)


Apesar da curta duração deste longa-metragem (meros 64 minutos), acontece muito nas entrelinhas: conforme o próprio elenco comenta nalgumas entrevistas de divulgação, trata-se de uma obra que sintetiza o tipo de deslocamento interior que ocorreu durante o período quarentenário e que, por derivação existencial, justifica outro tipo de deslocamento, o espacial, em busca da readequação ao cotidiano social. Somos testemunhas de dois encontros: um deles, numa mesa de bar, ao som do emocionado concerto de um pianista; o outro, numa visita a uma residência interiorana, quando as obsessões temáticas do realizador são metonimizadas através de um livro do filósofo Peter Sloterdijk ("Tens de Mudar de Vida"), debatido ostensivamente pelos personagens. 


Na primeira seqüência, os quatro protagonistas reagem de maneira imersiva à composição merencória apresentada pelo músico Chano Domínguez. Sabemos que estamos diante de dois casais, aquele formado por Elena (Itsaso Arana) e Daniel (Vito Sanz), quiçá à beira de uma crise relacional, e aquele formado por Susana (Irene Escobar) e Guillermo (Francesco Carrill). Elena e Guillermo conhecem-se há mais tempo e relembram as mudanças ocorridas desde que eram adolescentes até o momento atual, em que ambos estão romanticamente comprometidos. Susana anuncia que está grávida e, pouco a pouco, isso faz com que Daniel sinta-se cobrado em relação às exigências heterossexuais tradicionais, a ponto de recapitular persistentemente a frase correspondente ao título original: "vocês têm de ir vê-la". 


O que deveria ser um convite corriqueiro assume ares de cobrança quase paranóica, a ser executado seis meses após o primeiro encontro, quando Elena e Daniel viajam para a pacata cidade rural onde moram Susana e Guillermo. Em meio aos diálogos, Jonás Trueba erige breves situações de suspense cotidiano, envolvendo gestos simples, como correr para depositar o lixo, antes que os funcionários de limpeza recolham-no, ou encontrar o cômodo no qual um dos cônjuges deixou a sua mochila. Na análise casual do livro sloterdijkiano, Elena dispara uma frase que serve como metáfora para o tipo de paradoxo que cerceia o universo actancial do realizador: "o dilema do homem contemporâneo é pensar como vegetariano e agir como carnívoro". No forno, Guillermo prepara um carneiro: "sei que consigo, mas não quero viver sem carne"!


Sobremaneira demarcado pelas canções que são executadas - "Lets Move to the Country", de Bill Callahan, por exemplo -, este filme gradualmente transmuta em imagens as considerações lidas por Elena, como a dinâmica existente entre Arte e Natureza (vide o momento em que ela pede para urinar no campo e percebe-se circundada pela vegetação) e as indecisões determinantes das posturas intelectuais, percebidas na reclamação de Susana acerca do modo como soube que uma parenta sua sofreu abortos, na estupefação de Daniel ao encontrar uma pintura antiga na casa de Guillermo ou na própria maneira com que o diretor Jonás Trueba aparece no desfecho, quando o filme converte-se numa espécie de 'making-of' de si mesmo, em Super-8. Um belo registro sobre o que é estar (e continuar) vivo hoje em dia, portanto. 


Wesley Pereira de Castro. 

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