Graças às sessões gratuitas ofertadas pelo Sesc Digital, quem não mora em São Paulo pode assistir a dois curiosos documentários portugueses, que abordam assuntos tão opostos quanto inusitadamente relacionados: no primeiro caso, “Distopia” (2021, de Tiago Afonso), testemunhamos as alterações urbanas ocorridas na cidade de Porto, ao longo de mais de uma década; no segundo, “Objetos de Luz” (2022, de Acácio de Almeida & Marie Carré), um projecionista reflete sobre a importância das imagens em movimento, de modo que cenas clássicas da cinematografia lusitana são reproduzidas e/ou reconstituídas. Projetos completamente distintos, mas que sintetizam duas das principais tendências documentais contemporâneas…
Num dos filmes, a narração surge como comentário avaliativo, a partir da reflexão de uma criança, que não entende a ganância de quem já é rico. Surge uma explicação masculina, “a principal característica de quem tem muito dinheiro é querer mais dinheiro”, pronunciada depois que acompanhamos os lamentos de quem foi desalojado à força de uma área de barracos e conduzidos a bairros insalubres, “onde as crianças tornam-se rebeldes e mal-influenciadas”. O diretor coletou imagens valiosas do cotidiano dos pobres, apresentadas em blocos, que iniciam-se com a execução de uma “meia limpeza” e terminam com a certeza de que “os cães ladram, mas a caravana passa”. No desfecho, o poder da canção “Despejo na Favela”, de Adoniran Barbosa (em dueto com o brasileiro Gonzaguinha):
“Não tem nada, não, seu doutor, não tem nada, não.
Amanhã mesmo, vou deixar meu barração.
Não tem nada não, seu doutor.
Vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator.
Para mim, não tem problema. Em qualquer canto me arrumo.
De qualquer jeito, eu me ajeito.
Depois, o que eu tenho é tão pouco.
Minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás.
Mas essa gente aí, hein, como é que faz?”
As filmagens, apesar de muito duras em relação ao que apresentam (vide as seqüências de demolição dos edifícios no bairro do Aleixo), são também atravessadas pela poesia que grassa no dia a dia, sobretudo através da inocência das crianças, que aprendem a manusear a câmera – numa oficina promovida pelo próprio diretor – e apressam-se em elogiar os coleguinhas de escola, que habitam os mesmos espaços subplanejados que elas. Até que os oficiais de (in)Justiça apaguem as fogueiras dos ciganos e insistam em silenciar as suas canções. No processo crescente de gentrificação, a infelicidade dos moradores surge como incentivo ao consumo capitalista. Por isso, os maus tratos recorrentes da pequeno-burguesia hodierna: a realidade crua é desoladoramente distópica, como assegura o título do documentário.
O outro dos filmes segue um percurso idílico, de pretensa reparação dos malogros corriqueiros: contra a insatisfação oriunda da pobreza, a riqueza dos reflexos imagéticos e a beleza das projeções cinematográficas. Um narrador solene rememora as glórias do cinema português. Enquanto um fazendeiro bucólico apaixona-se por uma bela pastora de ovelhas – e eles fazem amor nos interstícios dos delírios provocados por um cogumelo de nome “namorado” –, (re)v(iv)emos situações clássicas de obras como “Os Verdes Anos” (1963, de Paulo Rocha), “Silvestre” (1981, de João César Monteiro), “Os Mutantes” (1998, de Teresa Villaverde) e “A Vingança de uma Mulher” (2012, de Rita Azevedo Gomes), entre outros. Durante os créditos finais, a execução de “Love Came Here”, canção de Lhasa de Sela que converte em versos sublimes os questionamentos do narrador. “A luz do Sol, que nasce e morre, como nós”, põe em xeque uma dúvida: existe um DNA específico para os raios luminosos? Nesta obra, a realidade é transformada quando filmada, melhorada através das induções de poesia.
Na verdade, “Objetos de Luz” talvez seja devidamente apreciado por quem já tem alguma afinidade com a história ibérica e, principalmente, por quem conhece os títulos fílmicos supramencionados. Vale lembrar que o filme também é efetivo na celebração da Revolução dos Cravos, que tem um momento-chave exibido num determinado instante. É um filme bonito, mas também hermético em sua proposta. Tanto quanto o outro, beneficia-se de uma curta duração, já que não ultrapassa os setenta minutos. Merece ser conferido pelos cinéfilos, portanto.
No cotejo entre ambos, “Distopia” demonstra-se emergente em seu relato protestante, defendendo a pujança afetiva e dançante que provém dos mais humildes, ao passo que “Objetos de Luz” retroalimenta uma confiança utópica na força de uma “luz que também mata” (conforme ilustrado pelo sangue que jorra do foguete que perfura o olho da lua meliesiana). Vistos em conjunto, esses dois filmes proporcionam opções variegadas de reações espectatoriais, já que a realidade é apreendida de maneiras completamente diferentes por pessoas diferentes. Cada qual a seu modo, eles metonimizam a valiosa gama de possibilidades que advém do gênero documental. Por isso, de maneira discreta, os recomendamos!
Wesley Pereira de Castro.
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